sábado, novembro 10, 2007

UM BRINDE À AMIZADE


Aprendi nos meus estudos de Antropologia que o ser humano é naturalmente gregário e que vive fácil e espontaneamente em grupos ou em tribos. É um tipo de criatura que vive bem em sociedade, tomando benefício das associações que estabelece. Nos nossos dias e com a controversa mas inevitável globalização, os homens e as mulheres do mundo inteiro tendem a viver no contexto de uma mesma unidade.

Como terá afirmado Kofi Annan numa explicação sua acerca da pertinência da Organização das Nações Unidas, mais do que nunca na história humana, partilhamos todos um destino comum. Só poderemos perspectivar um futuro risonho se enfrentarmos juntos as dificuldades de todos e de cada um. Neste contexto, as artes em geral e o Cinema em particular não pertencerão a um povo ou a um país mas ao Mundo.

A união entre as pessoas é inteiramente reforçada quando nasce uma amizade ou um amor ou um qualquer tipo de dedicação. Um amigo escuta, aconselha e existe. Os amigos funcionam como redes de contactos e podem influenciar-nos de modo particular e personalizado. Cada pessoa com a sua identidade própria tem o poder e a capacidade de mobilizar recursos e mecanismos. Às vezes, um amigo não faz absolutamente nada e ajuda. Só porque existe. Só porque sabemos que está presente e que faz parte integrante da nossa vida.

Num mundo de injustiças, de desigualdades e de realidades cruéis, um amigo pode ser um contraponto à nossa tristeza e desalento. Claro que faço menção a amigos verdadeiros – não existem, na realidade, amigos falsos. Só amigos e não amigos. Já dizia Aristóteles que o infortúnio tem a capacidade de nos mostrar aqueles que são realmente amigos. Pois aqueles que se afastam quando temos problemas, não serão amigos – de modo algum.

Vejo certas personalidades do Cinema, da Música e da Literatura como uma espécie particular de amigos. Na verdade, elas não me ouvem nem aconselham. Mas existem. Estão sempre onde eu as procuro. E oferecem-me alegria, bem-estar e inspiração. Não é exactamente isso que um amigo faz? Não é exactamente esse tipo de efeitos que um amigo opera em nós?

O velho Hitchcock não me pode emprestar dinheiro se eu tiver a carteira vazia e andar esfomeado. Também não me consegue conduzir a um emprego fabulosamente bem pago e maravilhosamente recompensador e significativo. (Muito menos, sendo eu um antropólogo de formação.)

Se estiver sozinho e mal de amores, o bom Hitch não me consola por meio de palavras dirigidas assumidamente para mim. Mas ele existe nos filmes que posso sempre ver e rever. Embora nunca me tenha conhecido. Embora possa até ter trabalhado exclusivamente para si mesmo, para a sua família e para a sua consagração – e não para um antropólogo pensativo que escreveria sobre ele muitos anos depois da sua morte.

Hoje faço um brinde à Amizade e aos amigos. Procuro firmemente não parecer lamechas numa crónica com estes contornos. Haverá pessoas que vivem bem sozinhas, isoladas. Um pouco de misantropismo até é pontualmente conveniente. Todos precisamos de momentos de privacidade. Mas eu não vivo bem sem os meus amigos.

Eles sabem quem são. E à sua maneira, entre eles, estão pessoas cujo talento e cujo desempenho no passado ainda hoje contribuem para o meu bem-estar. Gershwin, Bach, Ella Fitzgerald e Amália, Julie Andrews e Nat King Cole. Os Madredeus e Rodrigo Leão. David Lynch com as suas bizarrias. Iñárritu com as suas histórias habilmente cruzadas entre si. Frank Capra com as suas inspiradas lições de Vida. Fritz Lang com os seus pesadelos fílmicos. Jacques Tati com os seus sorridentes retratos do nosso mundo. Bernard Herrmann cuja música casa em perfeição com as imagens de cineastas como Hitchcock, Truffaut e Scorsese. Ou Henry Mancini, compositor, cujos trabalhos tanto agradam no contexto dos filmes como em CD.

O ser humano vive da Lógica e da Emoção. Do Raciocínio e dos Sentimentos. É quase imperativo tomarmos consciência da alegria que os nossos amigos nos despertam. Hoje brindo à Amizade. Aos amigos. Aos meus amigos e aos dos outros. À Amizade. A todos os tipos de Amizade verdadeira.

ALGUNS AMIGOS NA CINEMATOGRAFIA DE HITCHCOCK:

- Em "Vertigo", Tom Helmore é o pior amigo que se pode imaginar.

- Em "Desconhecido do Norte-Expresso", Robert Walker é um amigo estranhamente dedicado que só oferece amizade ou morte.

- Em "A Corda", os dois amigos que matam não são unidos por amizade mas antes por um amor proibido.

- Em "Mentira", Hume Cronyn é o perfeito amigo que nos visita rotineiramente e conversa connosco sobre as trivialidades que nos divertem.

- Em "Frenzy", Clive Smith é o amigo que ajuda até certos limites, nomeadamente enquanto a sua mulher tolerar isso.

- Em "Difamação", os amigos de Claude Rains, aqueles que frequentam a sua casa, aqueles com quem comunica directamente, são os seus carrascos.

- Em "Janela Indiscreta", Wendell Corey é o amigo que não ajuda muito, que solta graçolas a nosso respeito mas cujo número de telefone temos na nossa agenda.

- Em "Casa Encantada", Michael Chekhov é o velho amigo, conselheiro e protector, sapiente e vivido, a quem recorremos em busca de orientação e de conselhos.

- Em "O Homem Que Sabia Demais", os amigos parecem vir depois da família.

- Em "O Terceiro Tiro", os amigos funcionam como uma rede de solidariedade que combate as irónicas adversidades.