sábado, dezembro 31, 2005

SOBRE A CONCLUSÃO DOS FILMES...


Se a nossa vida neste ano de 2005 fosse equiparada a um filme do Hitchcock, o mais certo é que o clímax do suspense se estabelecesse sensivelmente no dia de Natal. Ou mesmo depois. E o genérico final não começaria antes do dia 31 de Dezembro. Seria breve, incisivo e directo. Talvez nem apresentasse letras para além do termo THE END.

Até finais da década de 60, princípios da de 70, o genérico final era muito curto ou mesmo inexistente. Grandes clássicos como “E Tudo o Vento Levou” (1939), “Casablanca” (1943), “Ben-Hur” (1959), “My Fair Lady” (1964) ou “Música no Coração” (1965) terminam com uma rotineira legenda dizendo “FIM” e com uma listagem dos (principais) elementos do elenco.

Sou daqueles cinéfilos que fica dentro da sala de cinema até a cortina se fechar diante do écran. (Quando há cortina por correr) Considero que é louvável estar atento aos nomes da equipa de produção de um filme. Hoje, e desde há cerca de 35 anos, é costume nomear todos os participantes que directa ou indirectamente participaram na feitura do filme.

Às vezes, os genéricos finais são enormes e referem também as instituições que facilitaram a realização do filme, os créditos relativos aos serviços prestados, aspectos técnicos relacionados com o material de filmagem, os nomes das músicas não originais incluídas na película e seus autores e muito mais…

À data da sua estreia em 1978, “Super-Homem” de Richard Donner era o filme com o genérico final mais longo: cerca de 7 minutos de extensão. Medida talvez despropositada ou não.

Seja como for, hoje há procedimentos que por lei são obrigatórios. A informação em relação à duração de um filme inclui o tempo do genérico final que não costuma ser muito conciso nos nossos dias. E que muitas pessoas desprezam com total desapego.

Eu gosto dos genéricos finais. Depois do termo do filme, eles ajudam a promover o estado de espírito certo para quem viu a obra e vai sair da sala de cinema. Por isso, penso que é importante ponderar qual a música que deve acompanhar a passagem dos nomes, o aspecto gráfico das letras e a rapidez com que passam.

A verdade, meus caros amigos leitores, é que o genérico final cimenta um ambiente que pode resultar como um encaixe perfeito para a conclusão de um filme. Trata-se de definir uma atmosfera própria.

Nos tempos áureos do cinema de Hitchcock, os genéricos finais eram insignificantes. O genérico de abertura do filme (de forma tradicional, anterior a qualquer outra imagem do filme) incluía os nomes e as referências centrais na produção da obra.

Nos anos 50, genéricos de abertura como os de Saul Bass (que trabalhou com Hitchcock nas sequências de abertura de “Vertigo”, “Intriga Internacional” e “Psico”) eram invulgares. Em inícios da década de 60, outro grande artista dos genéricos chamado Maurice Binder criaria um padrão interessante para os filmes de James Bond.

No entanto, raramente o genérico dos filmes era, nesses dias, o produto acabado de um trabalho artístico meticuloso. O genérico final era pobre, curto e desinteressante. Como se depois da palavra FIM, nada mais interessasse verdadeiramente.

O caso de “Citizen Kane” (1941) de Orson Welles é peculiar. É das poucas obras clássicas que apresenta um genérico após o termo da acção. A revelação em torna da palavra enigmática ROSEBUD é impressiva e depois a listagem dos nomes dos actores e técnicos revela-se eficaz. Mas “Citizen Kane” era uma obra invulgar a todos os níveis. Welles voltaria a usar o mesmo tipo de conclusão noutros filmes.

Chamar-me-ão cinéfilo fanático porque vejo cada filme até ao seu último segundo. No entanto, acredito que o genérico de conclusão de uma película é essencial. Nas últimas décadas, tem-se procurado promover o interesse das letras finais, intercalando imagens adicionais com os nomes e as informações apresentados.

Na conclusão do segundo filme da saga Matrix, era mostrado um trailer com cenas da terceira parte. Muitas pessoas não o terão visto certamente. Foi uma estratégia de marketing usada com algum engenho.

Em muitos filmes ligeiros, utiliza-se o espaço do genérico final para apresentar cenas que não foram utilizadas ou que revelam imagens cómicas registadas durante as filmagens.

Parece óbvio que, nos dias que correm, poderemos perder algo de interessante se virarmos as costas para o écran antes do momento certo. Mas é comum, em muitas salas, acender a iluminação e abrir as portas enquanto passam os créditos do filme. É o mesmo que convidar as pessoas a sair ou dizer-lhes algo do tipo: Podem ir-se embora porque ninguém os obriga a ver o que não vos interessa”.

O final dos filmes de Alfred Hitchcock é, não raras vezes, o seu momento menos brilhante. Penso em filmes como “Difamação” (1946), “Os Pássaros” (1963) ou mesmo “Intriga Internacional” (1959) que termina muito apressadamente. E de que maneira!

As cenas a seguir ao clímax do suspense pareciam não motivar Hitchcock e é compreensível o seu desinteresse pelas imagens finais, onde se instaura um happy-end, as personagens estão felizes e os espectadores mais desapegados da acção da história.

Terminar com um final feliz não implicava para Hitchcock ser obrigado a rodar muitas cenas. Às vezes, um ligeiro pormenor podia servir os propostos pretendidos.
Em “O Homem Que Sabia Demais” (1956), a cena final é curta e simbólica. Como em “Mentira” (1943), “Desconhecido do Norte Expresso” (1951), “Sabotagem” (1942) ou “Correspondente de Guerra” (1940).

Mas não sejamos demasiado severos! Hitchcock também filmou algumas conclusões belas e eficazes. Pensemos em “Janela Indiscreta” (1954), “Cortina Rasgada” (1966) ou principalmente em “Rebecca” (1940).

O final de “Os Pássaros” (1963) é absolutamente frustrante. Direi mesmo que é a única mácula num filme genial. O termo de “Psico” é mais demorado e explicativo. O monólogo de Mrs. Bates com o rosto de Norman Bates é perfeito. Mas o muito brilhante efeito de sobreposição da caveira com o rosto de Norman passa completamente despercebido. Milhares e milhares de pessoas terão visto “Psico” sem repararem naquele pormenor simbólico e visualmente soberbo. A imagem passa demasiado depressa e, logo a seguir, vemos o carro de Janet Leigh a ser retirado do pântano e as lacónicas palavras THE END.

O caso de “Vertigo” é sintomático. É impressivo, brutal e um pouco surpreendente. Mas é um final abrupto. Quase não temos tempo para respirar depois de Kim Novak cair para o abismo e Stewart se debruçar para vê-la. O filme termina de forma demasiado brusca. Sente-se isso na sala de cinema mas também na sala-de-estar onde temos o nosso leitor de DVD.

O genérico final pode ser o instrumento perfeito de inserção do espectador no ambiente da cena derradeira. O caso de “Vertigo” é muito ilustrativo. A cópia restaurada e apresentada em 1998 apresenta um genérico final com os nomes das pessoas que participaram no trabalho de restauro visual e sonoro. E o que sucede é que se atribuiu assim ao filme um complemento que ele originalmente não tinha. Uma espécie de prolongamento do ambiente sinistro final suportado com o apoio da música do genérico de abertura.

Não foi acrescentado à obra nada que não lhe pertencesse. Não se procedeu como se tivéssemos pintado um chapéu na cabeça da Monalisa de Da Vinci. Mas antes se propiciou uma conclusão estética e artisticamente mais equilibrada. Agora sim o final de “Vertigo” parece equilibrado e completo. Era uma obra-prima e permanece uma obra-prima. Mas, mais do que nunca, chegamos à conclusão do filme e tomamos consciência disso. O trabalho de restauro é irrepreensível. Mas também o pequeno genérico final opera um bom efeito.

Hoje, à luz do que temos visto nas últimas décadas, penso que se a nossa vida no ano de 2005 fosse equiparada a um filme, ofereceríamos mais espaço ao genérico final. O termo da acção seria a 20 de Dezembro. E aos últimos onze dias, equivaleria a apresentação cuidada dos créditos do filme.

É importante essa apresentação, tem interesse e várias finalidades. Agora só me resta desejar que o novo ano que amanhã começa, seja como que um filme feliz para o mundo inteiro. Há sempre manifestações de maldade e egoísmo em todas as histórias. Não se compreende um bom sentimento senão por oposição a um mau sentimento. Também não se entende a alegria sem percepcionar o que é a tristeza.

Que haja muita justiça, paz e harmonia no novo ano. Um pouco como em “O Terceiro Tiro” (1956) de Hitchcock. Aí todos são inocentes. Ninguém precisa de se sentir culpado. O Harry não foi morto e a ideia do crime não passou de um equívoco. Será pedir demasiado?

sexta-feira, dezembro 23, 2005

UM NATAL COM HITCHCOCK



Sempre que alguém se refere ao domínio da Música no universo de Hitchcock, um nome é absolutamente incontornável: o do compositor Bernard Herrmann. O seu trabalho, a sua vida e a sua extensa colaboração com o Mestre do Suspense oferecem-me mil ideias sobre as quais gostaria de escrever.

Na semana das festas natalícias, aproveito para relembrar o nome de Bernard Herrmann. Ele faleceu no dia de Natal do ano de 1975. Foi há trinta anos, exactamente. Após ter completado as gravações da música que compôs para o filme de Martin Scorsese, “Taxi Driver” (1975).

Herrmann foi nada menos do que um dos melhores compositores de Música para Cinema. Trinta anos depois, saúdo o seu trabalho, a sua genialidade e a sua perseverança. E prometo apresentar aqui um texto de evocação da sua obra.

Estamos na semana do Natal. Esta época festiva traduz-se em muitas expressões de amor e em gestos que simbolizam o ideal da fraternidade entre todos os homens. O Cinema está repleto de filmes fabulosos que nos ensinam muito do que podemos aprender com o espírito natalício.

Vejam, por exemplo, uma obra-prima de Frank Capra chamada “Do Céu Caiu Uma Estrela” (1946). Ou reparem na beleza emocional que deriva de filmes especiais como “O Vale era Verde” (1941) de John Ford, “O Feiticeiro de Oz” (1939) de Victor Fleming, “Música no Coração” (1965) de Robert Wise ou “ET” (1982) de Steven Spielberg. São obras poéticas que iluminam muitos momentos de festa passados em família.

Claro que não vejo no suspense macabro de Hitchcock qualquer traço dos ideais do Natal. Mas, se dizem que o Crime não compensa, confesso aos meus leitores que tenho vivido felizes momentos natalícios em redor dos crimes hitchcockianos. Os meus amigos conhecem-me bem e costumam oferecer-me filmes e livros sobre Cinema. Portanto, bem podem imaginar como vivo certas tardes de dia de Natal. E escrevo: um bom crime hitchcockiano também é uma dádiva de Deus.

Não creio que Hitchcock fosse capaz de filmar um genuíno e natural filme de Natal. Porque não lhe interessava conceber um filme proveniente desse universo. Mas quem sabe o que era possível? (Não quis Hitchcock filmar uma obra inteiramente na Disneylândia? Teria sido interessante observar o resultado final de um tal trabalho. Mas Walt Disney terá repudiado veementemente a ideia!)

Um filme de Natal hitchcockiano? O mais provável é que no argumento dessa obra incrível, estivesse um corpo debaixo da mesa da Consoada. E que o mais belo embrulho colocado junto à árvore de Natal fosse um frasco de veneno. Mas o Natal hitchcockiano seria mesmo assim…

A IMAGEM, O SOM E A PALAVRA...


Hitchcock era um defensor consciente ou inconsciente do primado da Imagem sobre a Palavra. Alguns dos melhores momentos do seu cinema são essencialmente visuais. O diálogo não é determinante nestas cenas mas meramente complementar. Isto não significa dizer que o som é dispensável ou que não houvesse rigor na criação sonora dos seus filmes. Os sons no cinema de Hitchcock são importantes: a Música e os ruídos decorrentes da acção. Mas é a Imagem que mostra a maior dimensão da realidade.

Talvez Hitchcock fosse mais genial a criar a Imagem do que a escolher os diálogos dos personagens. Por isso, me parecem tão relevantes inúmeras cenas da sua obra em que não há diálogos.

“Psico” (1960) apresenta sequências inteiras de imagens sem diálogos. A acção decorre da expressividade das imagens e da genialidade da música. Mas também os silêncios são relevantes.
Na cena mais famosa do filme, há uma inteligente gestão do som. Quando Janet Leigh entra na banheira, há uma suspensão temporária da música. Quase só se ouve o som da água que corre do chuveiro. Por isso, o ataque é mais imprevisto e o facto de ser tão imprevisível ainda o torna mais brutal. Logo então, os acordes cortantes da banda sonora criam um efeito arrepiante.

Bem sabemos também que Hitchcock fez questão de adicionar um efeito sonoro suplementar: o som das facadas em simultâneo com os gritos da rapariga. Atenção: foi gravado o som de facadas em melões. Nenhum ser humano foi propositadamente esfaqueado. Nem nenhum cão ou gato.

“Psico” pode ser o melhor exemplo para apontar o que referi. Mas o cinema de Hitchcock está densamente iluminado por cenas deste tipo. Encontramo-las em “Vertigo” (1958), “O Desconhecido do Norte Expresso” (1951), “Janela Indiscreta” (1954), “Chamada para a Morte” (1954), “O Homem Que Sabia Demais” (1956), “Intriga Internacional” (1959), “Cortina Rasgada” (1966), “Marnie” (1964); em “Rebecca” (1940) e “Casa Encantada” (1945) …

São cenas em que o elemento visual é preponderante embora o som também tenha requerido tratamento. O exemplo mais demonstrativo de um filme sem banda sonora mas com um trabalho apurado na produção e definição do som é “Os Pássaros” (1963).

Foi um enorme desafio para Hitchcock conceber um filme de terror sem música porque a música é muitíssimo eficaz na recriação de ambientes sinistros. Aqui, os sons registados com pássaros são sobrepostos, distorcidos, acentuados ou diminuídos consoante os imperativos decorrentes da acção.

A recriação do ataque dos pássaros à casa de Rod Taylor assenta na eficácia do som estridente, perturbante, alucinante. Não há palavras soltas nem diálogos. Só ouvimos os pássaros. Só ouvimos os seus gritos de ataque.

Por isso, concluo sem marca de hesitação que o som no cinema de Hitchcock é concebido de forma inteligente e marca a atenção do espectador. Mas a palavra e o diálogo talvez não tanto…

Um filme demasiado palavroso como “A Corda” (1948) ou a segunda metade de “Chamada para a Morte” (1954) podem traduzir de que forma a Palavra em Hitchcock nem sempre revela tanto brilhantismo como a Imagem.

“Chamada para a Morte” (1954) é o perfeito exemplo do filme de Hitchcock que funciona enquanto há uma acção pautada por gestos, expressões corporais e sombras e que não funciona quando o argumento perde tempo em redor dos pormenores e dos raciocínios. Na primeira metade, há todo um processo de concepção e preparação do acto do crime. Aos primeiros 40 minutos corresponde um belo pedaço de cinema de Hitchcock.

Já a segunda metade não é mais do que um exemplo de cinema policial entediante em que o público acompanha as investigações do detective sem grandes emoções ou apegos emocionais. Aqui escrevo em meu nome porque entendo que falta suspense onde ele era esperado.

Afinal, quase todo o cinema actual é composto por Imagem e Som. Soa lógico que Hitchcock tenha começado a sua carreira de realizador ainda na época do mudo. E que depois tenha vindo a aproveitar o progresso técnico possibilitado pela adição de som às imagens.

Hitchcock começa a realizar em 1925. O ano de 1929 marca um momento de viragem. “Chantagem” (1929) tem duas versões. É um filme concebido e filmado como mudo. Mas depois, é-lhe adicionado som.

Em 1934, Hitchcock já estava bem ciente de que a Música podia rimar de forma fantástica com as imagens e que dessa rima podia advir muita expressividade para as suas cenas de suspense. Por isso, em “O Homem Que Sabia Demasiado” (1934), ele construiu uma cena de importância culminante que decorre durante um concerto no Royal Albert Hall, em Londres. O bater dos címbalos ditará a morte de uma pessoa na assistência. (Na remake de 1956, esta cena é reconstituída e aperfeiçoada)

Em “Sabotagem” (1942), Hitchcock decidiu que o clímax do suspense no topo da Estátua da Liberdade seria quase mudo, sem música e com pouco ruído. Procurava tornar o silêncio mais intenso e angustiante do que qualquer música ou som.

Hitchcock sempre soube tirar proveito dos recursos sonoros à sua disposição. E da possibilidade da escolha entre o ruído e o silêncio.


sábado, dezembro 10, 2005

A FIGURA PESSOAL DE HITCHCOCK


Hitchcock permanece uma das grandes figuras simbólicas do Cinema. É um ícone. Embora os seus filmes debatam sistematicamente os temas do crime, do suspense e da espionagem, muitos intelectuais insistem em colocá-lo entre os melhores realizadores de sempre.

O segredo da popularidade da sua imagem pessoal explica-se por vários motivos. Ele mesmo aparecia fugazmente em cenas dos seus filmes. Tornou-se uma norma quase inviolável, o preceito de fazer aparições discretas em cada uma das suas obras. Não como actor. Mas sim como figurante.

Por outro lado, a sua figura era divulgada amplamente nos cartazes publicitários. Às vezes, o seu rosto e o seu perfil característico eram mais explorados pelas campanhas de marketing do que o nome e a imagem das estrelas dos seus filmes.

Mas não só por isto. Também devido às séries de televisão que apresentou durante cerca de 7 anos (entre 1955 e 1962). Séries com episódios relativamente curtos. (Em “Alfred Hitchcock Presents…” cada história tinha a duração de cerca de 23 minutos. Em “The Alfred Hitchcock Hour” a duração dos episódios foi alongada para 40, 45 minutos. É a segunda série que passa actualmente no canal SIC Mulher da TV Cabo.)

Devo admitir que não sou um conhecedor profundo do trabalho de Hitchcock para televisão. Sei que dos mais de 300 episódios que foram emitidos, Hitchcock só terá realizado pouco mais do que uma vintena. No entanto, o seu papel de apresentador e de anfitrião do programa resultou no veículo perfeito para a promoção da sua imagem. E para a expansão da sua popularidade.

Também foram publicadas colectâneas de contos policiais e histórias de crime sob a tutela de Hitchcock. Em cada livro, a imagem de Hitchcock era difundida e explorada.

O grande público conhecia Alfred Hitchcock. Era tão familiar como os grandes actores e actrizes de Hollywood. Era um homem gordo, rotundo, sisudo, que soltava piadas irónicas carregadas de humor negro e de sarcasmo, pronunciando cada palavra de forma grave, explícita e vagarosa.

O seu auto-retrato (um conjunto de linhas arredondadas) é a imagem de marca dos seus produtos. Podemos vê-lo nos DVDs que hoje se vendem, nas campanhas publicitárias, nas capas dos imensos ensaios que sobre ele foram escritos.

De facto, só outro cineasta do seu tempo era tão familiar das audiências: Charlie Chaplin. E depois, muitos anos mais tarde, apareceria Woody Allen. No entanto, Chaplin e Allen desempenham papéis importantes nos filmes que realizam. Como Orson Welles também. Hitchcock era diferente…

A marca Hitchcock estava associada a um certo tipo de produto cinematográfico. A sua figura encaixava ironicamente nos cenários emblemáticos das suas histórias de crime.

Veja-se o trailer do filme “Psico” (1960): não apresentava imagens do filme como era comum acontecer. Em vez disso, víamos o realizador a passear-se pelos cenários em que a acção decorria, alimentando suspeitas e curiosidade. Sempre com um travo de ironia em cada palavra que pronunciava. O seu olhar deslizava atentamente pelo interior do motel Bates e pela velha casa sinistra. Brincava deliciadamente com tudo aquilo. Divertia-se enquanto preparava a nossa diversão.

O aspecto austero de Hitchcock a que correspondia uma personalidade severa própria de alguém que não se entendia bem com todas as pessoas, deixava antever também um lado bonacheirão. Ele parecia gostar de brincar com tudo.

O seu aspecto rotundo fazia associar à sua personalidade a ideia do gordo que come bem e que tem prazer em comer com requinte.

A sua figura e a sua personalidade parecem estar cravadas nas linhas das pautas da banda sonora de “O Terceiro Tiro” (1955). O compositor Bernard Herrmann que o conhecia intimamente terá composto um arranjo de peças musicais extraídas daquele filme. E ter-lhe-à chamado “A Portrait of Hitch”.
Parece vermos a figura de Hitchcock enquanto escutamos aquele arranjo pleno de humor, sarcasmo e também de uma densidade aqui e ali enigmática. O grande Herrmann terá concebido as frases musicais que descrevem a figura de Hitchcock. Com todo a sua subtileza e ironia. Mas também com toda a sua apetência pelo sinistro e pelo misterioso.


A figura do mestre inglês do suspense ficará para sempre associada à cultura cinematográfica do século XX. Os cinéfilos que viveram durante os anos 40, 50 e 60, não esquecerão aquela figura. Inclusivamente as elites intelectuais. Quem, como eu, foi sensível ao espírito de saudosismo hitchcockiano dos anos 80, também mantém bem presente a figura do Mestre.

Hoje, nas prateleiras das livrarias, encontramos dezenas e dezenas de ensaios sobre o cinema de Hitchcock. E muito frequentemente é a figura do realizador que está em evidência nas fotografias das diferentes edições. Imagens com Hitchcock. A trabalhar, na sua vida pessoal ou em retratos insólitos.

Recordo-me de uma fotografia do rio Tamisa em que se vê o corpo de Hitchcock a boiar sobre as águas; ou de uma imagem sua segurando uma faca comprometedora; vestido de velha senhora inglesa; ou sentado na cadeira da senhora Bates (a estranha e incógnita assassina monstruosa de “Psico”). Em todas estas imagens e em centenas de outras, se definiu a figura de Hitchcock. Figura singular do universo dos filmes…

Julgo que esquecer o nome de Hitchcock será consentir no estabelecimento de uma lacuna cultural. Mas conhecer um pouco do cinema de Hitchcock sem conhecer a sua figura pessoal… Será, mais do que improvável, quase impossível.

quarta-feira, novembro 30, 2005

UM CINEASTA E O SEU PÚBLICO


Muitos intelectuais e artistas criticam a postura cinematográfica comercial, defendendo que o que é importante é ser fiel às emoções próprias e não tanto o desejo de agradar aos outros. Argumentam que não se deve pensar acentuadamente no sucesso de bilheteira quando se constrói um filme. Nem que esse sucesso deva ser o objectivo principal da acção dos produtores, realizadores e argumentistas.

A arte não é quantificável. Bem o sabemos. Quando os produtos cinematográficos e televisivos apostam sistematicamente no acréscimo das audiências, nem sempre os resultados são brilhantes. Ou melhor, raramente o são.

Há que seduzir o público mas não oferecer-lhe tudo o que ele quer a qualquer preço. Senão ainda voltaremos a ver matanças de inocentes às bocas dos leões. E desta vez, com transmissão em directo para o mundo inteiro, com som estereofónico e imagem digital de elevada nitidez.

Talvez a solução seja trabalhar para o público mas fazê-lo honradamente. Vejam o exemplo de Hitchcock. A sua postura sempre foi comercial. Ele sempre o disse e confirmou. Trabalhava para as audiências. Pensar no público é compreensível e desejável. Quase ninguém realiza um filme intensamente trabalhado para depois o guardar na gaveta de um armário. Os cineastas comuns trabalham para que as suas obras sejam vistas. Um escritor ou um jornalista ou um cientista social gostam de ser lidos. Gostam que leiam o que escrevem.

Não escrevo estas linhas só para mim. Tenho esperança que alguém as venha a ler. E fico feliz quando isso acontece. No caso do Cinema, há uma interacção entre o cineasta e o seu público. Quando um realizador cativa uma área de admiradores, ele terá conquistado o “seu” público próprio.

Hitchcock pensava na diversão dos espectadores em cada etapa do seu trabalho. Mas vivia pressionado pela vontade e pelos caprichos dos produtores que apostavam dinheiro nele. (Apesar de ser, nos seus tempos áureos, um dos poucos realizadores familiares para o grande público. Talvez só fosse comparável a Charlie Chaplin. Mas esse também representava, tal como Orson Welles.)

Os cânones da época impunham muitas restrições. Algumas delas parecem hoje completamente absurdas. Se o público associava a um actor a imagem de um homem íntegro, nunca era esperado que representasse o papel de um criminoso sem moral.

Em 1941, deu-se um fenómeno elucidativo. Hitchcock realizava “Suspeita” com Joan Fontaine a interpretar o papel de uma mulher indefesa, presa na angústia e na dúvida. Seria o seu marido, um perigoso assassino? A desconfiança subsiste até ao fim. Hitchcock gostaria de ter realizado um final sarcástico. O homem era mesmo um terrível criminoso!

Tudo teria corrido bem se o actor escolhido para o papel não fosse Cary Grant. Quem era Cary Grant? Um homem muito respeitado. Os produtores pensaram que o público nunca iria gostar de ver aquilo. A imagem de Cary Grant era a de um cavalheiro e talvez não fosse bem aceite esta variação no seu estilo pessoal.

Hoje uma história destas parece-nos estranha. Um actor dos nossos dias preza-se de ser versátil. Hitchcock terá tido que conviver com as imposições dos grandes estúdios. Pelo menos, até adquirir um certo poder de decisão.

O final de alguns filmes do Mestre do suspense foi imposto. O final feliz era-lhe frequentemente imposto. Ele gostava de happy-ends mas às vezes, desejaria ser mais negro e sarcástico. O fim de “Vertigo” é trágico. Mas é preciso verificar que Kim Novak era cúmplice de um crime. Assim como Janet Leigh em “Psico” era uma ladra em fuga. Era aceitável que o destino das duas fosse trágico.

Mais interessante é o caso de “À 1 e 45” (1936) onde Hitchcock cria uma terrível situação de suspense. Uma criança pequena e inocente transportando uma bomba dentro de um autocarro. O desenlace da cena é invulgar: a criança morre mesmo depois de uma enorme explosão. Hitchcock não terá gostado deste pormenor do argumento e tê-lo-à confessado mais tarde.
(Steven Spielberg gosta particularmente daquela película talvez porque envolva uma criança num papel de significado central. E sabemos como o universo da infância lhe é particularmente querido.)

Parece-me que quando o Cinema funciona como uma indústria, precisa de zelar pelos lucros e ninguém gosta de perder dinheiro investido. Por isso, a questão do happy-end, o doseamento dos ingredientes emocionais e a escolha dos actores são pormenores que acabam por ser frequentemente determinantes. No tempo de Hitchcock. E no nosso.

Dizem que Clint Eastwood perde tempo a representar em filmes de baixa qualidade para depois adquirir capital para realizar os seus próprios filmes do modo que ele os quer. O mesmo acontecia com Orson Welles.

Vejo o Cinema como uma arte. Em Arte não há valores quantificáveis. Não há modelos científicos a seguir. Os filmes são retratos da Vida. Importa é saber que partes da Vida se querem mostrar. Uma perspectiva mais negra, triste e desencantada? Ou uma imagem feliz do Mundo e da Humanidade? Talvez a solução ideal reúna ingredientes desses dois prismas de visão. Porque a Vida reúne tristezas e alegrias. Como uma moeda tem dois lados e nenhum desses lados existe sem o outro.

Um cineasta que tem o seu público próprio tende a querer zelar pela fidelidade desse público. Mas precisa de ser genuíno. E tem de ter liberdade para tomar decisões. A definição do cinema de qualidade passa pela capacidade de sensibilizar as pessoas, de afectá-las positivamente. Passa centralmente pelo poder de agradar aos espectadores. Não é desonra produzir arte a pensar no público. Hitchcock bem o terá demonstrado… O pior é quando o produtor manda mais do que o cineasta ou quando não se filma o final desejado.

quarta-feira, novembro 16, 2005

A FÓRMULA MÁGICA DE HITCHCOCK



A nossa tomada de consciência do Mundo, e de tudo o que nos rodeia, deriva de raciocínios e de sensações. Estas são duas formas distintas de percepção dos ambientes em que nos movemos. Dois patamares que se podem suportar um ao outro mas que também se podem contradizer. Num filme como na vida real.

Poderão pensar que vos vou oferecer uma palestra sobre Psicologia ou sobre Filosofia. E, de facto, dois bons amigos meus poderiam ajudar-me a reflectir mais solidamente sobre os nossos processos cognitivos. Uma psicóloga, bonita e arguta, e um simpático professor de Filosofia com quem costumo travar alguns debates sobre o sentido da condição humana. Devo dizer que fiz deles dois bons hitchcockianos, o que me permite pensar que posso contagiar outras pessoas com as minhas paixões cinematográficas. (E o que faço aqui senão agir como missionário do hitchcockianismo?)

Não. Hoje não quero maçar os meus leitores. Quero sim que me acompanhem na dissecação da fórmula de Hitchcock. Aquela que funcionava como segredo para o seu sucesso. Aquela com a qual está associado. Aquela que é a receita para um filme de suspense, pleno de mistério e emoção – A receita para o filme hitchcockiano, pois então.

De facto, os nossos sentidos podem levar-nos a concluir que A é igual a B e o raciocínio lógico sobrepor uma dedução de sentido oposto: A só pode ser diferente de B.

A exploração do patamar dos sentimentos, emoções e sensações conduz os cineastas a recriarem sonhos, fobias, ambições, apetites e estados de alma incompreensíveis.

Nos filmes de Hitchcock, como em todas as histórias de crime e mistério, há sempre uma lógica que é questionada. Hitchcock abriu um caminho que seria acentuado e desenvolvido por autores como Polanski (em “Repulsa” (1965) ou em “O Inquilino” (1975 )), Cronenberg (“Irmãos Inseparáveis” (1988) ou “O Festim Nu” (1992)) e Lynch (“Eraserhead” (1977) e “O Homem-Elefante” (1980)).

Às vezes, as coisas parecem não fazer sentido nenhum. (“Vertigo” (1958), “Intriga Internacional” (1959)) Outras vezes, o controlo dos acontecimentos pode estar nas mãos de quem subverte os valores e os princípios estabelecidos. (“Desconhecido no Norte-Expresso” (1951), “Mentira” (1943), “Frenzy” (1972), “Psico” (1960)) Noutros exemplos, o protagonista desconhece-se a si mesmo e à causa dos seus actos e receios. (“A Casa Encantada” (1945), “Marnie” (1964)) No caso mais extremo, não existe uma lógica para explicar os fenómenos – “Os Pássaros”, pois então.

Na verdade, as explicações na fórmula hitchcockiana são secundárias. Só as emoções são reais, densamente vividas pelas personagens e partilhadas pelos espectadores. Por isso, os filmes do Mestre se passam mais no universo emocional do que no contexto de intrigas complexas e laboriosamente tecidas.

Um argumento demasiado complexo, segundo Hitchcock, distrai o espectador, levando-o a dispersar a sua atenção nos momentos de suspense. E afinal, o suspense, a expectativa, o receio e a inquietação eram a alma dos seus filmes.

O protótipo de um argumento hitchcockiano apresenta uma história simples em que a emoção é valorizada. Contrariamente ao que sucede nos policiais de Agatha Christie, os pormenores não interessam no cinema de Hitchcock. Os pormenores servem para criar situações de risco mas Hitchcock não perde muito tempo a explicá-los. Por vezes, os detalhes são enganadores. (Como o dos 40.000 dólares roubados em “Psico”) Se um pormenor engana e conduz à surpresa, então interessa.

Assim se entende que em “Difamação” (1946), o conteúdo das garrafas guardadas na adega nunca venha a ser conhecido. O filme vestindo a roupagem de uma intriga de espionagem, é mais do que tudo, um romance de amor. Cary Grant vai buscar a sua amada Ingrid Bergman ao quarto onde ela está a ser envenenada lenta e caprichosamente. Ambos descem as escadas ante o olhar dos vilões. Bergman muito frágil e receosa. Entram no carro e entregam-se um ao outro. Então o filme acaba. A trama amorosa é que é central. Não a trama de espionagem…

Também é verdade que muitas pessoas, entre as quais o meu irmão, declaram que se sentiram enganadas e que aquele filme não tem um fim, acabando abruptamente. Mas também que interesse tem conhecer o valor das garrafas da adega? É um pouco como no cinema de Lynch: em "Mulholland Drive" (2001) ou em "Twin Peaks" (1991) abundam muitos mais mistérios do que respostas ou soluções. Alíás, costumo dizer, é bem mais fácil construir um mistério do que descodificá-lo. Por isso "Vertigo" de Hitchcock me parece tão fascinante. Ali há uma nítida resolução do enigma.

Não interessa que o espectador saiba muito mas meramente o que é importante para sentir apreensão. Em “Vertigo” (1958), Hitchcock revela o grande segredo meia hora antes do termo do filme. Uma situação de ansiedade pareceu ao Mestre mais interessante de explorar do que uma surpresa bombástica final. (No livro que inspirou o filme, a revelação é feita mesmo no fim. Sinceramente, não sei qual das opções é melhor.) Em “Vertigo”, no momento da revelação, ficamos a saber mais do que James Stewart. A ansiedade deriva das questões “Quando é que ele descobre?” e “Como é que irá reagir?”

A fórmula do sucesso hitchcockiano resulta quase sempre da exploração da ansiedade.Em “Difamação”, a sequência do baile é demonstrativa. Grant e Bergman precisam de investigar o que está dentro da adega mas têm pouco tempo. O vinho está a acabar. Quando for servida a última taça de champagne, o vilão descerá. Cada taça que é levada é como que um avanço do ponteiro dos segundos. Cada momento conta… Bergman não pode ser apanhada. Mas Claude Rains já está a descer a escada…

Um outro aspecto interessante é que em nome da emoção e do suspense, o realismo das histórias de Hitchcock pode perder credibilidade. Hitchcock optava sistematicamente por histórias mais divertidas e emocionantes do que credíveis. Não se acredita no desenvolvimento das intrigas dos seus filmes de espionagem. Penso em “39 Degraus” (1935), “Desaparecida” (1938), “O Homem que Sabia Demais” (1956) ou “Cortina Rasgada” (1966). E afinal quase todas as histórias de Hitchcock, envolvendo espiões, são rocambolescas e inverosímeis.O cinema de Hitchcock é uma grande recriação de ilusões e de espaços oníricos. Não é uma caixa com retratos da Humanidade e do nosso planeta.

Mais importância atribuída às emoções do que às explicações… Para vivermos intensamente uma história, precisamos de nos identificarmos com o herói. O herói é o homem comum que podia ser qualquer um de nós. Não é o rei de Espanha nem o presidente dos Estados Unidos da América. É o homem inocente preso numa armadilha ou nas teias de uma intriga de proporções gigantescas.

O homem comum é James Stewart mas também Rod Taylor, Henry Fonda, Montgomery Clift… Os espiões de Hitchcock são frequentemente homens comuns: Paul Newman em “Cortina Rasgada” é um cientista, não um membro dos serviços secretos. Ingrid Bergman em “Difamação” é uma mulher colocada a servir os interesses do governo americano, não uma espia profissional.Sean Connery em “Marnie” é o homem comum entusiasmado com a mulher misteriosa. Joan Fontaine em 2 filmes distintos desempenha o papel da esposa afável e apaixonada que não conhece verdadeiramente o homem com quem casou. (“Rebecca” (1940) e “Suspeita” (1941))

Tudo se processa na construção do argumento para que quem veja o filme sinta empatia com a personagem em perigo. Para envolver a audiência, há que criar mistérios, aparências falaciosas, situações de injustiça para com o herói inocente…

Hitchcock foi muito imitado no seu tempo e para além dele. Hoje, nos nossos dias, muitos filmes de suspense bebem inspiração na fórmula de Hitchcock. A sábia gestão da ansiedade, o uso equilibrado dos momentos de surpresa, a inserção de ingredientes humorísticos que aliviem a tensão emocional… Afinal, tudo isso nos é familiar mas requer perícia e habilidade. Tanto em trabalhos para Cinema como em obras para televisão.

Já repararam como é interessante o uso do suspense em séries americanas de qualidade como “24” ou “Perdidos” ou "Eles vieram em paz"? Estas são algumas das razões para o sucesso da fórmula de Hitchcock. Enquanto o espectador sentir ansiedade e calafrios, enquanto se esquecer do mundo que deixou fora da sala de cinema, Hitchcock terá alcançado o seu objectivo. Frequentemente nos seus anos áureos, ele atingia o seu objectivo. E fazia-o com charme, inteligência e subtileza.

A fórmula mágica de Hitchcock seduziu milhões de espectadores, nas décadas de 50 e de 60. E ainda hoje inspira muitos cineastas e argumentistas. O Cinema evolui tremendamente de década para década. Agora quase tudo se consegue fazer. A questão é: o que é que se pode fazer hoje que não tenha sido já feito?

sexta-feira, outubro 28, 2005

SOBRE A VIOLÊNCIA NO CINEMA...


Quando se critica o excesso de violência no Cinema e simultaneamente se apregoa um hitchcockianismo quase fanático, pode parecer denotar-se um certo tipo de incoerência. Mas não é tanto assim... Há alguns aspectos a considerar neste âmbito e aqui nem tudo é preto nem tudo é branco.

Primeiramente, gostava de assinalar que também um filme brutal (mas paralelamente tão tocante) como “O Homem-Elefante” (1980) de David Lynch se tem revelado um exemplo de pedagogia eficaz junto de crianças de tenra idade.
A violência e a maldade existem. Interessa é saber como as mostrar para as tentar abolir.
Muitos miudos pequenos têm revelado sensibilidade perante o filme de Lynch, aprendendo por meio dele que nenhum ser humano merece ser escorraçado por ter um aspecto físico repelente. Ou, por outras palavras, que a aparência dos seres humanos é irrelevante pois é o espírito ou a alma das pessoas que mais conta. E eis como o Cinema pode sensibilizar, oferecer lições de vida, humanizar portanto...

A violência nos filmes é polémica. Observem o caso específico de “A Paixão de Cristo” (2003) de Mel Gibson. Parece descabido o excesso de violência do filme. Estou quase certo que é descabido. Mas talvez não seja... Porque só confrontados com as realidades mais cruas é que frequentemente tomamos consciência da inutilidade e da estupidez da violência.
Será o filme de Gibson um reflexo do seu aparente gosto pela violência? Aquele que vemos nos filmes do Mad Max que ele protagoniza ou no aclamado “Braveheart” (1995) que o levou a arrecadar alguns óscares para o bolso e muito dinheiro também...? Parece-me que a violência em “Braveheart” é mostrada mas não exaltada. Estarei enganado?

A violência no Cinema atrai as audiências. Às vezes nem se compreende se é por bons ou maus motivos. Filmes como “Mystic River” (2003) de Clint Eastwood, “A Promessa” (2001) de Sean Penn, “Mississipi em Chamas” (1988) de Alan Parker... Não são meras reflexões sobre a crueldade da Vida e de certas almas atormentadas. São filmes que nos fazem pensar como é de ordem crucial que cada um de nós assuma o seu papel neste mundo e o procure fazer em consonância com o mundo e com nós mesmos. Mesmo que o mundo funcione mal e seja tentador recorrer à violência para corrigir injustiças e disfunções. (O que me faz pensar em “Taxi Driver” (1975) de Scorsese).

É tão difícil assim construir um mundo verdadeiramente humano e humanizador? Parece que sim. Porque a História da Humanidade está densamente marcada por guerras de diferentes índoles. Desde que o Homem é Homem, o percurso histórico dos povos tem sido pontuado por infinitas disputas, querelas, batalhas e conflitos com consequências densamente sangrentas e dramáticas.
E afinal, o resto da Natureza não é muito melhor. Os animais comem-se uns aos outros. Para sobreviverem mas também para satisfazerem uma sede instintiva de fazer matanças. É cruel mas é verdadeiro.

Será possível fazer do Cinema uma arte humana e humanizadora? O que diferencia os homens dos restantes animais é a capacidade de reflectirem sobre os seus actos e de construirem conceitos éticos e morais que condicionam a sua acção. Cada acto humano pode e deve ser reflectido.
Poderá o Cinema ensinar homens e mulheres a serem melhores seres humanos? Ensinar-lhes humanidade com tudo o que isso implica de racional e civilizado? Acredito que sim.

Não escrevo aqui propriamente como hitchcockiano porque a alma dos filmes de Hitchcock está embuída de crimes, de suspense e de uma violência mais ou menos explícita. E talvez, se Hitchcock trabalhasse nos nossos dias, os seus filmes não fossem menos violentos que os de Quentin Tarantino...

Nem escrevo como o cinéfilo que se curva ante a genialidade artística e cinematográfica de “O Silêncio dos Inocentes” (1991) de Jonathan Demme ou de “Laranja Mecânica” (1971) de Stanley Kubrick. Excelentes filmes mas violentos e de que maneira...

Escrevo sim como o ser humano que gosta de ver o Cinema contribuir para o crescimento intelectual dos espectadores e não meramente para o seu entretenimento. A verdade é que há filmes em que se usa e abusa da violência e talvez se faça isto de forma tacanha e teimosa. Senão pensemos em obras aclamadas como “Era uma vez na América” (1984) de Sergio Leone, “Deliverence” (1972) de John Boorman ou “Cães de Palha” (1971) de Sam Peckinpah...

Eu gosto particularmente de “Misery” (1990) de Rob Reiner e do “The Shining” (1980) de Kubrick. Mas pode haver quem fique escandalizado com as minhas preferências e com a quantidade de tinta vermelha usada nesses filmes para recriar ambientes sangrantos. Acredito que sim.

Há 20 anos atrás, perguntei a mim mesmo se não existiria em mim um lado estranhamente sádico. Senão porque gostaria de filmes de terror? Senão porque considerava a sequência do chuveiro em “Psico” tão interessante de estudar, de ver e de rever?

Conversei com um jovem padre, então meu amigo. E ele disse-me:
“Quando era criança, nada me divertia mais do que ver cowboyadas. Ver cowboys matando índios e índios matando cowboys. Era importante saber quem tinha razão. Quem eram os bons e quem eram os maus”.

O pequeno miudo, futuro seminarista e defensor da paz e da concórdia, lutava pela melhor facção. Nos filmes antigos que passavam na RTP, habitualmente venciam os heróis. Logo, aquelas cowboyadas eram lições de vida das quais ele retirava importantes e confortáveis deduções. Como a de que se deve lutar pelos bons princípios, aqueles que nos são de interesse relevante ou mesmo vital...

Em conclusão, não creio que um western ou um bom filme de crime e mistério possam trazer mal ao mundo. Desde que a ênfase dada à violência não seja exagerada. Como escrevi atrás, a violência e a maldade existem no nosso mundo. Não vale a pena fingir que não são reais.

Por isso, aceitemos os filmes como retratos da Humanidade. Podemos sempre aprender com eles a conhecer melhor as pessoas. Podemos deleitar-nos com as suas virtudes artísticas e técnicas. E aceitar que é divertido saber se o bom espião vai ser morto ou se a bela jovem resistirá ao ataque do assassino. Porque não?

Não podemos subestimar o valor e a importância do Cinema. No século passado e naquele em que vivemos. Seremos capazes de usar devidamente o seu poder e influência? Creio que sim. Quero acreditar que sim. Quero convencer-me que o factor “violência” nas produções cinematográficas não é determinante. E gosto de pensar que o Cinema evoluirá de forma tão natural e sintomática como a Ciência e a Tecnologia. Como arte que é, o seu percurso é diferente. O primeiro século de existência da arte cinematográfica, os primeiros 100 anos, foram assombrosos. Quero acreditar que o universo dos filmes pode constituir um nítido e efectivo instrumento de crescimento da Humanidade. Estarei a ser utópico? Não, talvez só saudavelmente optimista...

quinta-feira, outubro 13, 2005

A ARTE CINEMATOGRÁFICA E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA





Um dos aspectos a que sou particularmente sensível enquanto cinéfilo e observador de filmes é procurar manter presente que cada filme é um produto do seu tempo. Interessa ver cada obra dentro do contexto que a viu nascer senão não teremos uma verdadeira percepção das qualidades e dos defeitos que a definem.

Nunca poderemos tomar consciência absoluta da inovação técnica apresentada por Orson Welles em “Citizen Kane” (1941) sem conhecermos os padrões cinematográficos da época. Sim. É um filme que ainda hoje seduz pelo encadeamento narrativo e pelas imagens tão enigmáticas, densas e impressivas. O trabalho de montagem em “Kane” é diferente de todos aqueles que Hollywood conhecia… Mas hoje, no ano 2005, depois de um jovem de 25 anos ter visto “Laranja Mecânica” (1971) de Kubrick, “Taxi Driver” (1975) de Scorsese, “Eraserhead” (1977) de Lynch, “Irmãos Inseparáveis”(1988) de Cronenberg ou “21 Gramas” (2003) de Alejandro Gonzalez Inarritu… Poderá ele ser sensível ao talento que vem de uma obra como a de Welles ou para o sentimentalismo de um “Casablanca” (1943) ou, se quisérmos falar de cinema europeu, para um miserabilismo como o de “A Estrada” (1954) de Fellini; ou para uma arte de criar comoções como a do “Ladrões de Bicicletas” (1948) de De Sica?

Afinal os jovens de hoje conhecem Spielberg, Scorsese, George Lucas, um sem número de artifícios visuais e técnicos que os encantam e a que já estão habituados. A magia da imagem de Terry Gillian ou de Tim Burton… O tratamento digital das imagens… Há recursos hoje com que os autores clássicos do Cinema nem sonhavam.

O filme “Os Dez Mandamentos” (1956) de Cecil B. De Mille ou o “Mary Poppins” (1964) de Robert Stevenson encantaram as audiências na época das suas estreias. As pessoas perguntavam-se: “Como é possível fazer isto em Cinema ?” Mas hoje: “A Guerra dos Mundos” (2004) de Spielberg ou o “Homem-Aranha” (2002) de Sam Raimi não seduzirão mais os jovens? E serão filmes superiores? Talvez não…

É paradoxal que um filme possa receber uma maior aclamação na sua época consoante apresente recursos técnicos mais evoluídos, impressionantes e convincentes. O público não estará a confundir arte com tecnologia?

Só posso concluir que o Cinema é uma arte que em Hollywood (e não só) se produz e promove como uma indústria; e que recorre necessariamente ao patamar da evolução tecnológica. Não pensemos agora no âmbito comercial do Cinema e centremo-nos na temática da tecnologia.

Tomemos como exemplo o genérico do “Vertigo” (1958) de Hitchcock. Está sublimemente concebido por Saul Bass (um dos poucos mestres clássicos da arte de criar genéricos). É a abertura ideal para um filme que se centra num ambiente de obsessões, de vertigens e de distorções. Espirais girando sobre si mesmas, surgindo umas das outras ou em sobreposições enigmáticas; espirais com colorações diferentes que nascem de um olho de mulher e a ele retornam. É fantástico. Hoje, as novas gerações serão sensíveis à genialidade deste genérico densamente enriquecido pela música de Bernard Herrmann (o mais célebre e importante dos compositores de Hitchcock)?

O progresso tecnológico ajuda os cineastas a exporem as suas narrativas e a conceberem cenários e ambientes diversos. Tem-no feito de forma gradualmente mais impressiva e eficiente. Mas também é certo que alguns realizadores se escondem atrás dos artifícios técnicos. Consciente ou inconscientemente.

Por outro lado, o problema da tecnologia é que mediante ela, os filmes ficam de algum modo catalogados e datados. Vemos os filmes de ficção científica dos anos 50 e ficamos desencantados com as limitações técnicas dos seus efeitos especiais. O mesmo se pode afirmar dos filmes de terror. (Uma possível remake de “Os Pássaros” (1963) feita hoje não poderia ser mais aterrorizadora?)

Conversei com um jovem de 19 anos há pouco tempo. Confessou-me que gostava muito de Cinema e que considerava Hitchcock como um mestre de referência para muitos cineastas. De uma forma ou de outra. Gostei de o ouvir. Falei-lhe do genérico de “Vertigo”. Ele respondeu-me: “É muito bom. Claro que eu hoje talvez fizesse qualquer coisa de semelhante no meu computador.”
Sorri mas não devo ter conseguido disfarçar algum desencanto. Poderia o célebre genérico de Saul Bass ser reinventado por um computador nas mãos de um jovem estudante do 12º Ano?


Afinal, meus leitores, em que termos poderemos definir a arte cinematográfica? Como arte que é, não é uma ciência exacta nem afecta as pessoas de forma igual. Um mesmo filme sensibiliza uns espectadores e outros não. Do mesmo modo que um quadro, ou uma música ou uma escultura. Mas também é verdade que o Cinema evolui, progride, transforma-se. Porque é um fenómeno social. E um fenómeno tecnológico. Como o bom senso dita para todas as acções humanas, nenhum ingrediente deve ser tomado em demasia. Deve ser atribuída à tecnologia o valor devido mas nem o cineasta nem o espectador devem fazer dela um parâmetro central. Defendo a ideia de um cinema que usa a tecnologia como um recurso e não como um fim em si mesmo.

Seja como for, não existe um modelo perfeito de arte cinematográfica. O que para mim é perfeito, pode não o ser para o meu vizinho. E claro que os filmes da série Matrix são visualmente fenomenais. E claro que uma animação como a de Shrek é soberba. Mas não concordam que quando a adaptação da “Guerra dos Mundos” de H. G. Wells assenta exageradamente nos efeitos especiais, o mínimo que se pode dizer é que Spielberg não está no seu melhor?

Lembro-me de uma reportagem gravada imediatamente a seguir à estreia de “Non ou a Vã Glória de Mandar” (1990) de Manoel de Oliveira. Perguntaram aos espectadores que saiam da sala o que haviam achado do filme. Alguém disse: “Bem, o guarda-roupa era muito bom…” A opinião podia estar certa ou não. Mas o guarda-roupa não é tudo. E a tecnologia também não…

quinta-feira, outubro 06, 2005

PARA ALÉM DO PIANO, A NOSTALGIA



Estive ontem num centro comercial da cidade de Lisboa e senti um ambiente ligeiramente nostálgico no ar. Não vinha das pessoas que comiam e conversavam em redor das mesas. Nem vinha do movimento frenético daqueles que faziam compras e se mostravam afadigados. Vinha do som do piano no centro das galerias. Um homem relativamente novo estava ali a tocar músicas antigas impregnadas de romantismo.

Senti aquela velha tristeza, tão antiga em mim, de não saber tocar sabiamente piano. Estudei Música vários anos mas nunca atingi um grau mínimo de capacidade interpretativa que me motivasse a tocar para os outros. E então, lá estava eu… Sozinho e entregue à realidade inegável de que cada um é o que é e não o que podia ter sido.

Olhei em redor e vi amigos em conversas amenas, colegas de trabalho que viriam dos seus empregos e muitos casais de namorados. E eu ali sozinho, entregue à minha condição de homem só. Sabem que alguns dos melhores cinéfilos são pessoas solitárias? Devia ser solidão o que sentia ao ver-me rodeado por imensas pessoas sem que ninguém olhasse para mim. E era uma solidão um pouco amarga porque vivia-a ao som daquela música tão linda mas melancólica.

O Cinema é uma máquina de construção de sonhos. Para os que o fazem, sim. E para os que o vêem. Para mim, tem-me permitido camuflar uma tristeza que ao som da música daquele piano, se tornava mais perceptível.

O Cinema ajuda-nos, sim. Quase que, por entre o barulho das pessoas a falarem, ouvia o piano do filme “Janela Indiscreta” de Hitchcock. Aquelas notas musicais que sensibilizaram Miss Coração Solitário e a retiveram no preciso momento em que ia tomar os comprimidos certos para um suicídio quase inevitável. Sim. A Música também opera maravilhas. Move montanhas. Destrói iras e ansiedades. (Não é também nostálgico o “As Time Goes By” do “Casablanca” (1943)? E o “Moon River” de “Breakfast at Tiffany’s” (1960)? E os temas de “Love Story” (1970), “Aconteceu no Oeste” (1969) e “África Minha” (1985)? O Cinema e a Música podem unir-se de forma soberba!

Como muito do que é belo, aquele piano cujo som chegava até mim, revelava um lado quente e melodioso mas também me convocava para alguma tristeza. Como uma rosa bela nunca está completa sem os seus espinhos… Ou como o Amor definido por Luís de Camões: essa “ferida que dói e não se sente”, esse “contentamento descontente”.

O som do piano, no centro das galerias comerciais, parecia sobrepor dois mundos: o das realidades e o dos sonhos desfeitos. Como o que alimentei, em tempos, de ser um grande pianista ou de viver profissionalmente de qualquer coisa que também enriquecesse a faceta mais emocional da minha pessoa.

A Música opera milagres… No cinema de Alfred Hitchcock, a Música é de importância crucial. Grandes compositores trabalharam para o cinema de Hitchcock: Franz Waxman, Miklos Rozsa, Dimitri Tiomkin, Maurice Jarre ou John Williams (o músico predilecto de Spielberg). E acima de todos, Bernard Herrmann que é muito directamente associado ao realizador inglês. (A associação Herrmann/Hitchcock prolongou-se durante mais de uma década, por sinal a fase mais prodigiosa de Hitchcock.)

Há filmes da obra de Hitchcock em que uma melodia precisa pode ser determinante: como em “Desaparecida” (1938), “O Homem Que Sabia Demais” (1956) ou “Mentira” (1943).
Às vezes (e isso já acontecia nas épocas áureas da carreira de Hitchcock), uma boa melodia pode funcionar como um eficiente veículo publicitário de promoção do filme.

No universo de Hitchcock, a música alerta-nos para realidades, convoca-nos para estados de espírito, incorpora-nos no seio dos ambientes mais diversos…
Às vezes, a música pode ser tão bela que magoa. Outras vezes, pode ser um convite para que não pensemos nos espinhos da rosa e só nos concentremos na sua beleza e harmonia visual.

Vi-me ali naquele centro comercial, diante da Música, como o homem que admira a poesia da Vida. E é obrigado a admitir que, sem mágoas, as alegrias também não seriam tão significativas e marcantes. E tão agradáveis de viver.
Oxalá os meus leitores me perdoem a ousadia de fazer uma referência precisa ao impacto que certa música tem sobre mim. Como um cinéfilo que se leva a sério, as bandas sonoras do Cinema interessam-me particularmente. Compro-as em CD, ouço-as, estudo-as, examino-as como partes integrantes dos filmes e como obras de arte autónomas

Talvez se possam rir da minha cinefilia fanática: a cinefilia de quem escuta música pensando em filmes; vê filmes e está absorvido pelas bandas sonoras; e bebe um café, discernindo os sons de “Janela Indiscreta” no corrupio de um centro comercial.

terça-feira, setembro 20, 2005

A MULHER HITCHCOCKIANA - PARTE III




“Mulheres e facas são coisas terríveis”. – Proferiu Hitchcock algures. Imaginem uma faca na mão de uma mulher: a imagem de Anny Ondra em “Chantagem” (1929) pronta para matar o homem que a tentou violar. Imaginem mil e uma mulheres distintas na filmografia de Hitchcock. Todas elas perigosas ou capazes de trazerem o perigo com elas.
Imaginem imensos planos com facas. A forma como Sylvia Sidney mata Oscar Homolka com um cutelo em “À 1 e 45” (1936); ou Grace Kelly mata com uma tesoura em “Chamada para a Morte” (1954); o assassinato de Lucy Mannheim com uma faca nas costas em “Os 39 Degraus” (1935); a morte de Gromek depois de ter sido golpeado no pescoço pela camponesa em “Cortina Rasgada” (1966); ou se quisermos, a tortura de Janet Leigh mediante a enorme faca de Mrs. Bates em “Psico” (1960).
Mulheres que matam com facas ou que morrem por meio delas. É o cinema de Hitchcock…


Na verdade, meus caros leitores, nem creio que Alfred Hitchcock ostentasse algum tipo de misoginia (exagerada) porque as personagens femininas dos seus filmes são quase sempre as mais interessantes. Sim. O glamour e o charme das actrizes interessa e talvez, nesse aspecto, Hitchcock tenha vindo a mudar de opinião. Ele terá pronunciado numa entrevista a Barbara J. Buchanan (publicada na revista Film Weekly de 20 de Setembro de 1935): “Aquelas mulheres lindas que só desfilam, evitando os móveis, usando négligés esvoaçantes e fazendo um ar muito sedutor podem ser um ornamento atraente mas não ajudam o filme em nada”. Mas estaria errado.

É verdade que, como também ele disse, algumas das maiores actrizes não são particularmente belas. Ele terá citado os exemplos de Mary Pickford, Lillian Gish ou Greta Garbo (que admirava muito). No entanto, mais tarde, terá tomado consciência da importância da imagem das suas heroínas. Por isso, nos anos 50 e 60, as vestia segundo preceitos caprichosos e as fazia desfilar diante das câmaras com esmerado requinte.

Também não será verdade, como ele declarou sem inibições durante a entrevista a Barbara Buchanan, que as mulheres representem pior do que os homens. Os papéis femininos tendem a manifestar uma postura mais emocional. As actrizes choram, gritam e tremem. Os homens escondem mais as suas emoções. Por isso, é difícil ser um bom actor.

Podemos rirmo-nos do sarcasmo de Hitchcock. Mas afinal, a mulher hitchcockiana é um dos elementos mais importantes da cinematografia do Mestre. Ela é apenas e tão só um dos grandes instrumentos de abertura para o suspense. É mais um mistério a descobrir, um enigma a decifrar – seja ela espia, adúltera, ladra ou tudo isso e mais ainda… Ninguém que detestasse as mulheres lhes poderia atribuir um papel tão influente e decisivo.



Apontamento complementar:

Aproveito este espaço para lembrar a memória desse realizador importante do cinema americano que se chamava Robert Wise. Faleceu na passada semana, com 91 anos de idade. Deixou-nos um legado de filmes históricos entre os quais "Música no Coração" (1965), "West Side Story" (1961), "O Dia em que a Terra Parou" (1951) e "A Casa Maldita" (1963).

Gostaria que o lembrássemos como o criador destas e de outras películas intemporais, construídas com elevado profissionalismo, discernimento e inteligência. Diz-se que não era um autor na medida em que não soube criar um estilo próprio, trabalhando em áreas diversificadas do Cinema e tratando cada género do seu modo específico. Neste sentido, foi um realizador radicalmente diferente de Alfred Hitchcock mas ninguém pode negar que o seu trabalho marcou gerações de cinéfilos e ficará para a História da Sétima Arte.

Era um grande director de actores. (Paul Newman, Susan Hayward, Julie Andrews e Steve MacQueen foram alguns dos que brilharam sob a sua direcção).
Era também um especialista na arte da montagem das imagens, tendo trabalhado com Orson Welles, no início da década de 40 e contribuido com o seu talento pessoal para o brilhantismo dessa pérola chamada "Citizen Kane - O Mundo a seus pés" (1941)
Bob Wise deixou este mundo mas nele ficou o seu trabalho especial. Aquele que deu origem a filmes em que se defende a Vida ("Quero Viver" (1959)), o Amor ("West Side Story"), a Concórdia ("O Dia em que a Terra Parou") e a Justiça Social ("Homens no Escuro" (1959)).

Este espaço é de Alfred Hitchcock mas também de tudo o que fala expressivamente da Vida e do Cinema. Por isso, Robert Wise cabe bem aqui. Não concordam?

domingo, setembro 11, 2005

A MULHER HITCHCOCKIANA - PARTE II






Poderia ser uma ironia do Destino? O herói hitchcockiano nada tinha a ver com Alfred Hitchcock! Alfred Joseph era tímido, inseguro e pouco ágil. Não era um conquistador. A sua vida não era atribulada porque o ambiente doméstico dentro da sua casa era familiar e rotineiro. Vivia com a esposa, tinha uma filha e um ou dois cães… Era um homem de família como tantos outros. Gostava de se entreter com hábitos de pessoa pacata e tranquila. Nada o aproximava da imagem dos heróis dos seus filmes de espionagem!

Alfred Joseph bem gostaria de se ver como o herói das intrigas internacionais que construiu. Se tinha demasiada mágoa de ser gordo, pesado e corpulento, talvez Donald Spoto ou outro dos seus biógrafos nos pudesse responder com convicção.
O herói hitchcockiano nunca era gordo, antes pelo contrário. Tinha charme e encanto junto das senhoras. Não era desajeitado nem deselegante. Isto fica-se a dever a imperativos relacionados com os cânones da época. Mas também a estipulações sistematicamente definidas pelo realizador.

E Alma Reville, a sua esposa? Como se sentiria ela perante a imagem das mulheres tão belas com quem o marido trabalhava? Como conviveria com a secreta paixão de Alfred Joseph por Grace Kelly? Era uma obsessão profissional mas não deixava de ser uma obsessão…

A Mulher é um ser perigoso… Mas talvez Alma fosse serena e pacífica. Não como as mulheres manipuladoras dos filmes negros de Hollywood. A Mulher pode muito bem revelar-se um ser perigoso – Parece Hitchcock sussurrar-nos enquanto vemos alguns dos seus filmes. Por isso, muitos o acusam certa ou erradamente de uma nítida misoginia.

Talvez Hitchcock receasse as mulheres. Durante a sua infância e juventude quase não tinha amigos, brincava sozinho e namoradas não lhe eram conhecidas. Não tinha figura de galã. Terá escrito: “Sou apenas um daqueles infelizes que podem engolir acidentalmente uma castanha de caju e engordar 15 quilos.”
É natural que o universo feminino lhe fosse estranho e não se sentisse confortável entre as mulheres.
Como consequência disto, ou não, as mulheres hitchcockianas surgem frágeis mas perigosas. Podem mesmo não ser belas mas insípidas e de aspecto desinteressante. Como Jane Wyman em “Pavor nos Bastidores” (1950), Barbara Bel Geddes em “Vertigo” (1958) ou Barbara Harris em “Intriga em Família” (1976). Podem ser horríveis e repelentes: Em “Rebecca” (1940) encontramos Mrs. Danvers (Judith Anderson) e Mrs. Van Hopper (Florence Bates); em “Frenzy” (1972), os exemplos de mulheres feias são muito variados.

As mulheres são uma tentação, uma causa de culpa e uma abertura para o universo do perigo e do abismo. Hitchcock terá preferido escolher para si uma companheira para a Vida. Na revista McCalls de Março de 1956, ele escreveu um artigo intitulado “A Mulher que Sabe Demais”. Aí ele descreve os seus sentimentos por Alma.
Refere ele: “O que Alma tem de mais extraordinário é ser normal. Ela sabe muito – demais – a meu respeito. Mas não fala. Sabe que, na intimidade, em vez de ler livros de mistério, costumo ficar desenhando armários para a casa (…) Ela sabe que compartilho o seu gosto por uma vida simples. Além de guardas, o que mais me apavora é ficar sozinho. Alma também sabe disso. Simplesmente gosto da presença dessa mulher por perto, mesmo que esteja lendo.”

Seria a mulher ideal que Hitchcock encontrou na sua vida demasiado submissa e reverente? Ela participava na construção de muitos filmes de Hitchcock mas raramente o seu nome aparecia na lista de créditos de cada película. Certamente, Alma era pacífica. Alfred Joseph não teria medo dela. Por isso a amou do seu jeito próprio durante mais de 50 anos.

Na verdade, Alfred Hitchcock bem poderá ter deixado rotular-se de um certo modo. Se era esperado que criticasse a publicidade, os actores e a televisão ( 3 pontos de constantes criticismos seus) também era previsível que zombasse das mulheres e que os seus filmes fossem de suspense.

A bem dizer, acho a mulher hitchcockiana muito bela e interessante. Sedutora e incrivelmente elegante. Mas é preciso cuidado com o amor perigoso e tentador de uma dessas loiras com interesses secretos (como Kim Novak, Eva Marie Saint ou Tippi Hedren; Madeleine Carrol, Joan Fontaine e Ingrid Bergman…) Cuidado com elas, homens deste planeta… Se prezam a vossa riqueza e a vossa sanidade mental, não se deixem tentar por loiras misteriosas...

Há muitas por aí e nos nossos dias podem chamar-se Nicole Kidman, Kim Basinger, Sharon Stone ou Kathleen Turner. Ou podem ser a loirinha de olhos azuis que vive no prédio defronte do nosso; ou a prima do nosso colega de trabalho, aquela que almoça com ele todas as segundas-feiras... Nunca fala connosco durante a refeição. Será por delicadeza, timidez excessiva ou por nos querer convidar a matar o marido dela?
Tenham cuidado. O perigo pode vir de onde menos se espera. Se a vossa vida fosse um filme de Hitchcock, o perigo bem podia vir da acção de uma loira misteriosa. Mas atenção: se a vossa vida fosse um filme de Hitchcock, a razão plena da vossa alegria também podia ser o amor da vossa companheira. Aquela que partilha convosco todos os perigos da vossa vida. Uma Priscilla Lane (como em "Sabotagem" (1942)), uma Doris Day (como em "O Homem que Sabia Demais" (1956)), uma Ingrid Bergman (como em "Casa Encantada" (1945)) ou uma Julie Andrews (como em "Cortina Rasgada" (1966)).

Cuidado homens deste planeta... Mas não exagerem nas vossas desconfianças. Como dizia o outro, a diferença entre o Homem e a Mulher é pequena mas... viva a pequena diferença!

domingo, setembro 04, 2005

A MULHER HITCHCOCKIANA - Parte I

Amigos leitores, hoje começarei a partilhar convosco algumas reflexões sobre a vertente feminina da raça humana. As mulheres...
É impossível ignorá-las ou menosprezar o seu poder. Por detrás da aparência de um certo tipo de fragilidade, há em muitas delas uma força hercúlea. Além disso, são mais numerosas do que os homens, mais resistentes, vivem mais tempo... Há senhoras indefesas que vêem morrer 2, 3 ou 4 maridos. E conseguem acumular a riqueza deles todos. São animais de elevada capacidade de resistência, astutos, que sabem usar caprichosamente os seus recursos.

As mulheres na perspectiva de Hitchcock... Quem são e que importância têm? Há um protótipo de Mulher no cinema de Hitchcock: É loira e sofisticada. Insinua solenemente a sua sensualidade. Pode manifestar-se em qualquer momento um ser calculista, perigoso e suspeito. Esconde as suas emoções e consegue, deliberadamente ou não, manupular os sentimentos dos homens. É a mulher tipicamente hitchcockiana. Também poderá ser uma companheira para a partilha dos perigos da Vida.

Hitchcock chegou a admiti-lo: interessavam-lhe as mulheres que não fossem evidentes, as que seduzem através de uma postura misteriosa ou enigmática. Essas ofereciam-lhe o modelo ideal para as heroínas dos seus filmes. Ele terá dito: "O suspense é como uma mulher; quanto mais for deixado à imaginação, melhor."

Curiosamente, Alma Reville foi a única esposa de Alfred Hitchcock e não correspondia de modo algum a este modelo. Era uma senhora de estatura pequena e aspecto cândido e modesto. Morena, simples, nada requintada ou inquietante. Ela e Alfred Joseph foram companheiros durante uma vida inteira e não partilhavam só a mesa das refeições e o local de repouso. Ela teve uma participação activa e importante na construção de muitos dos filmes do marido. Fazia sugestões, participava na construção das histórias e Hitchcock gostava de saber a sua opinião sobre matérias variadas. Correntemente, o casal lia em conjunto as diversas propostas de trabalho. E muitos sabiam que Alma também tinha sempre uma palavra a dizer.

Permanecerá para sempre poética e sentimental a distinção feita por Hitch a quatro mulheres da sua vida: foi no discurso que proferiu aquando da entrega do Live Achievement Award (em Março de 1979), um ano antes da sua morte. Ele citou: uma montadora de filmes especial; uma argumentista; a mãe da sua filha Patricia; e a grande cozinheira que lhe preparou os maiores milagres culinários. Essas quatro mulheres eram uma a a mesma só: Alma Reville.

Seria uma ironia do Destino que Alma fosse tão diferente de Grace Kelly e de Tippi Hedren? E que Alfred Joseph tivesse uma aparência tão distinta de Cary Grant, de Rod Taylor ou de Gregory Peck?

(continua...)

segunda-feira, agosto 22, 2005

AS ORIGENS DA MINHA CINEFILIA




Parece-me oportuno recordar aqui as origens da minha cinefilia. Sim. Para me conhecerem melhor, devem saber que sou um cinéfilo ferveroso. Falar de paixão pelo Cinema implica incontornavelmente , no meu caso, fazer referência a valores centrais. O nome de Alfred Hitchcock é um deles.
Conheci o cinema de Hitchcock há 20 anos. Numa simpática tarde de Maio de 1985, o meu pai convidou-me para o acompanhar a uma sala de cinema de Lisboa: o já encerrado e quase esquecido Apolo 70, perto da Avenida da República. Passava lá o filme "Janela Indiscreta". Lembro-me que gostei imenso daquele filme naquela sala pequena, acolhedora, quase familiar (foi uma das primeiras salas pequenas da capital e estava, como agora é comum, instalado num centro comercial).
Reparei que o papel das imagens naquela obra era de crucial importância e que era relevante ditar o que mostrar e de onde mostrar. Hitchcock comentou algures que o Cinema é, primeiro do que tudo, imagem. E verificamos que não é de estranhar que o princípio da sua filmografia se situe na década de 20 quando o cinema era mudo e a imagem precisava dizer tudo - ou praticamente tudo. De facto, a palavra em Hitchcock é sempre de menos relevante importância, as explicações nem sempre são tomadas como ponto de interesse central.

Voltando à minha experiência pessoal: Nesse Verão (1985), viria a decorrer no Cinema Quarteto um ciclo inteiramente dedicado a Hitchcock. Foi exibida a colecção de 5 películas às quais se intitulou "The Essential Hitchcock" e que eram obras que durante muitos anos não haviam sido exibidas. Os filmes em cartaz eram apresentados rotativamente, uma semana cada um. O ciclo prolongou-se durante muitas semanas e proporcionou ao público mais jovem um contacto interessante (para muitos, como eu, quase inédito) com o cinema de Hitchcock e com o espírito que emana dos seus filmes. Não eram raras as lotações esgotadas. Para quem possa não saber, os 5 filmes eram: "Janela Indiscreta" (1954), "Vertigo" (1958), "O Terceiro Tiro" (1955), "A Corda" (1948) e "O Homem que Sabia Demais" (1956).

No ano seguinte (1986), era eu um jovem estudante do Liceu. Tinha 16 anos, frequentava o 11º Ano num liceu da capital e nem sempre me encontrava satisfeito com a minha vida. As aulas durante a quinta-feira eram penosas porque no decurso da manhã inteira, estava ocupado com disciplinas da área financeira: a Economia, a Contabilidade e o inenarrável Cálculo Financeiro.
Descobri então esse paleativo para as minhas dores de alma... O Liceu ficava a 300 metros do Cinema Quarteto onde decorria um 2º ciclo de filmes do Hitchcock (de épocas variadas). Comecei a visitar assiduamente o local onde bebia um café, observava os cartazes do ciclo e via os trailers que passavam em monitores pequenos junto às bilheteiras. Respirava-se por ali um ambiente saudavelmente cinéfilo. Numa dada semana, dei comigo satisfeito. Já não andava tão atormentado.

Comecei a ler todos os artigos que se escreviam nos jornais sobre Hitchcock. Na televisão, nos últimos meses do ano, também exibiram muitos filmes dele na RTP2. Não resisti a comprar uma notável obra chamada "Hitchcock - Diálogo com Truffaut" que a Editora Dom Quixote oportunamente editou e vendeu com sucesso. E também um interessante mas pouco célebre ensaio em português: "O Cinema de Alfred Hitchcock" de Carlos Melo Ferreira (Editora Afrontamento).

Compreendi que filmes não acabam com as palavras FIM ou FIN ou THE END. Que a partir daí há imensos aspectos a descobrir num filme quando ele nos agrada ou sensibiliza. Converti-me num cinéfilo apaixonado. Já o era mas só então dei o facto como declarado.

Nos dias de hoje, não concebo a estruturação dos meus hábitos rotineiros sem o costume de ver filmes (na televisão, por exemplo) e de ler e escrever sobre eles. Devo confessar-vos amigos leitores: O Cinema tem-me ajudado a viver melhor. Funciona como um paleativo que atenua a dor e a amargura de certos momentos. Não resolve os problemas mas empresta cor e entusiasmo a certos dias cinzentos em que chove o dia inteiro e não temos ninguém por perto. Acho que o Cinema retrata a Vida mas também torna a Vida melhor...

sábado, agosto 13, 2005

HITCHCOCK FAZ HOJE 106 ANOS


É verdade, meus amigos leitores. Alfred Hitchcock completa hoje 106 anos. Nem interessa que tenha viajado para outras paragens e em conluio com Deus nos esconda a sua localização. Talvez algures nos espreite, hoje sabendo mais do que outrora, vigiando certas acções nossas e sorrindo ante as limitações do nosso pensamento e da nossa compreensão da Vida. Talvez como um voyeur-modelo - tipo James Stewart em "Janela Indiscreta" - ele nos espreite no quotidiano das nossas vidas atribuladas. E se ria de nós quando tropeçamos no tapete da nossa sala ou sempre que pisamos uma pastilha elástica.

Parece-me que ele bom pode estar comodamente sentado num camarote junto a Alma, sua esposa, devorando com o olhar imagens do nosso belo pleneta tão vitimado pela maldade humana, pelo egoismo e pela ambição. E pela violência que ele retratou nos seus filmes quase sempre com humor e ironia.

Gostava de vos contar hoje as origens da minha cinefilia. Mas dificuldades alheias à minha vontade me impedem de escrever muito tempo. Hoje relembro o nascimento de Hitchcock - que ocorreu a 13 de Agosto de 1899. Toda a obra do mestre inglês se centrou na confrontação de realidades distintas: segurança e perigo ; lucidez e loucura; rotineiro e extraordinário; vida e morte. Hoje tanto me parece pertinente falar do seu nascimento como da sua morte porque afinal toda a existência humana está condicionada pela ideia da Morte e a Morte não pressupõe outra coisa que não uma vida que chegou ao fim.

Hitchcock morreu em 1980. Estava velho, cansado e doente. Bem pode ter morrido no sentido literal do termo. Os seus restos mortais (depositados numa campa cuja localização não é do conhecimento público) podem dizer que o seu corpo pereceu. Mas criadores como ele nunca morrem verdadeiramente.

Os filmes de Hitchcock perpetuam a sua vida e a lembrança que temos dele. Ele tinha por hábito aparecer sempre no mundo dos seus personagens (figurando lado a lado com os actores em discretas mas sintomáticas aparições). De certa forma, hoje ele está presente no nosso mundo de modo similarmente enigmático. Vemos o seu rosto, escutamos a sua voz, lemos os seus escritos. Mas, acima de tudo, embarcamos no universo mirabulante das suas histórias, aquelas que ele concebeu (quase) a seu belo prazer.

Assim, desta forma, abrevio os meus comentários e pergunto: Não estará Hitchcock mais vivo do que muitos de nós? Está vivo e congratulo-o pelo seu 106º Aniversário!



Nota adicional: Faleceu, esta semana, a actriz Barbara Bel Geddes. Foi a Midge do filme "Vertigo" de Hitchcock. Desempenhou, nesta película, um papel de elevado interesse artístico. Também rodou com Hitchcock um dos episódios que este realizou para televisão. Hitchcock gostava dela. Da sua simplicidade e entrega. Da honestidade que revelava diante das câmaras. Até sempre...

quinta-feira, julho 21, 2005

O MEDO NA VIDA E NA OBRA DE HITCHCOCK




Um homem e a sua obra… É necessária alguma sorte para que um ser humano encontre a sua vocação natural e a aplicação perfeita dos seus atributos. Imaginemos que Einstein tivesse sido forçosamente sapateiro ou agricultor durante a sua vida inteira. E que Pasteur ou Madame Curie nunca tivessem estudado; que Monet nunca tivesse pegado num pincel; que Camões não tivesse descoberto a sua paixão pela poesia… Já imaginaram o desperdício de talento?
Hitchcock começou a trabalhar na indústria cinematográfica, ainda muito jovem. No início da década de 20, já ele concebia o aspecto gráfico de intertítulos para filmes mudos. Em 1939, antes de deixar a sua Inglaterra natal em direcção a Hollywood, era um realizador reputado e com um estilo de trabalho muito próprio.
Parece óbvio que Hitchcock encontrou o seu caminho certo. Mas não seria o Medo, o veículo identificador da sua vocação e da sua obra? O medo do fracasso perseguiu-o desde a realização do seu primeiro filme. Esse mesmo medo que ele gostava de retratar sob tantas matizes e formas. O medo da Polícia, da Solidão e do Castigo… Recriava-os ele bem porque os sentia na pele.

É certo que por detrás do mito de Alfred Hitchcock, se escondem muitas histórias fantasiadas e ideias feitas. No entanto, um relato da sua infância é famoso e muito característico. Parece que o pequeno Alfred Joseph, então com cerca de 5 anos, foi dado como culpado de uma maldade qualquer, uma malandrice própria de quem é criança e não mede os seus actos. O pai dele tê-lo-á mandado falar com o chefe da Polícia local com quem terá combinado que, para castigo, ele fosse mantido preso dentro de uma cela durante alguns minutos.
A cela era escura e claustrofóbica e aqueles minutos terão sido profundamente traumatizantes. Alfred Joseph cresceria com tanto medo das autoridades e da Polícia como dos próprios criminosos.
Hitchcock referia-se com regularidade à rígida disciplina no seu colégio; à forma como ele e os seus colegas eram severamente punidos por consequência de uma má nota ou de um comportamento minimamente insubordinado; e ao modo como o castigo era aplicado estrategicamente após um dia de angustiante espera.
O Medo surge então como um dos elementos formadores da personalidade de Hitchcock. Moldou a sua educação. E condicionou decisivamente toda a sua obra.

Através de determinados filmes, Hitchcock enfatizou a fragilidade humana e a insegurança emocional. A sua obra centra-se afinal na ideia do Medo e nas suas consequências. E o suspense traduz-se em níveis de ansiedade. Por isso, imensos personagens que povoam a sua filmografia são vítimas evidentes do Medo. Entre elas: Joan Fontaine em “Rebecca” (1940) e “Suspeita” (1941); Gregory Peck em “Casa Encantada” (1945); Ingrid Bergman em “Sob o Signo do Capricórnio” (1949); James Stewart em “Vertigo” (1958); ou Tippi Hedren em “Marnie” (1964).

O Medo é (e Hitchcock bem o sentia) uma expressão da condição humana. Ele foi um dos primeiros grandes realizadores da História do Cinema a saber recriá-lo com maestria e requinte. E bem se divertia a provocar emoções nos seus espectadores. Então pergunto-me:
O Medo presente na personalidade de Hitchcock não o terá levado a descobrir o seu estilo cinematográfico próprio?

Por meio de Hitchcock, o entretenimento cinematográfico tomou novos contornos. Hitchcock aprendeu a subverter o estado natural das coisas. A transformar a ansiedade em diversão. Ele pode ter sofrido influências de escritores como Edgar Allan Poe e de cineastas como D. W. Griffith. Mas construiu o seu próprio estilo e, no seu domínio, foi mais além do que estes.
Hitch confessou algures que talvez se tenha começado a interessar por suspense depois de ler Poe. Um pormenor o fascinava naquele escritor: as suas histórias tão inverosímeis e improváveis pareciam credíveis quando o leitor embarcava nas narrativas. Como se o mais incrível fosse susceptível de nos acontecer no próximo minuto.

Com Griffith, Hitchcock ter-se-á apercebido do valor da adesão emocional do espectador ao espectáculo fílmico. Em “Intolerância” (1916), há uma perseguição tremendamente emocionante. Está nela uma vida humana em jogo. Recordo-me de ter reparado naquela sequência quando tive oportunidade de ver o filme na televisão, há cerca de quinze anos.
Hitchcock terá também confessado que certos escritores o influenciaram marcadamente. Entre eles: J. B. Priestley, John Buchan (autor de “The 39 steps”), John Galsworthy e Mrs. Belloc Lowndes. De todos eles, Hitchcock terá herdado o gosto pela acção emocionante e pela intriga de contornos misteriosos.

O Medo é central na filmografia do aclamado Mestre do Suspense. Na realidade, a sensação de Medo que as audiências vivem ante um filme de suspense ou de terror é muito peculiar. É um medo intenso e pode ser perturbador mas evidencia algum conforto. Porque, como dizia Hitchcock, o público bem sabe que está seguro, confortavelmente sentado numa poltrona, a ver um filme. Nada mais. Os filmes podem garantir ao espectador uma sensação inconsciente de segurança e ainda assim, assustá-lo, surpreendê-lo e provocar-lhe sustos.
Citando Hitchcock: “Cenas (…) que fazem o sangue correr pelas veias são altamente benéficas para a indigestão, gota, reumatismo, dor ciática e menopausa precoce. O público tem as suas emoções, o cinema tem o seu público, o realizador tem o seu cinema e todos ficam felizes.” (in revista “Picturegoer” de Janeiro de 1936)
Quem sou eu, um mero hitchcockiano, para duvidar da validade destas teorias?

quinta-feira, junho 30, 2005

COM QUE LINHAS SE TECE O SUSPENSE...



O cinema de Hitchcock leva-nos a ponderar se não existirá dentro de nós mesmos uma atracção insólita pelo desconhecido. Quase que nos conduz a aceitar que toleramos a angústia e o medo. Afinal, procuramos esses ingredientes num filme de suspense. E se não os encontrámos, ficaremos desiludidos e com todas as nossas expectativas defraudadas. Procuramos emoção numa sala de cinema. E também da angústia podemos fazer um divertimento. (Como refere José Vaz Pereira no jornal “A Capital” de 4/7/1988, a propósito de Vertigo (1958): “Hitchcock faz da angústia [uma] obra-prima.")
O futuro… O nosso futuro… Existirá desconhecido mais enigmático e evidente? Gostaríamos nós de possuir uma apreensão cognitiva das realidades que vamos viver? Gostaríamos nós de conhecer a data da nossa morte ou o dia em que seremos violentamente atropelados por um camião?
O senso comum diz-nos que o melhor é não sabermos o nosso futuro. É menos perturbador que assim seja. E mais emocionante também. Vida sem emoções equivale a um estado vegetativo. Por isso, é saudável que sintamos medo e ansiedade ante uma realidade que não sabemos como vai ser moldada. Isso é suspense. Existe desde os primórdios dos tempos.

Algures Alfred Hitchcock escreveu que o cinema poderia ser um eficaz meio artificial de estimulação dos nossos sentimentos e emoções. É preciso não esquecer que o afirmou num contexto temporal em que o cinema evoluía aceleradamente de década para década. Sob o ponto de vista técnico e artístico. Não parece portanto descabida a ideia de Hitchcock. Nem que, ainda hoje, fujamos dos nossos problemas para viver as angústias dos personagens de um filme.
Num enredo narrativo tipicamente hitchcockiano, há sempre pormenores a manter secretos. No entanto, o espectador precisa perceber que há perigo para verdadeiramente o sentir. Caso contrário, não há ansiedade nem medo nem expectativa. Por isso, é preciso oferecer informações ao público.
A ideia é simples. Uma bomba vai rebentar dentro de dois minutos e um grupo de pessoas que conversam amenamente está na proximidade do engenho exclusivo. O espectador precisa saber que existe uma bomba e que ela está na iminência de rebentar e de matar todos os que estão em redor dela. Se assim não for, não há suspense.
Exemplos de situações destas pululam no universo da filmografia de Hitchcock. Ele argumentava frequentemente que pode ser muito mais emocionante saber quem é o assassino (para que o temamos e temamos as suas acções) do que desconhecer a sua identidade. Por isso, os romances de Agatha Christie não lhe ofereciam o tipo de suspense que ele mais apreciava e com o qual é mais identificado. Quando se sabe onde está o perigo e em quem, é mais fácil criar situações de suspense. As dissertações de Hercule Poirot e de Miss Marple e a monótona investigação em torno do crime não são emocionantes. Revelam inteligência e brilhantismo. Mas não criam emoções. Funcionam na esfera do raciocínio e da lógica. O espectador acaba pensando: “O Poirot que descubra o criminoso por mim!” Não há uma identificação tão directa com as vítimas nem um horror tão explícito em relação ao perigo.

Assim compreendemos que o assassinato de Grace Kelly seja premeditado e preparado no decurso da primeira metade de “Chamada para a Morte” (1954). Ante o nosso olhar. Ou que uma criança transporte uma bomba dentro de um autocarro em “Sabotage” (1936). Ante o nosso olhar e angústia. Que vejamos os pássaros juntarem-se à sucapa por detrás do banco onde Tippi Hedren está sentada e fuma com nervosismo em “Os Pássaros” (1963). Que saibamos em que momento preciso da música é que o assassino vai disparar a arma durante o concerto no Royal Albert Hall em “O Homem que Sabia Demasiado” (1934);ou na sua remake de 1956. Que conheçamos a identidade sórdida do serial killer em “Frenzy” (1972) quase no começo do filme. Etc. Etc.

A questão do bom senso e da eficácia na criação do enredo narrativo está, na minha opinião, em saber nivelar sabiamente duas áreas:
- A área do que conhecemos e que denuncia situações de perigo; e
- A área do que desconhecemos ou não compreendemos e que remete para situações misteriosas ou psicologicamente perturbadoras.

Em relação a nós mesmos e ao nosso futuro, apenas poderemos alimentar suposições a partir dos sinais evidentes e palpáveis. Como escreve Hitchcock: “Quando Deus mantém o futuro oculto, está a dizer que as coisas seriam muito tediosas sem suspense.” E também defende: “Creio que o futuro oculto é uma das dádivas mais misericordiosas de Deus”. (in “Would You Like to Know Your Future?”, texto publicado no Guideposts, Magazine 14, nº8 – Outubro de 1959)
Se muitas pessoas morreram já atropeladas por camiões, poderei eu perguntar a mim mesmo de cada vez que atravesso a estrada: “Será agora que vou morrer?” – Preocupação neurótica se levada demasiadamente a sério mas que me pode levar a reflectir: “Se não morrer na estrada, como e quando morrerei?” Isso é suspense! E Deus é o cineasta do filme das nossas vidas! Já agora: Não será Deus um verdadeiro hitchcockiano? Senão porque são a Vida e a Morte mistérios tão enigmáticos e insolúveis? Os adeptos brasileiros de futebol costumam gritar com entusiasmo que Deus é brasileiro. Eu direi: Deus sabe criar suspense. É hitchcockiano, portanto...