Saul Bass foi um dos grandes designers gráficos de meados do século XX. Criou muitos logotipos comerciais e posters de promoção de eventos – como os Jogos Olímpicos de Los Angeles (em 1984); ou a Cerimónia de Entrega dos Óscares (em 1991 e nos cinco anos subsequentes).
Mas a maestria, o enorme talento e inteligência e o pioneirismo de Bass manifestaram-se nessa área específica das produções cinematográficas que é a abertura do filme com a listagem dos créditos. Tradicionalmente e durante muitos anos, o genérico de uma obra cinematográfica não merecia grande empenho e planeamento. Os nomes essenciais da equipa de produção do filme eram mostrados em cerca de um minuto (ou menos) e a lista não era muito exaustiva. O tipo de letras não obedecia a critérios artísticos muito definidos. Uma imagem subliminar podia servir de cenário inspirador.
No domínio de Hitchcock (para não ir mais longe), recordo-me da abertura de “Mentira” (1943) em que vemos pares de pessoas a dançar a valsa da Viúva Alegre – que é uma referência simbólica no contexto da narrativa do filme. Posso evocar o subir das persianas que mostra o pátio das traseiras em “Janela Indiscreta” (1954); ou os traços das linhas de caminho-de-ferro em “Desconhecido do Norte-Expresso” (1951). São genéricos pensados e preparados mas não brilhantes.
O genérico é o ponto de partida. Mas nas grandes produções clássicas raramente se fugia a um conceito utilitário de genérico – algo que era necessário mas que não exigia grandes empenhos artísticos.
Existia um outro pormenor: até aos anos 60, muitos filmes tinham aquilo que se convencionou chamar «abertura» (ou «overture»). Significava uma introdução à obra antes da sequência de créditos e estabelecia-se sobre a exibição de uma imagem fixa ou gradualmente pouco alterada. Ou mesmo sobre uma imagem branca, vazia de conteúdos. Durante alguns minutos, a audiência ouvia excertos da banda sonora ou o tema principal do filme. Este procedimento foi usado nas exibições de “E Tudo o Vento Levou” (1939), “A Leste do Paraíso” (1955) e “2001 – Odisseia no Espaço” (1968). Recentemente, Lars von Trier recuperou esta tradição em “Dancer in the Dark” (2000). Frequentemente, as aberturas são hoje cortadas porque quase ninguém parece entender a razão de ser da sua existência.
O mérito de Saul Bass, no domínio dos genéricos, revelou-se pioneiro e particularmente atractivo. Ele descobriu um modo artisticamente elaborado e inteligente de introduzir o espectador no contexto do filme. Normalmente, fazia-o usando imagens simbólicas que também tornava relevantes nos cartazes promocionais.
O lema de Saul Bass seria «SIMBOLIZA E SUMARIZA». Tomando contacto com o tema e a narrativa do filme e com o espírito que dele derivava, o seu trabalho consistia em preparar uma sequência animada de imagens que fosse uma antevisão e um reflexo do que o espectador ia presenciar. Um genérico de Saul Bass introduzia a audiência no filme, fazendo-a sentir o ambiente de cada obra desde o primeiro segundo.
O primeiro genérico criado por Saul Bass é do filme “Carmen Jones” (1954) de Preminger. Saul Bass havia concebido o poster do filme e o realizador gostou tanto dele que o convidaria a conceber o genérico.
Em 1955, Preminger apresentou o seu “Homem do Braço de Ouro”, sobre um músico de Jazz viciado em heroína. O tema era controverso e delicado. Saul Bass criou a imagem de um braço denteado e retorcido e foi esse o símbolo com o qual o filme foi associado. No genérico, há movimentos que inspiram a ideia de veias e de seringas.
Quando as bobinas foram distribuídas pelas salas de cinema para a estreia do filme, Otto Preminger mandou anexar um bilhete às latas: nesse papel, ele alertava expressamente os projeccionistas para fazerem correr as cortinas antes do genérico ter início. Deste modo, Preminger estava a valorizar o trabalho de Bass e a riqueza potencial do genérico como parte integrante de um filme.
Saul Bass criou cerca de 50 genéricos para filmes. O seu cruzamento com Alfred Hitchcock foi notável. Os seus trabalhos para “Vertigo” (1958), “Intriga Internacional” (1959) e “Psico” (1960) são tremendamente expressivos, carregados de simbolismo e animados pela vibração da música intensa de Bernard Herrmann.
Em “Vertigo” que é um filme sobre a procura de uma identidade feminina, Bass centra a imagem no olho de uma mulher anónima. Quando o nome de Alfred Hitchcock surge, o écran cobre-se de uma coloração vermelha – símbolo de paixão, de crime e de sangue. Depois, entramos na íris do olho, submersos por espirais coloridas que rodam sobre si mesmas. A espiral lembra o penteado de Madeleine mas é também uma tradução da falta de controlo de Scottie, da sua desorientação e do abismo que advém das suas vertigens.
Em “Intriga Internacional”, as linhas verdes que se cruzam bem parecem linhas de caminho-de-ferro – a viagem de comboio é importante na narrativa. Os nomes deslizam pelas linhas paralelas como se descessem em elevadores ou em carruagens. De forma frenética e ritmada. Por fim, constatamos que as linhas são os traços identificativos de um arranha-céus duma grande cidade. Vemos enorme agitação nas multidões que passam na rua. Frenesim numa espécie de selva urbana onde todos correm para o seu destino. O genérico antevê o frenesim da narrativa. Hitchcock corre para apanhar o autocarro mas as portas fecham-se-lhe diante da cara.
Em “Psico”, Saul Bass traça linhas horizontais e verticais que vêm de fora para o centro do écran. O ataque das linhas parece semelhante à investida de uma faca ou de espadas paralelas. O movimento é enérgico e assume uma relevante expressividade através da música de Herrmann. Os nomes são espartilhados evidenciando a confusão de identidades no filme. O nome de Alfred Hitchcock é fragmentado à semelhança da própria personalidade de Norman Bates e por fim desaparece na perspectiva da cidade de Phoenix, no Arizona. O universo simbólico e psicológico dá lugar ao mundo real dos edifícios altos e das múltiplas janelas.
Saul Bass trabalhou em “Psico” (e em outras obras cinematográficas) como consultor para aspectos visuais. Há uma notável polémica em torno do seu desempenho na sequência do chuveiro. Diz-se que terá esboçado o aspecto gráfico de muitos dos planos e que dirigiu momentos do processo de filmagem dessa cena. Maior ou menor, o contributo de Saul Bass foi relevante.
Os genéricos de Saul Bass são fantásticas recriações do espírito dos filmes que apresentam. Desvendam pormenores, evidenciam sinais, contam histórias sem nunca quebrar os sigilos necessários. Remetem para o subconsciente, para a força dos símbolos, para universos paralelos ao da realidade palpável. São criações artísticas, portanto emocionais e que apelam aos sentidos, mas que têm uma relação concreta com o contexto narrativo de cada obra.
Saul Bass criou o seu próprio estúdio de trabalho em 1952 e acolheu nele a assistente Elaine Makatura com quem casou em 1962. Muitos dos seus genéricos apresentam o nome dela, lado a lado com o seu, o que traduz um desempenho de parceria.
Saul Bass morreu com 75 anos, em 1996. Deixou um trabalho de referência. Inspirou e continua a enriquecer a imaginação de muitos artistas. Concebeu os três genéricos mais belos e emocionantes da filmografia de Hitchcock. O Mestre do Suspense cedo se revelou sensível à importância dos «opening titles». Há genéricos não concebidos por Saul Bass que merecem um destaque especial na sua filmografia: entre eles, os de “O Terceiro Tiro” (1955), “Os Pássaros” (1963) e “Cortina Rasgada” (1966).
De resto, cada vez mais se tem tomado consciência do valor artístico (e não só funcional) de uma boa abertura com títulos. Nos nossos dias, é impossível ficar indiferente aos primeiros minutos de “Apanha-me Se Puderes” (2002) de Spielberg ou àqueles que dão início a “Sete Pecados Mortais” (1995) de David Fincher. O progresso tecnológico auxilia a promoção e a evolução de todo o tipo de conceitos visuais. E os recursos informáticos são riquíssimos.
Acredito que Saul Bass contribuiu decisivamente para a valorização do potencial de um genérico. Assim como o também notável Maurice Binder, responsável por muitas das sequências de abertura dos filmes de 007 – onde as cores, as sombras, os fumos e as silhuetas dançam numa harmonia delicada (e sensual) ao som dos temas do compositor John Barry.
É difícil estabelecer uma lista dos melhores genéricos entre aqueles que constituem o legado de Saul Bass. Aconselha-se vivamente uma visita ao site sobre Saul Bass que foi incluído, esta semana, no grupo de links permanentes deste blog. Lá é possível visionar algumas sequências e cartazes promocionais; e também ler uma breve biografia do célebre designer. Trata-se de um site com informações concisas mas que é visualmente atraente e simpático.
Entretanto, uma busca no YouTube usando o nome de Saul Bass permite ver cerca de 30 genéricos seus. Eis uma (discutível) lista de paragens obrigatórias e, a vermelho, possivelmente os meus favoritos:
- «The Man With The Golden Arm» (historicamente importante)
- «Vertigo» (imprescindível)
- «Cowboy» (pouco célebre e interessante)
- «North By Northwest»
- «Anatomy of a Murder» (historicamente importante)
- «Ocean’s Eleven» (imprescindível)
- «Psico» (imprescindível)
- «Walk on the Wild Side» (muito interessante)
- «It’s a Mad Mad Mad Mad World» (cómico e criativo)
- «Bunny Lake is Missing» (enigmático)
- «Seconds» (imprescindível)
- «Cape Fear» (imprescindível)
- «Age of Innocence» (imprescindível)
- «Higher Learning» (divertido e com ritmo)
- «Casino» (imprescindível)