terça-feira, fevereiro 20, 2007

É CARNAVAL, HITCHCOCK NÃO LEVARIA A MAL







Estamos na Terça-Feira Gorda, a festa do Entrudo. Julgo que, numa associação ao espírito burlesco desta época, Hitchcock não se importaria de ver aqui publicados estes seus retratos caricaturados. O Humor sempre identificou o seu trabalho e a sua própria acção pessoal. O auto-retrato que concebeu é uma visão simpática e despretensiosa da sua pessoa. E como a sua imagem foi propagada no decurso do século XX por todos os possíveis canais de comunicação, parece lógico que aquela figura rotunda de expressão carregada tenha inspirado milhares de trabalhos como estes.

Nunca me mascarei no Carnaval mas consideraria a hipótese de me disfarçar à semelhança de Hitchcock. Claro que todos os meus amigos me reconheceriam de imediato. Mas, pelo menos, algum peso e opulência física (ou digamos gordura!) levava eu já de avanço para a construção do disfarce.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

ACERCA DO REALISMO E DO PUDOR NOS FILMES


Um dos pormenores que distingue o cinema dos anos 30, 40 e 50 daquele tipo de filmes que estamos habituados a consumir nos nossos dias é o grau de realismo com que as cenas são recriadas e filmadas. O modo como se mostra tudo o que for susceptível de identificar um personagem ou uma realidade. Parece-me que, neste domínio, a Europa se terá adiantado a Hollywood. Porque as cinematografias europeias são, desde longa data, mais realistas e cruas.


Em meados do século XX, imperava um pudor desmesurado que restringia os realizadores e os impedia de serem plenamente verdadeiros. Quanto a questões de moral e ética. Quanto à exploração das temáticas do amor e do sexo. E até no que dizia respeito a aspectos tão naturais como controversos.
Um exemplo elucidativo: os pormenores escatológicos que envolvem as casas de banho, os excrementos, o vomitado ou a urina não eram mostrados nem sequer nomeados. Daí que Joseph Steffano, argumentista de “Psico”, recentemente falecido, tenha revelado em entrevista um dado curioso: até 1960 nenhum filme tinha mostrado directa e assumidamente uma sanita.

Portanto o plano em que vemos Janet Leigh deitar papéis rasgados na sanita e depois puxar o autoclismo para que eles sejam empurrados para a canalização, traz algo de novo e de revolucionário. Até porque a imagem é captada de cima e com nitidez.

Este aparentemente ínfimo pormenor mostra-nos em que medida o cinema clássico está contido dentro de moldes rigidamente estabelecidos. Alguém imagina Ava Gardner ou Audrey Hepburn sentadas numa sanita? Pois hoje não é invulgar nem chocante ver Elisabeth Shue nesse enquadramento. (O filme é “Morrer em Las Vegas” (1995) de Mike Figgis.) A verdade é que estamos familiarizados com um conceito diferente de recriar o real e de o mostrar.

Claro que posso argumentar: não é de bom gosto mostrar o herói na retrete ou identificá-lo a satisfazer necessidades fisiológicas de determinadas ordens. É evidente. Mas em última análise quem é que decide o que é de bom gosto?

Acredito que mostrar uma realidade pode provocar um acto de consciencialização do espectador face a fenómenos verdadeiros e que não deverão ser ignorados. Mas filmar uma cena patética deve responder a um objectivo específico e coerente.

Como podemos conceber a cena de um dos filmes de Wim Wenders em que um homem defeca mediante a perspectiva da câmara? Ou a irreverência e a obscenidade de “La Grande Bouffe” (1973) de Marco Ferreri? Filme de culto franco-italiano, aclamado por muitos como obra-prima e em que se narra a história de várias pessoas predispostas a comerem até ao limite das suas capacidades.

O sucesso de “La Grande Bouffe”, ou de outras películas concebidas como que à margem do sentido de pudor, é compreensível porque muitas situações burlescas causam literalmente o espanto e o riso. Naqueles dias especialmente. Mas ainda hoje.

Por outro lado, pela sátira conseguem-se denunciar algumas realidades ou defender determinadas argumentações. Fellini satirizou muitas situações com um despudor desmesurado para a época. E depois Peter Greenaway…

Recriar uma violação pode desempenhar um papel educativo, pedagógico e altamente sensibilizador. Mas não deixa de resultar numa sequência de imagens que bem pode manifestar-se incómoda e inconveniente para muitas pessoas. Realismo, sim. Mas até que limites? Como conceber uma cena de “Felicidade” (1998) de Todd Solondz em que um homem se masturba enquanto observa fotografias de crianças? Matérias demasiado delicadas exigem tratamento igualmente delicado, meticuloso e prudente.

Em termos cinematográficos, foi radical a evolução das mentalidades nos últimos 50 anos. Muitos filmes de meados do século passado eram feitos para mostrar a Realidade mas acabavam por revelar apenas uma certa realidade. Uma realidade esculpida, esbatida, amputada – censurada directa ou indirectamente.

Há palavras que em tempos idos não se proferiam num filme. Como se as pessoas não as dissessem. Ou como se não se reportassem a realidades. Palavras como «aborto», «prostituição» ou «homossexualidade». E os “palavrões” associados a linguagens eticamente inapropriadas. Nenhum actor clássico proferia obscenidades.

Alfred Hitchcock nunca se importou muito com o realismo dos seus filmes. As suas histórias eram como que fugas à Realidade. Retratavam cenários oníricos, aventuras incríveis, conceitos inconcebíveis. A Hitchcock só interessava que o espectador se identificasse com os heróis. Que os personagens fossem credíveis, parecessem pessoas de carne e osso. Todo o resto era invenção e irrealidade.

O cinema de Hitchcock é uma entidade que desenvolve ilusões. Como o Cinema em geral, ele próprio. Neste domínio, “Vertigo” que poderá ser o melhor filme do Mestre, é também paradigmático. É a história da construção de uma ilusão. Um filme com um tom hipnótico que tem pouco a ver com a Realidade.

Hitchcock disse um dia: uma dona-de-casa que lava a loiça todos os dias a seguir ao jantar, não quer ir ao cinema ver uma mulher a lavar a loiça. Mais facilmente quererá fugas à sua realidade. Poderemos ou não concordar com Hitchcock mas é nítido que a sua obra cinematográfica reside num espaço consentâneo com esta argumentação.

A recriação de um beijo: para filmar um beijo de forma a impressionar positivamente as audiências, Hitchcock precisava recriar a paixão e a sensualidade. Mas era obrigado a fazê-lo com regras. O beijo precisava de ser genuíno mas eram impostas sérias limitações.

O herói e a heroína não se podiam beijar mais do que 20 segundos nem fazê-lo de boca aberta. Hitchcock contornou esta limitação de uma forma habilidosa. Observem-se Cary Grant e Ingrid Bergman em “Difamação” (1946). Eles beijam-se repetidas e sucessivas vezes durante mais de um minuto. Essa cena de amor (tórrida para os cânones da época) devia justificar a interdição de menores na sala de cinema. Mas Hitchcock podia sempre argumentar que cada beijo ardente não se arrastava por mais de 4 ou 5 segundos.

Se um beijo era suposto parecer real, deveria traduzir paixão verdadeira. E Hitchcock faria o possível para torná-lo não só convincente como também arrebatador. Não propriamente em defesa do realismo da cena mas para despertar a emoção do espectador. O cinema de Hitchcock tem tudo a ver com a emoção. E pouco a ver com a realidade.

Presentemente só podemos alimentar ideias acerca do que Hitchcock poderia ter feito para tornar mais realistas as cenas dos seus filmes. Em “Frenzy” (1972), considerou natural que a personagem de Anna Massey saísse nua da sua cama de hotel. E assim a filmou. (Embora na realidade tenha filmado o corpo nu de uma dupla.)

Certamente uma maior liberdade para filmar constituiria um desafio para Hitchcock. Ele que quase sempre trabalhou mediante constrangimentos mais ou menos directos. Essa liberdade (de que hoje muitos cineastas gozam) seria um instrumento útil para tornar mais realistas os seus cenários de crime. Uma porta aberta para novas possibilidades.

Hitchcock morreu em 1980. Só Deus sabe o que teria feito depois e como teria lutado mediante os conceitos cinematográficos dos anos 80. Em nome do realismo dos seus filmes. Mas acima de tudo para tornar mais intensas as emoções do seu público. É importante acrescentar que ele sempre se procurou documentar sobre uma realidade antes de filmar sobre ela. Mas nunca a necessidade de realismo foi a sua principal demanda. Nem o mérito mais luminoso da sua obra.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

HITCHCOCK ANALISADO NO MEU DIVÃ


O ácido Tio Charlie de “Mentira” (1943) declara numa cena do filme: «O mundo é uma pocilga e se esgravatarmos diante da fachada das casas só encontraremos porcaria e podridão…»

Às vezes questiono-me se Hitchcock não partilharia um pouco dessa visão amarga e negativista da Humanidade. Cerca de trinta anos depois, podemos vê-lo argumentar a propósito do seu “Frenzy – Perigo na Noite» (1972) que a vida humana existe no contexto cíclico da apropriação de alimentos consumíveis e da sua digestão e transformação em esterco que será canalizado para os oceanos.

Ele referia-se à estrutura daquele seu filme mas dessa visão crua, realista, obscura e pouco romântica, parece advir uma perspectiva céptica acerca das capacidades do ser humano. Como se os homens só servissem para produzir fezes e para contaminar um mundo que viveria muito bem sem ele.

Como sabemos, Hitchcock vestia uma capa de ironismo e de humor negro sempre que falava em público e para os jornalistas e críticos, muito em particular. Gracejava, gostava de chocar e de surpreender com as suas palavras e nem sempre brincava do modo mais simpático. Portanto nem tudo o que dizia poderia ser literalmente tomado a sério.

Mas estou convencido de que ele era mesmo um homem bastante descrente acerca da bondade humana. Um pouco como o Tio Charlie.

Na medida em que o seu trabalho de realizador e de escultor de histórias o levava vezes sem fim a abordar as temáticas do crime e da maldade humana, parece-me natural que ele se tivesse deixado influenciar pela visão pessimista de alguns escritores e argumentistas.

Ele não era de facto nenhum monstro. Antes um homem habituado a pensar rotineiramente em cenários de crime. Mas não foi o seu percurso profissional que determinou necessariamente a sua visão mais obscura da Humanidade. Hitchcock seria um homem reservado, moderadamente triste, vitimado por uma educação severa e por um contacto prematuro e doloroso com a sensação do medo e da angústia.

A sua própria imagem física não lhe transmitiria a autoconfiança desejável na sua posição. Era gordo e deselegante. Talvez o cinismo para com as outras pessoas fosse a resposta imediata de alguém que atacava antes de poder ser ofendido.

Hitchcock seria mais frágil e sensível do que se poderia imaginar. Era um homem pacato, de gostos simples, que encontrava serenidade na confraternização com a família. Lendo um livro junto da esposa e da filha e com o seu cão aninhado aos pés.

Eu diria que Hitchcock era, como qualquer ser humano, uma pessoa que sentia conforto na aceitação junto dos outros e, para além disso, na aclamação e no sucesso. Homem devoto à família e que encontrava protecção emocional perto da mulher. Bem sabemos como a opinião de Alma Reville pesava nas suas considerações. E como gostava de ser prestigiado diante dela. (E parece bem evidente que nos anos do declínio da sua carreira e do fim da sua vida, ele gostaria de se mostrar a Alma tão vigoroso e empreendedor como havia sido até então.) O fracasso assustava-o. E alguns insucessos de bilheteira deixaram-no tremendamente traumatizado e receoso.

O desejo de Hitchcock de acentuar o lado mais negro da existência humana estaria manifesto nos finais trágicos que projectou para alguns filmes seus. Os «happy-ends» sempre lhe foram sucessivamente impostos pelos estúdios. (Como em “Suspeita” (1941) ou em “Os Pássaros” (1963))

Esse desejo também se materializava no seu apreço pelo anormal e pelo perverso. No seu fascínio pelas fugas à normalidade. De resto, Hitchcock criara uma imagem de marca e as pessoas não esperavam dele senão histórias de suspense e de terror psicológico. Como ele alegou, se realizasse um filme sobre a Cinderela, as pessoas esperariam que do armário do quarto dela saísse um esqueleto. Ninguém ansiava por ver Hitchcock conceber uma obra sobre a bondade humana.

Seja como for, uma visão desencantada do Mundo e da Humanidade não é de modo algum consentânea com o ideal da perspectiva do Catolicismo com que foi educado. A doutrina católica acentua o papel da Culpa e atribui elevado peso à dimensão do Pecado com que todos os seres humanos terão nascido. Mas alicerça as suas argumentações na ideia da Salvação dos homens mediante a sua tomada de decisões. Refere-se à Vida Eterna e à modelação do Homem à imagem de Deus.

Hitchcock não me parecia um homem optimista. Seria um realizador marcado por uma educação católica. E não exactamente um realizador católico. Do Catolicismo ele terá assimilado uma noção bem interiorizada de Culpa e de Pecado – Bem expressa na sua obra cinematográfica. De resto, quantos católicos convictos conseguem nutrir persistentemente um optimismo sólido e inabalável?

Se o Homem é feito à imagem de Deus, não pode ser intrinsecamente mau. É de esperar que se acredite na sua bondade. Mas num mundo cravejado de violências e de injustiças, podemos acreditar que o Homem é naturalmente bom?

Sim, podemos pôr as nossas mãos no Fogo a respeito da Bondade Humana? É natural que vacilemos e tenhamos dúvidas. Talvez o Homem só aprenda a ser pacífico e cordato mediante um processo de aculturação. Sem esse processo, ele pode não passar de um animal egoísta que mata para viver.

Consigo compreender o cepticismo de Hitchcock. E o de tantos cineastas depois dele.

O homem que realizou “Frenzy – Perigo na Noite”, em 1972, podia ser hoje o criador de obras perversas como “O Silêncio dos Inocentes” (1991) de Jonathan Demme, “Veludo Azul” (1986) de David Lynch ou “Sete Pecados Mortais” (1995) de David Fincher. Neste contexto, não me parece que haja tanta distância assim entre Hitchcock e Lynch ou Cronenberg.