domingo, abril 01, 2007

HITCHCOCK EM DIÁLOGO COM TRUFFAUT




Na extensa bibliografia dedicada à análise do cinema de Hitchcock, proliferam obras diversas com conteúdos e objectivos distintos. Algumas delas bem poderão ser de leitura indispensável para uma compreensão de Hitchcock enquanto cineasta e enquanto homem.

O cinema do Mestre do Suspense tem-se revelado a cada nova geração de cinéfilos como particularmente inspirador e apelativo. Sendo inteligente mas muito emotivo, tem feito soltar rios de tinta. Milhares e milhares de pessoas em todo o mundo terão já escrito textos de análise à obra de Hitchcock. Livros, artigos extensos, dissertações e comentários de reflexão.

Mas há um livro especial. Pela condensação de ideias de dois brilhantes cineastas em confronto. “Hitchcock/Truffaut” resulta de uma entrevista alimentada amenamente durante mais de cinquenta horas e no percurso de um esquema inicial com cerca de quinhentas perguntas.

O projecto implicaria que, no diálogo estabelecido entre ambos, fosse abordada a conjuntura de realização e de lançamento de cada filme de Hitchcock, segundo uma perspectiva cronológica.
A conversa foi gravada e transcrita, organizada e divulgada num volume que é, desde há muitos anos, um clássico dos livros sobre Cinema. A sua primeira edição data de 1966, o ano de estreia de “Cortina Rasgada”.

A obra foi depois ampliada com a análise dos últimos 3 filmes de Hitchcock. Truffaut acrescentou algumas páginas ao texto original. Uma curta entrevista conduzida por si próprio a Hitchcock aquando da estreia de “Frenzy – Perigo Na Noite” no Festival de Cannes, em 1972. E uma soma de memórias e de citações de cartas endereçadas por Hitchcock a Truffaut quase até à data da sua morte, em Abril de 1980.

“Hitchcock/Truffaut” confronta-nos com Hitchcock no máximo do seu esplendor intelectual, falando do seu trabalho e dos seus ideais cinematográficos. Truffaut não desenvolve o tema da sua decadência física e profissional. Mas transparece com clareza que o insucesso de filmes como “Topázio” (1969) terá deixado o seu criador vulnerável e inquieto. A sua última obra, “Intriga em Família” (1976), não foi exactamente construída como o ponto final de uma carreira brilhante.

Hitchcock queria trabalhar mais mas não sabia sobre que argumento se debruçar. Terá hesitado e vivido uma angústia evidenciada nas seguintes palavras desta sua carta a Truffaut: «Ando desesperadamente à procura de um assunto. Você já se deu conta de que é livre de fazer o que quiser? Mas eu só posso fazer aquilo que esperam de mim, quer dizer, um filme policial ou de suspense, e isso é que eu acho mais difícil.» (p. 255)

Foi exactamente há 20 anos (em Fevereiro de 1987) que a Editora Dom Quixote se abalançou a lançar este livro em Portugal, mediante o título “Hitchcock – Diálogo Com Truffaut”. Não é muito comum os livros sobre Cinema figurarem nos tops de vendas do mercado nacional. Mas qualquer coisa nesta obra cativava o nosso público cinéfilo. E vivia-se, naqueles dias, uma certa nostalgia em relação a Hitchcock.

Faziam-se reposições em sala dos 5 filmes da colecção THE ESSENTIAL HITCHCOCK. Decorriam os ciclos do cinema Quarteto, em Lisboa, nos anos de 1985, 1986 e 1988. Muitos dos seus filmes mais famosos estavam nas prateleiras dos videoclubes e passavam na RTP. Procedia-se à exibição televisiva da série “Alfred Hitchcock Apresenta…” numa rubrica diária consagrada aos clássicos da televisão. E à estreia de uma nova série com o mesmo título que apresentava «remakes» dos episódios dos anos 50. Logo, o livro de Truffaut saiu para as livrarias portuguesas numa ocasião propícia.

É um livro singular. Apresenta algumas curiosidades como a listagem das breves aparições de Hitchcock nos seus filmes (p. 117), a reprodução de 32 planos da sequência do chuveiro em “Psico” e a ficha técnica de cada uma das obras. Mas são as declarações de Hitchcock, na primeira pessoa, que o tornam relevante.

Em meados dos anos 80, encontrava-me eu algures no contexto da jovem geração que descobria Hitchcock. Já era confessadamente apaixonado pelos filmes. Mas nunca, como até aí, me sentira tão fascinado pela arte cinematográfica e pela descoberta das técnicas e das estratégias usadas pelos cineastas. E, na verdade, este belo livro também foi um instrumento de abertura dos meus horizontes para essas perspectivas.

Costumo escrever: Com “Música no Coração” (1965), “Ben-Hur” (1959), “Planeta dos Macacos” (1968) e “Férias em Roma” (1953), aprendera a gostar de filmes e a viver com entusiasmo uma ida ao cinema. Com Alfred Hitchcock, conquistava o prazer de estar atento aos pormenores técnicos de uma película qualquer, às opções visuais e sonoras, aos truques narrativos do argumento, ao valor do desempenho particular de cada actor e à importância de um «casting» bem sucedido; à riqueza que advém de um genérico engenhoso ou de uma cena particularmente trabalhada e meticulosamente concebida.

“Hitchcock – Diálogo Com Truffaut” foi um dos primeiros tijolos do meu pequeno arquivo cinematográfico. Costumo folhear o livro com frequência. E ele parece conseguir sempre manifestar-me algo de novo.

A semana passada, detive-me numa passagem da página 196. Está lá um episódio um pouco caricato mas que é sintomático da personalidade do Hitchcock. Revela astúcia na observação. Mas também despretensiosismo na forma como foi narrado. E algum humor latente quando se associam pormenores biológicos e comportamentais a um sentimento poético como o amor ou a devoção à pessoa amada. O modo como Hitchcock descobriu que amar alguém é nunca o largar:

«Eu seguia num comboio, de Bolonha para Paris, que atravessava Etaples muito lentamente. Era um domingo à tarde; pela janela via uma grande fábrica num edifício com tijolos vermelhos e, contra a parede, havia um jovem casal; a rapariga e o rapaz estavam de braço dado e o rapaz urinava contra a parede; a rapariga nunca lhe soltou o braço; olhava o que ele fazia, olhava o comboio a passar e a seguir voltava a olhar o rapaz. Achei que aquilo era, realmente, o verdadeiro amor “no trabalho”, o verdadeiro amor que funciona.»

Este episódio explicará porque Cary Grant e Ingrid Bergman serão intensamente filmados sem se separarem numa longa sequência de amor, em “Difamação” (1946). Como se arrastam no espaço, colados um ao outro e entre muitos beijos e carícias. Com a câmara atrás deles.

Gostava de transcrever também este sonho enigmático de Hitchcock:

«H - …os meus sonhos são muito razoáveis. Num deles encontrava-me na Alameda Sunset, debaixo das árvores, à espera de um táxi amarelo (“yellow cab”) para ir almoçar. Não havia táxis amarelos, pois todos os carros que passavam eram de 1916. E eu pensei para comigo: “Não vale a pena ficar aqui a perder tempo à espera de um táxi amarelo, pois estou a sonhar um sonho de 1916.” Então fui a pé até ao restaurante.
T – É realmente um sonho, ou um gag?
H – Não, não é um gag, é um sonho.»
(p. 193)

Quando releio “Hitchcock – Diálogo com Truffaut”, sinto-me como se estivesse perante o cineasta, a ouvi-lo falar de si mesmo e a contar histórias relacionadas com a sua obra. E ocorrem-me questões que gostaria de ver respondidas por Hitchcock.

Na procura de uma melhor compreensão do seu trabalho, até uma passagem já lida pode trazer esclarecimentos. Vou procurando, de forma modesta, descodificar muitos dos pormenores do universo hitchcockiano. A minha investigação começou há 22 anos e é orientada mediante diversas direcções. Mas o livro de Truffaut sempre foi central para a obtenção de respostas. Para a conquista de certezas, de hipotéticas verdades e de novas interrogações.