domingo, agosto 06, 2006

SOBRE O MACGUFFIN - O MOTIVO DE TODOS OS MOTIVOS


O Cinema de Hitchcock é para todos os efeitos um fenómeno de criação e de recriação de ilusões. Um entretenimento e uma fuga à realidade. Por isso, quase nunca os seus filmes relatam histórias quotidianas mas mostram antes pessoas do quotidiano em situações extraordinárias.

Para Hitchcock era primordial que o espectador se identificasse com o herói e que, por meio dessa identificação, vivesse intensamente as peripécias do seu percurso atribulado.

O “macguffin” é um termo de importância central na aproximação de Hitchcock ao Cinema. Faz parte de qualquer glossário de princípios hitchcockianos. O “macguffin” simboliza um interesse que mobiliza e afecta densamente o destino dos personagens de um filme.

Pode ser o conteúdo misterioso das garrafas escondidas na adega de uma casa grande (como em “Difamação”). Ou o teor da fórmula secreta que move os espiões e os contra-espiões. Pode ser a causa de se querer a morte de alguém ou o motivo do estabelecimento de uma loucura ou de uma obsessão. Razões e explicações? Hitchcock não perdia muito tempo com elas. Nem era necessário fazê-lo.

O “macguffin” existe para cumprir uma função. É a explicação para um roubo, para uma sabotagem ou para um assassinato. Basta que tomemos consciência da sua importância. Que sintamos que é um pormenor vital.

Nem sempre Hitchcock narrava as histórias do princípio ao fim. Não raras vezes, deixava pormenores insolúveis. E também esse aspecto enriquecia indirectamente o enredo dos seus filmes, tornando-os mais complexos e menos lineares.

Veja-se a densidade emocional dos personagens de “Os Pássaros” que está muito para além da história de terror. Ou a paixão entre Cary Grant e Ingrid Bergman em “Difamação” que acaba por se revelar como estando acima do interesse pelo destino dos vilões e pela intriga de espionagem.

Na verdade, Hitchcock contava sempre o essencial. Mas não perdia tempo a explicar aspectos secundários. A menos que esses aspectos iludissem o espectador e o conduzissem a uma surpresa. (É o que acontece com a trivial questão dos 40 000 dólares roubados em “Psico”.)

Como é que surge o termo “macguffin”? Hitchcock costumava contar a história do “macguffin” a muitos dos seus entrevistadores.

Segundo ele, dois homens viajavam de comboio e um deles terá perguntado ao outro: “Desculpe-me a curiosidade, o que traz o senhor nessa mala?” O seu interlocutor respondeu laconicamente: “É um macguffin.” O homem curioso terá torcido a cabeça e coçado o couro cabeludo. Estava intrigado. “O que é um macguffin? Queira desculpar porque se calhar sou muito ignorante…” O homem da mala olhou-o e respondeu prontamente: “Um macguffin serve para caçar leões na Escócia. É muito útil!
Mas…” – Terá sentenciado o outro entre gaguejos – “Mas não existem leões na Escócia!” Estava intrigado com a razão de ser de uma coisa que não servia qualquer fim. “Não há leões na Escócia? Então o que trago na mala não é certamente um macguffin.” – Concluiu prontamente o outro homem.


Moral da história: O “macguffin” existe porque tem razão de existir e é importante. No entanto, não interessa a Hitchcock nem aos espectadores percebê-lo intrinsecamente. É suficiente que se tome consciência de que é um aspecto de importância crucial.

Uma boa razão para um homem querer matar a sua esposa pode ser o seu desejo de fugir para a Escócia para caçar lá leões. Mas não existem lá leões?! Então não pode ter sido esse o propósito que explica o assassinato. Seja como for, o que interessa é que ele a matou e pode voltar a matar alguém. É nesse receio, nessa emoção que Hitchcock tentará desenvolver o conteúdo da sua história.

O “macguffin” é uma explicação plausível. Mas não interessa verdadeiramente saber em que consiste. O homem matou a sua esposa porque tem uma amante que vive na Escócia e quer ir viver com ela. De qualquer modo, ele até podia querer ir caçar leões a terras britânicas ou à cidade de Paris. Desde que o inverosímil parecesse coerente…

A emoção e, muito em particular, a construção do suspense são muito mais relevantes do que as explicações. Hitchcock enfatiza em cada cena, em cada plano de alguns dos seus melhores filmes o valor da imagem e o propósito dela servir um fim: desenvolver o universo emocional dos espectadores.

“As pessoas pagam para ser assustadas.” – Costumava proferir ele. De facto, pagam para se sentirem tontas e inseguras no ponto mais íngreme do percurso da montanha russa. Ou para se arrepiarem no comboio-fantasma das feiras. Pagam para ver filmes de terror. Para se esquecerem do seu quotidiano. Para se anestesiarem das dores rotineiras e encontrarem uma fuga emocional algures na luz da máquina de projectar filmes.

E o que é o Cinema senão uma máquina de construção de sonhos? Uma fuga à realidade… Ou numa boa hipótese um reenvio para a realidade através do percurso da ficção…

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