domingo, junho 29, 2008

EU, CANDIDATO A ESCRITOR, ME CONFESSO


Em cima, Alfred Hitchcock com o escritor Evan Hunter - célebre autor de livros policiais e do argumento de "Os Pássaros" feito a partir de um conto da romancista inglesa Daphne Du Maurier

É uma situação recorrente as pessoas ouvirem-me narrar um certo diálogo que a minha professora primária travou comigo. Tinha eu então sete anos. A boa senhora de aspecto robusto e austero perguntou-me o que gostaria de ser. Os meus colegas tinham ideias bem definidas acerca dos seus objectivos futuros. (Pelo menos, assim parecia. Quando se está na 3ª Classe, existe uma enorme flexibilidade vocacional.)

Eu respondi com bastante prontidão. Queria ser escritor. Sabia que o trabalho que mais prazer me oferecia era o da escrita. Não sabia se um escritor podia viver bem ou mal, podia ganhar muito ou pouco. Se conversávamos sobre ambições na vida, desejaria escrever muito.

Como sou demasiado tímido, a escrita permite-me trabalhar dentro do meu mundo pessoal. E isso já me agradava então. Por outro lado, aprendera a escrever pouco depois dos quatro anos. Com o auxílio e dedicação da minha avó. Aos sete anos eu já era um veterano na arte.

Escrevia poesia (com rimas ou sem rimas). Contos e pequenas histórias. Construía relatos e comentários críticos aos programas que via na televisão. Tudo em jeito de brincadeira levada a cabo com algum profissionalismo e seriedade. Usava uma máquina de escrever alemã dos anos 50. E quando escrevia, embarcava no meu mundo próprio que cada vez mais adoptei como genuinamente meu.

Na realidade, querer qualquer coisa não significa conquistá-la. Ter ambições profissionais inatas não faz pressupor talento natural para um determinado trabalho. Para quase tudo na vida, é preciso empenhar muito tempo e muito esforço.

Li recentemente, uma entrevista feita ao famoso escritor Ray Bradbury. Ele sempre alimentou um fascínio particular pelo Cinema. Criou o argumento para vários filmes (entre eles “Moby Dick” de John Huston). E sempre revelou muito receio de adaptar para Cinema obras escritas por outras pessoas. Do mesmo modo que considerava infame a forma como certos argumentistas trabalharam livros seus.

Quase todas as pessoas escrevem. Algumas delas escrevem bem. Mas facilmente uma pessoa se consegue achar capaz de escrever um livro. Desde que aplique empenho e vontade – ou às vezes mesmo sem eles. Não existe essa presunção em relação ao trabalho de um compositor, de um engenheiro ou de um médico.

A situação é particularmente irritante no universo dos filmes. Porque todos parecem capazes de criticar o trabalho do argumentista. Muito mais prosaicamente do que o fazem em relação ao desempenho do editor de imagens, do set-designer ou do director de fotografia. Esse pormenor irritava Ray Bradbury.

O meu mais nobre e altruísta objectivo enquanto criador de escrita (não direi escritor) seria ajudar os outros. A actividade de um escritor pode ser decisiva para os seus leitores: ela pode contribuir para o bem-estar deles através de textos tecidos mediante estratégias precisas. Oferecer lições de vida, ensinamentos. Contar histórias fascinantes que conseguem prender um livro às mãos como se tivesse cola. Agarrar a atenção de quem lê com relatos de fazer suster a entrada de ar nos pulmões e de eliminar todo o sono e toda a fome. Permitir partilhar sabedoria ou pensamentos geniais emitidos por quem pensa de modo invulgarmente brilhante.

Meus amigos, confesso. Confesso que não devo ter muito para oferecer. Sinto-me às vezes demasiado cansado para transmitir bem-estar aos que me lêem. O tempo é pouco e passa depressa. As imposições da vida não nos deixam ocupar as horas de cada dia com aquilo que mais nos apaixona.

Serei um candidato a escritor. Mas não consigo ligar o botão de produção de escrita logo que me sento com a caneta na mão. Às vezes, quando começo a redigir qualquer coisa, já passou uma hora e não tenho tempo para brincar mais aos escritores. Gosto de pensar no prazer que a escrita me dá. Mas não posso tomar a escrita como uma obrigação profissional ou um dever moral.

Há tanta coisa no mundo acerca da qual vale a pena escrever. E há tanta coisa no universo da nossa imaginação que transcende esse mundo - mas que também é real nem que seja no nosso cérebro...

Caminho para os quarenta anos. E parece-me tão vaga a sensação de realização profissional. Só gostava de escrever tão bem quanto possível … Acerca de certas pessoas, de certas percepções da vida e de certos tesouros mundiais que enriquecem o património cinematográfico e a história de tudo o que foi o Cinema. Não será pena se um dia morrer e não tiver conseguido louvar na Vida o melhor que ela tem? Louvar por meio da escrita, que não sei fazê-lo de outra forma…

Este blog vai terminar no dia 13 de Agosto. Durante mais de três anos, procurei encontrar tempo na minha rotina diária para reflectir sobre o Cinema do Hitchcock. Mas deixei muito por dizer. Até porque tanto já foi dito acerca do Mestre do Suspense que não valeria a pena repetir ideias sentenciadas centenas de vezes pelo mundo fora…

Vou procurar aproveitar o tempo que falta. Com o calendário na extremidade da minha secretária. Contabilizando os dias para fazer uma boa gestão do material acerca do qual ainda devo escrever. O tempo não pára. Não pára para quem vive. Não pára para os heróis hitchcockianos que têm as suas vidas presas por um fio – ou que têm poucos segundos até a bomba explodir, ou serem descobertos, ameaçados, feridos ou mortos. Não pára para os escritores. Nem para os candidatos a escritores.

terça-feira, junho 03, 2008

«VERTIGO» HÁ CINQUENTA ANOS




A estreia de «Vertigo» foi há cinquenta anos. Mais precisamente, no dia 9 de Maio de 1958. Em São Francisco, a cidade onde decorre a acção do filme.
Cinco décadas depois, o filme de Hitchcock permanece intenso e é um belo exemplo de como a arte cinematográfica consegue seduzir de múltiplas formas. Pelo poder das imagens (em Hitchcock, o aspecto visual é preponderante), pela inteligência do argumento, pelo fascínio da música, pelos aspectos técnicos da montagem das cenas e do tratamento da cor; pela presença dos actores, pela ousadia técnica num período em que filmar a queda de um corpo ou a encenação visual de uma vertigem exigia perícia e «know-how».

Cinquenta anos depois, aqui deixo duas ligações para o Youtube: uma para o genérico do filme, outra para o trailer da reposição em cópia restaurada (tal como foi apresentado há cerca de uma década).

Considerado, por muitos, como o melhor filme do Mestre do Suspense; idolatrado por cinéfilos de todo o mundo que o ousam colocar na lista dos dez melhores de sempre, «Vertigo» é uma obra ímpar. Uma viagem ao universo da angústia e da obsessão. Um filme peculiar que desenvolve a sua intriga sob um suspense que tem muito mais de emocional e de psicológico do que trepidante e rocambolesco.

«Vertigo» representa um trajecto febril pelo patamar das emoções, dos sentimentos, das paixões que se convertem em obsessões e do amor que se converte em neurose. Trajecto que parece sinuoso e interminável. Como o desenho de uma espiral. Que pode ter tido início na cena em que o protagonista fica suspenso no telhado e só parece ter fim quando ele se debruça do alto do campanário (sem medo de perder nada talvez porque já tenha perdido tudo).

«Vertigo» mostra-nos que desejar qualquer coisa implica deduzir que ela existe de algum modo. Que o passado é tão real como o presente. Que o pesadelo angustia e assusta tanto como a realidade de quem está a dormir e a sonhar. Que a fronteira entre o que existe e o que se vê pode ser maior do que parece. Que amar é um sentimento vivo mesmo que signifique a paixão por algo que morreu (ou que, pior ainda, nunca existiu).

A um universo hipnótico e onírico, Hitchcock contrapõe o mundo de Midge – que não tem magia, nem fantasmas, nem sedução erótica; repare-se que nas cenas em que Midge aparece, não pontua a música assombrosa e apaixonada de Bernard Herrmann.

Hitchcock mostra-nos claramente que o fascínio de algumas das grandes emoções implica vertigens; que a abertura para a contemplação da beleza e do prazer pressupõe o conhecimento daquilo que é horrível ou doloroso. A paixão de Scottie por Madeleine é verdadeira mas perigosa. Bela mas venenosa. Romântica mas dissonante. Como a banda sonora de Herrmann.