terça-feira, julho 31, 2007

O PRIMEIRO (GRANDE) FILME DE HITCHCOCK - CONCLUSÃO




O Cinema Mudo conta histórias quase sem recurso a palavras. Nos primeiros minutos d’ “O Inquilino Sinistro”, as palavras escritas numa máquina de escrever ou nas páginas dos jornais também servem de instrumentos narrativos.

O título de um espectáculo a passar num teatro cumpre a função de um entretítulo. De modo enigmático e indirecto, «TONIGHT, GOLDEN CURLS» («ESTA NOITE, CARACÓIS DOURADOS») remete para a realidade temida: é terça-feira, noite predestinada para a morte de uma rapariga loira nas mãos do psicopata. Hitchcock fixa o letreiro com letras de néon, tornando a sua mensagem um pouco obsessiva. (TO-NIGHT-GOLDEN-CURLS; TO-NIGHT-GOLDEN-CURLS).

De modo equivalente, Hitchcock deseja apresentar a sua protagonista, enfatizando que ela vai ser relevante, apresentando e voltando a apresentar o seu nome: Daisy. Daisy é o centro afectivo dos que a rodeiam. A menina querida da sua família. Os entretítulos pronunciam a identidade de Daisy.

Para contornar a dificuldade de expressar sonoridades e de pôr em evidência as palavras importantes – proferidas em diálogo ou subliminares ao contexto da acção – Hitchcock usa aqui diversos truques e malabarismos técnicos.
Talvez a cena mais recordada por muitos cinéfilos quando pensam neste brilhante “The Lodger” seja aquela em que os personagens olham para o tecto, estranhando os passos do inquilino sinistro no andar de cima. Vemos esse tecto, com um candeeiro oscilante, e distinguimos a figura do homem caminhando num sentido e depois no outro. Como se, do andar de baixo, conseguíssemos ver através do tecto o primeiro andar. Hitchcock utilizou um vidro grosso sobre o qual o actor se passeou e debaixo do qual posicionou a câmara e o filmou. O resultado é visualmente brilhante. É como se «víssemos» o barulho dos passos dele.

“The Lodger” é um filme fantasmagórico, sem fantasmas. Os fantasmas são o Medo, a Suspeita e a Inquietação expressos no impacto sombrio das imagens.

Uma família feliz (como a de “Mentira” (1943)) aceita um estranho inquilino em sua casa, arrendando-lhe um quarto. A acção decorre nos dias perturbadores em que um psicopata enigmático, cuja identidade ninguém conhece e que se auto-intitula Vingador, mata sadicamente uma rapariga loira todas as semanas. Invariavelmente às terças-feiras.

O filme conjuga habilmente o tema da suspeita inquietante com o do homem injustamente acusado.

A primeira aparição do inquilino é visualmente impressiva. Ele surge à entrada da casa, coberto por uma capa escura e do rosto quase só se lhe vêem os olhos. É uma figura medonha. A mãe de Daisy abre-lhe a porta a assusta-se. O estranho inquilino em tudo se identifica com o perfil publicamente traçado do Vingador. O espectador sente-o em cada pormenor. No quarto onde vai ficar alojado, inúmeros quadros com imagens de meninas loiras de cabelos encaracolados parecem afrontá-lo e fazer-lhe mal.

Como em “Rebecca” (1940), as aparências não correspondem exactamente às realidades. O sofrimento do inquilino é diferente do que o espectador (e a família de Daisy) julga. Nem a estranha mala que ele transporta e esconde nem o mapa com o traçado geográfico dos assassinatos o vêm a revelar como o perigoso assassino que todos temem.

Hitchcock pontua a história com momentos de humor discretos e com traços descritivos de uma população londrina amedrontada pelo espírito de suspeição permanente. Com alguma ironia, o vendedor de jornais declara: “Terça-feira é o meu dia de sorte.

A casa da família de Daisy é enigmática e, de algum modo, assustadora. Quase parece trazer uma associação à casa de Norman Bates tal como Hitchcock a viria a conceber 35 anos depois. As escadas que giram em espiral sobre si mesmas, as portas antigas, as mobílias de aspecto decrépito. É uma casa de cidade e tem o número 13 afixado na porta.

Nos primeiros minutos do filme, vemos o desenrolar dos acontecimentos numa sequência de planos: o grito de uma jovem loira num encontro com a morte; a expansão da notícia através dos jornais e de boca em boca. O aparecimento do corpo parece-me uma antevisão do início de “Frenzy” (1972). Uma pequena multidão junta-se em redor do cadáver.

Depois de apresentar Daisy e a sua família, Hitchcock introduz o estranho inquilino na casa. O actor Ivor Novello dá corpo à figura sinistra e confere uma enorme duplicidade ao seu papel. Não só aquele homem parece perigoso mas frágil também.

Depois há insinuações dúbias junto de Daisy: como quando pega enigmaticamente no ferro da lareira ou quando contempla uma faca. Ou na cena em que observa os cabelos loiros dela parecendo que aqueles caracóis o mantêm cativo de uma realidade terrível.

Enquanto jogam ao xadrez, o inquilino e Daisy contemplam-se mutuamente mas fogem de olhar um para o outro em simultâneo. O espectador verifica, com apreensão, que ela está a desenvolver confiança nele mas, mais do que isso, uma afeição de contornos imprevisíveis.

O homem profere umas palavras. O entretítulo dá-as a conhecer: «Cuidado! Olhe que ainda a apanho!» Claro que ele se refere ao desenrolar do jogo mas não há certezas quanto a isso…

O inquilino age de forma dúbia. Tomara Cary Grant tivesse sido alimentado com tamanha ambiguidade em “Suspeita” (1941) …

A mãe de Daisy está atenta aos movimentos dentro de casa no serão da terça-feira seguinte. O homem sai, procurando que ninguém dê pela sua ausência. A sequência em que ele abandona o quarto sob a escuta da velha senhora evidencia um bom trabalho de montagem das imagens. Hitchcock filma planos gerais e pormenores. E a casa, com as suas silhuetas, parece também sombria.

A ousadia de Hitchcock leva-o a filmar Daisy, tomando banho e mergulhando bem os pés na água quente. Vemos o vapor de água. E a evidente descontracção dela dentro de água quase nos faz pensar também no repouso de Janet Leigh na banheira do seu quarto no Motel Bates. Daisy está tranquila mas, à porta, o inquilino escuta os seus movimentos.

“The Lodger” parece um embrião do cinema que Hitchcock viria a conceber durante 50 anos. A duplicidade e a suspeita remetem para múltiplos filmes seus. O cenário de uma Londres perturbada por um serial-killer viria a ser refeito em “Frenzy”. A ideia do homem falsamente acusado também é um fantasma recorrente no pensamento e na obra do Mestre do Suspense.

O polícia é um personagem inconveniente. Seduz Daisy e impõe-se como seu noivo. Vê perigo na presença do inquilino por quem Daisy desenvolve uma estranha proximidade emocional. E logo se apressa (cegamente ou não) a conduzir um processo de investigação sobre o homem que ameaça tomar o seu lugar.

Os polícias nunca ajudam preponderantemente os heróis de Hitchcock. Hitchcock temia de modo (mais ou menos) subconsciente a ideia da força judicial – da polícia, das leis, dos tribunais e das cadeias.

Aqui o polícia não é um amigo (como acontece em “Mentira” embora o polícia de “Mentira” também não ajude muito) mas um pretendente de Daisy que acaba por conduzir uma acusação formal sobre o inquilino. A população em fúria persegue o homem inocente e ameaça linchá-lo.

Ivor Novello compõe um herói débil, frágil. Ele não tem destreza nem força física. Parece terrivelmente traumatizado (como Gregory Peck em “Casa Encantada” (1945), James Stewart em “Vertigo” (1958) ou até Lawrence Olivier em “Rebecca”. Parece sucumbir ao seu sofrimento atroz ou perder-se na imensidão da sua angústia e dos seus fantasmas pessoais.

“The Lodger” é uma brilhante antevisão, realizada em 1926, de todo o universo tipicamente hitchcockiano. Filme enigmático mas expressivo. Como é enigmático mas expressivo o baloiçar do candeeiro do rés-do-chão sempre que o inquilino se movimenta no primeiro andar.

Como em “Rebecca”, o nome do personagem principal nunca é revelado. Como se, por detrás da aura nebulosa que esconde a identidade do inquilino, estivesse alguém que não interessa saber quem é. Por oposição a Daisy que é bem real, cujo nome é bem familiar, o inquilino é uma figura abstracta e difusa. O primeiro brilhante Hitchcock fascinou audiências e chegou ser considerado o melhor filme mudo britânico. Hoje, nos nossos dias, permanece impressionante e envolvente.

domingo, julho 22, 2007

O PRIMEIRO (GRANDE) FILME DE HITCHCOCK - PARTE I




O ano de 1926 marcou o início da actividade plena de Alfred Hitchcock enquanto realizador de cinema. Antes de assumir a direcção de “O Jardim do Prazer” (1926), o jovem Hitch já se movimentava nos meios da indústria cinematográfica, desenhando entretítulos e trabalhando como assistente de realização ou argumentista.

Diz-se que o punho característico de Hitchcock já se encontra na escrita fílmica desse seu “The Pleasure Garden”. E inclusivamente nas temáticas nele desenvolvidas. O argumento do filme evidencia um jogo de ilusões e de traições amorosas que conduzem ao crime e à formação de um suspense com princípios bem definidos.

Enquanto história de amor, infidelidade, crime e morte, “The Pleasure Garden” bem pode ser já um «hitchcock movie». Mas não é uma obra brilhante.

Os historiadores de Cinema não costumam considerar o filme “The Mountain Eagle” (1926) do qual Hitchcock não gostava rigorosamente nada e do qual não se consegue encontrar uma única cópia completa – Hitchcock terá proferido algo do tipo «Ainda bem que o filme desapareceu porque não se perdeu nada de relevante

Logo, “O Inquilino Sinistro” (1926) bem pode ser definido como o primeiro grande filme de Hitchcock, aquele em que, com desenvoltura, engenho, criatividade e desejo de inovação, ele terá recriado o ambiente de um cenário terrífico onde macabros crimes se vêm a repetir.

Pegando numa história que bem poderia ser a de Jack, o Estripador, Hitchcock situa-nos numa Londres sombria e obscura. Recorre à composição de uma fotografia cheia de jogos de sombras e reflexos, fumos e nevoeiro. É sabido que ele admirava muito o poder visual do cinema expressionista alemão da época e que terá encontrado nele a inspiração adequada para compor as imagens de “O Inquilino Sinistro”.

Costumo identificar este “The Lodger” como sendo o primeiro marco importante da carreira de Hitchcock. Revejo-o numa cassete VHS da Lusomundo (sem qualquer tipo de som adicionado). E é um prazer revê-lo a horas tardias da noite quando todas as pessoas do meu mundo parecem estar a dormir e não há qualquer tipo de ruído em redor de mim. No sossego da noite, quando o poder de introspecção é maior. E os fantasmas parecem mais reais e impressivos.

Quando a Imagem é tudo, o Cinema tende a tornar-se particularmente expressivo. Na ausência do recurso ao som, desenvolvem-se outras aptidões e capacidades. Como o povo diz, «a necessidade aguça o engenho». O cinema puramente visual é inteligente e Hitchcock nunca deixou de conceber a linguagem cinematográfica senão como um encadeamento de imagens criteriosamente montadas. Nos seus filmes, muito regularmente, as imagens revelam mais do que as palavras proferidas.

Hitchcock era peremptório quando defendia que quanto menos entretítulos tivesse que usar, melhor estaria o filme. Idealmente, um filme mudo não precisaria de uma única legenda de apoio.

Quando hoje, em pleno século XXI, vemos filmes da época do Mudo, é coerente que nos pareçam estranhas certas opções técnicas de um cinema que não tendo som, precisava recrià-lo em termos visuais.

Há dois pormenores que usualmente causam desconforto nas audiências modernas: o excesso de expressões faciais e de linguagem corporal manifestadas no desempenho típico dos intérpretes; e a densa maquilhagem usada pelos actores (homens incluídos).

Na verdade, tanto um aspecto como o outro eram quase inevitáveis numa época em que cinematograficamente a imagem do actor precisava de ser vitalmente expressiva e em que o excesso de luzes de iluminação tornava os rostos dos actores muito brancos, quase fantasmagóricos.

Segundo Hitchcock, o cinema sonoro, generalizadamente difundido depois de 1929, permitia facilidades – demasiadas facilidades. O resultado é que pondo os actores a falar, a necessidade de engenho era menor. O diálogo passou a ter um papel preponderante e muitos filmes tendiam a ser concebidos como peças de teatro filmadas.

Desvalorizando o impacto e a importância dos aspectos visuais em favor de diálogos que explicavam tudo, no cinema sonoro tendia a perder-se qualquer coisa de fundamental. Como Hitchcock proferiu algures: «O Cinema morreu um pouco.»
Na verdade, Hitchcock nem sempre reagia de imediato aos progressos tecnológicos. Estava muito apegado às regras do cinema mudo. Tal como estava apegado à imagem a preto e branco. (Só em 1948, realizou o seu primeiro filme a cores) Mas, como grande cineasta que era, ele veio mais tarde a converter-se num verdadeiro perito na idealização e no manuseamento do material sonoro. E também num realizador sensível à composição das cores na fotografia de um filme. (continua)

sábado, julho 14, 2007

O QUE É UM FILME MAU? - CONCLUSÃO




Imaginemos um quadro com uma mancha de tinta vermelha no centro. Todos deverão constatar que se trata de uma tela branca marcada com uma mácula vermelha (a menos que algum dos observadores seja daltónico).

O quadro pode causar diferentes impactos em diferentes pessoas. Uma opinião só poderá ter um valor acrescido se fizer uma avaliação fundamentada da obra, inserindo-a no contexto em que foi criada; referenciando quem a produziu, em que local e em que data; com que objectivos e mediante que mentalidade foi concebida e ganhou existência física.

Interessa entender cada obra de arte no contexto em que foi criada. Ainda assim, é incontornável que, sem rodeios, um mesmo quadro desperte diferentes reacções. Mesmo se se tratar de uma tela branca assinalada com uma mancha vermelha.

Se eu considerar o patamar dos filmes menos interessantes de Hitchcock, estarei a escrever como o advogado do Diabo e numa posição desconfortável.
Considero “Pavor nos Bastidores” (1950) um filme pouco convincente e onde o suspense não é desenvolvido de modo inspirado e cativante. Não aprecio a presença de Marlene Dietrich e constato que Jane Wyman não se empenhou no seu papel de rapariga modesta e pouco vistosa.

“O Caso Paradine” (1947) tem um elenco interessante e cenas visualmente cuidadas – o trabalho de câmara é pontualmente importante. Mas é um filme que revela não ter tanto conteúdo emocional e cinematográfico como promete até certa fase da narrativa.

De resto, vivi duas decepções pessoais com “Os Quatro Espiões” (1936) e “Jovem e Inocente” (1937) porque me parecem obras demasiado rudimentares, sem nenhuma centelha de brilhantismo.

O mesmo não se pode aplicar a “Sob o Signo de Capricórnio” (1949) que é um belo filme dramático passado na Austrália do século XIX – filme nada típico de Hitchcock mas que é filmado com alguma desenvoltura técnica e abrilhantado pela presença magnética de Ingrid Bergman. Diversos aspectos da sua intriga talvez tragam à memória o enredo de “Rebecca” (1940) mas se procurarmos suspense e situações de crime em “Under Capricorn”, não os encontraremos aqui do modo mais comum. Nesse aspecto, o filme pode desiludir o hitchcockiano médio.

O conteúdo melodramático e romanesco do cinema de Hitchcock também está presente no seu “Pousada da Jamaica” (1939). A acção desta obra decorre no final do século XVIII na costa da Cornualha. Filme com personagens misteriosos num ambiente agreste, “Jamaica Inn” foi a primeira adaptação de Hitchcock feita a partir de um livro de Daphne Du Maurier. Mas é uma película aborrecida.

Acredito que o sucesso de um filme decorre da forma como é publicitado. Se as audiências se deslocam a uma sala de cinema e não encontram o que procuram, poderão muito provavelmente sentir-se defraudadas.

De resto, há obras que no seu tempo são aclamadas e depois são esquecidas e menosprezadas. E há aquelas (como “Vertigo” (1958), por exemplo) que só com o tempo recebem o estatuto de criações de grande interesse cinematográfico.

Quem pode verdadeiramente ditar o que é um filme mau ou definir critérios estabelecidos de qualidade? Talvez ninguém. O crítico de cinema pode oferecer a sua perspectiva sobre os filmes. Mas, mais importante do que isso, é a sua missão de informar o público acerca das circunstâncias de produção de cada filme, acerca dos propósitos do cineasta e do produtor e no que respeita a pormenores e factos que podem fugir à percepção do espectador comum.

«Filme Mau?» Não costumo usar essa expressão. Posso defender que não gosto deste filme ou daquele porque não me divertem nem me emocionam nem me sensibilizam. Ou porque estão conotados com o «meu» sentido de «mau gosto». Mas é ajuizado considerar que os piores filmes que concebemos podem apresentar riquezas que nos passam despercebidas ou que não compreendemos no seu verdadeiro sentido.

O estranho encanto (por muitos encontrado) de “A Lojinha dos Horrores” (1960) de Roger Corman pode estar no facto de ter sido incrivelmente mal feito. E já repararam os meus leitores que os filmes de Ed Wood – considerado em tempos o pior cineasta de todos os tempos – estão a receber uma reavaliação?

Foi feita uma remake de “Little Shop of Horrors” em 1986. E Tim Burton criou um filme muito interessante sobre a figura de Ed Wood e sobre as suas obras aberrantes. Até o «mau cinema» é inspirador. E cria impacto.

«Filme Mau»? Não gosto da expressão. Por muito que o cinema possa funcionar como uma indústria, é talvez acima de tudo uma manifestação de arte. E a arte não funciona segundo leis científicas rigidamente estabelecidas.

Os piores filmes de Hitchcock? Não sei bem quais serão. Apenas pude fazer menção àqueles que mais me desiludiram. Mas eu sou apenas um hitchcockiano. Apenas um. Como tantos outros. Porque motivo o meu conceito próprio de «desilusão» servirá mais do que o de outras pessoas?

Apetece-me escrever: “O prémio para o pior filme realizado por Alfred Hitchcock vai para: Sabe Deus…” Mas será que Deus é mais hitchcockiano do que eu?

domingo, julho 08, 2007

O QUE É UM FILME MAU? - PARTE I





Eis é uma questão delicada e complexa; e que está muito directamente relacionada com a acção dos críticos de cinema. Na verdade, enquanto fenómeno artístico, um filme não tem uma qualidade quantificável. O que implica defender que o valor de um filme não será linearmente expressável numa escala de graus. Envolve uma complexidade de pormenores e revela-se nas emoções que tem o poder de desencadear.

Confesso-me um pouco céptico quanto à atribuição de estrelas a cada filme como forma de quantificar o seu valor. A questão é tanto mais complexa quando, não raras vezes, pessoas de igual valor intelectual e semelhante cultura cinematográfica atribuem valores altamente contrastantes ao mesmo filme.

Segundo o meu parecer, o procedimento da avaliação numérica de um filme expressa directamente a percepção que o crítico tem dessa obra. Mas é muito complexo comparar um western de 1949 com uma comédia de 2005. Às tantas, acabamos comparando produtos cinematográficos completamente distintos.

Creio firmemente que a adesão emocional de um espectador a um filme depende dos seus gostos pessoais e das suas preferências de estilo. Mas também das expectativas que são criadas nele.

Consigo identificar um bom filme quando desencadeia efeitos bem sucedidos. Mas atenção: os objectivos traçados e os resultados obtidos podem ser diferentes. Se o objectivo do realizador é chocar e fazer estremecer as consciências e o seu filme nada mais faz do que pôr os espectadores às gargalhadas, então algo de central falhou rotundamente.

A qualidade de um filme está no produto final como um todo ou em partes distintas do seu conteúdo. Mas está também directamente relacionada com os objectivos que levaram à sua realização. O que será afinal um filme mau? Atrevo-me a estabelecer uma definição questionável: será o filme que não consegue concretizar as metas estabelecidas e do qual nada de relevantemente positivo se extrai.

A questão é complexa porque um filme mau pode divertir. Quando vi o filme “Vampiros” (1998) de John Carpenter, dei comigo a soltar gargalhadas mediante a idiotice de certas cenas. O mesmo me sucedeu com “Pesadelo em Elm Street” (1984) de Wes Craven ou com “It´s Alive” (1974) de Larry Cohen. Ri bastante com aqueles filmes que até são do âmbito do cinema de terror.

Não ri tanto com algumas comédias – filmes feitos para provocar o riso – como “Um Vagabundo na Alta-roda” (1986) de Paul Mazursky, “Loucuras de Uma Recruta” (1980) de Howard Zieff ou “Os Ricos e os Pobres” (1983) de John Landis. Esses filmes foram bem recebidos no seu tempo e fizeram rir muitas audiências, o que evidencia que o mesmo material não provoca gargalhadas idênticas em todas as pessoas. Conclusão lógica: se uma comédia de qualidade é aquela que faz rir, não podemos estabelecer valores universais para qualificar o humor.

Posso afirmar sem preconceitos: há filmes mal feitos que divertem. E afinal, se um filme cumpre eficazmente os seus efeitos recreativos, não tem já algum valor?

Desemboquei nestas considerações quando comecei a ponderar quais seriam os piores filmes de Hitchcock. Basicamente, para as audiências em geral, um filme mau é aquele que não diverte ou que não corresponde ao que era esperado. Um observador atento poderá, no entanto, constatar que um filme está bem feito (sob algum ponto de vista) ainda que não o divirta ou que não seja do seu gosto pessoal.

Pergunto-me eu com honestidade: não será que a grande maioria das pessoas é indiferente às perícias técnicas usadas em “A Corda” (1948) de Hitchcock? 60 Anos depois da sua estreia, muitos espectadores devem considerar o filme como uma obra aborrecida, monótona e teatral. E sabem porquê? Porque essa foi a minha opinião acerca do filme quando o vi há 22 anos atrás.

Em 1985, “Rope” estava incluído no catálogo da colecção “The Essential Hitchcock” e era apresentado como um dos melhores filmes do Mestre do Suspense. Daí que a minha decepção no dia em que o fui ver tenha sido enorme. Eu acabara, dias antes, de conhecer duas obras magistrais: “Janela Indiscreta” (1954) e “Vertigo” (1958). E não havia sido sensibilizado para os desafios técnicos impostos a um cineasta que se propõe realizar um filme de 80 minutos, filmando todas as cenas em tempo real, e filmando sempre do princípio ao fim, em sequência e sem paragens.

“A Corda” é aquilo que podemos chamar «uma experiência técnica feita em laboratório» e o seu interesse reside na forma original com que foi concebido e rodado. Foi o primeiro filme a cores realizado por Hitchcock e para a sua concretização foi construído um cenário especial em que as câmaras se moviam e os móveis eram retirados sem interrupção das filmagens. De algum modo, e por causa disso, muitos cinéfilos colocam “Rope” no patamar cimeiro das obras-primas de Hitchcock. Mas isso só contribui para a decepção de espectadores como eu.
O resultado final do trabalho de Hitchcock e de toda a sua equipa não é equiparável ao nível da sua ousadia técnica. Não me parece muito emocionante nem envolvente. Não em 1948. E, muito menos, hoje. O interesse de “Rope” é historicamente relevante mas só os aspectos técnicos do filme me fizeram discernir a sua importância e o seu valor.

Analisando a filmografia de Hitchcock, “Rope” é um filme bem amado pela crítica mas pouco popular entre o público. Contrariamente, há um filme que, por convenção muito generalizada, é considerado o filme mais infeliz e desinspirado do Mestre do Suspense. Trata-se de “Topázio” (1969). Só por esse motivo, entendo que é pertinente escrever um texto dedicado à análise exclusiva da ovelha negra das obras cinematográficas de Hitchcock.

De facto, “Topázio” é um filme ineficaz e pouco sólido. Quando nele se visou construir cenas de suspense, errou-se o alvo. Quando nele se tentou ser realista, o resultado ficou aquém de ser brilhante. Quando nele se procurou emocionar o espectador, só num ou dois momentos se conseguiu suscitar algum choque emocional. Quando nele se tentou semear divertimento típico de um enredo de espionagem eficaz, voltou-se a errar o alvo. “Topázio” é uma obra maçadora e bocejante. Foi um fracasso de bilheteira. E um insucesso junto da crítica.

“Topázio” é um filme mau porque não consegue atingir as metas propostas nem tão pouco alcança uma riqueza inadvertidamente conquistada. Quando o todo não é bom e nenhuma das suas partes distintas (os actores, o argumento, a música, etc.) satisfaz requisitos de qualidade, podemos equacionar a hipótese de estarmos perante um mau filme.
Poderão os meus leitores pensar que estou a apresentar uma série de evidências claras mas procuro simplesmente mostrar que a qualidade de um filme é um valor questionável e controverso.

Se considero “Topázio” um filme menor que não me diverte a não ser pela curiosidade de ter sido realizado por Alfred Hitchcock, poderão muitas pessoas no mundo considerá-lo uma obra com qualidade, valor e interesse. Porque não? Então voltamos ao mesmo aspecto evidente: a Arte não afecta igualmente todas as pessoas; reverte para as emoções, para os sentidos, para a personalidade e para a consciência de cada observador. (continua)