segunda-feira, agosto 13, 2007

HITCHCOCK NO ESTÁDIO




Minutos antes do início da sessão, a grande tela branca estava agitada com o vento. Estremecia e remexia-se ruidosamente. A noite não estava quente mas o aspecto tenebroso dos ramos das árvores em movimento frenético até era bem adequado ao ambiente de um filme de Hitchcock.

Nas bancadas, ter-se-ão juntado cerca de duzentas pessoas (estimativa minha) para verem o “Psico” num écran de grandes dimensões. O clássico do Hitchcock estava no programa de um ciclo de cinema de Verão que decorreu no Estádio do INATEL, em Lisboa. E foi apresentado como um histórico filme de culto entre outras doze produções – todas elas recentes.

Estávamos no serão do passado dia 7. O ambiente no estádio era agradável. Antes da projecção, bebi o meu indispensável café no bar. Olhei em redor na perspectiva de detectar sinais de cinefilia. O poster do filme mostrava uma imagem promocional bizarra e irónica. Uma jovem desconhecida com um penteado estranho – dir-se-ia que havia visto um fantasma. Hitchcock por detrás dela numa postura de quem quer assustar. E ao fundo, inconfundível, a casa de Norman Bates tal como hoje ainda está preservada nos estúdios da Universal. Uma frase tormentosa servia o lema do filme: «Grita o teu último Suspiro.”

Pude observar no bar e nos espaços abertos circundantes sinceras manifestações de boa disposição entre os espectadores mais jovens, aqueles que não teriam mais de 18, 20 anos e que iam em grupos. Avistei muitos casais de namorados trintões. E uma ou outra família. Considerando que, em 1960, o filme foi classificado para maiores de 17 anos, Hitchcock ficaria admirado com a admissão de crianças numa exibição do seu “Psico”.

Na verdade, nos dias de hoje, o amor ilícito de Janet Leigh e John Gavin já não escandaliza ninguém. E as imagens d’ “O Labirinto do Fauno” que foram mostradas em antevisão – o filme de Guillermo Del Toro ia passar ali daí a duas noites – talvez tenham impressionado mais os espíritos vulneráveis do que os ataques violentos e estridentes da Sra. Bates.

A anteceder o filme, foram exibidos depoimentos de algumas pessoas que trabalharam em “Psico”, entre elas a actriz Janet Leigh pouco tempo antes da sua morte – imagens muito possivelmente retiradas do documentário incluído no DVD do filme. As legendas de apresentação das personalidades estavam trocadas mas ouso admitir que esse terá sido um mal menor – embora fosse correcto que as pessoas compreendessem o discurso de Joseph Stefano como vindo do argumentista do filme e não de Hilton Green, o assistente de direcção.

A cena do chuveiro foi abordada e discutida nas declarações mostradas. Partes da mesma cena foram mostradas numa antevisão que não agradaria a Hitchcock. Mas, às tantas, dei comigo a perguntar-me: haveria alguém naquele estádio que não soubesse a identidade do terrível monstro assassino da casa dos Bates? Presumo que não.

A ideia do psicopata perigoso e com várias personalidades tem sido copiada e usurpada centenas de vezes. Em prejuízo de filmes mais antigos e que foram originais no seu tempo. Ali, naquele estádio, todas as pessoas pareciam conhecer Norman Bates. Aquela exibição era, mais do que tudo, uma revisão nostálgica do filme. Ou a ocasião soberana para jovens espectadores verem o produto original depois de terem conhecido a sua desinteressante remake de 1998, conduzida por Gus Van Sant.

O crítico e comentador de Cinema, Mário Augusto, falou para o público do Estádio do INATEL. Não directamente e ao vivo mas através de uma filmagem a preto e branco – com riscos e traços que a faziam parecer tão antiga como o filme de Hitchcock. Ele citou algumas daquelas curiosidades que são do agrado generalizado de quem gosta de saber como um filme histórico foi feito. E apontou o impacto pioneiro da morte da protagonista aos 40 minutos de filme.

Nos depoimentos mostrados, constatei que foi feita referência ao contributo do designer Saul Bass para a concepção da sequência do chuveiro. Mas o nome do compositor Bernard Herrmann não foi referido. E nunca é demasiado salientar a importância da música em toda a encenação fílmica de “Psico”. No momento dos assassinatos, também. Eu diria que aqueles acordes dissonantes tanto parecem soar a golpes desferidos como a convulsões de violinos em pura agonia.

Depois da cena derradeira, logo assim que o carro de Janet Leigh foi puxado do pântano, senti a ausência de um genérico final que facilitasse uma melhor ponderação do impacto do filme. Com as palavras da expressão «THE END» e com as barras paralelas a fecharem a imagem do filme, o estádio ficou momentaneamente numa meia escuridão. Algumas pessoas aclamaram a sessão, batendo palmas. Depois, as luzes foram ligadas e o sistema de som começou a difundir o anúncio do filme do dia seguinte: “Filme da Treta” com António Feio e José Pedro Gomes.

Saí do estádio, ouvindo os comentários à minha volta. E procurando discernir se “Psico” ainda é um filme convincente nos nossos dias. Acredito que é essencialmente uma brilhante encenação cinematográfica. E constato que recebeu uma respeitabilidade importante. É um filme apreciado por audiências distintas. Pelo amante do cinema de terror barato e pelo cinéfilo susceptível a notoriedades históricas.

A solução final do enigma de “Psico” sempre me pareceu simplista. Num dado momento, o argumento podia ter sido desenvolvido de forma mais complexa e laboriosa. Refiro-me ao momento em que o Xerife se pergunta: «Se a mulher que está na casa de Norman Bates é a mãe dele, quem foi a mulher que foi a enterrar no cemitério?» – Questão que introduziria novas inquietações e incertezas.

Como costumo afirmar, criar um enigma interessante é uma conquista mas oferecer uma solução inteligente a esse enigma é ainda uma conquista maior. Por isso, o cinema de David Lynch com todos os seus becos sem saída me parece repetidamente descabido e despropositado.

O fascínio de “Psico” reside no engenho com que a história é narrada e no trabalho oferecido a detalhes enganosos. Alguém comparou o percurso de Marion Crane estrada fora com o do Capuchinho Vermelho que enveredou desobedientemente pelo bosque e foi dar com o lobo mau.

“Psico” é afinal, como todos os filmes de Hitchcock, uma obra sobre a culpa e sobre o castigo. Se o Cinema é trabalho de encenação e de ilusão, “Psico” em particular e a obra de Hitchcock em geral são, neste aspecto, criações emblemáticas.

Acrescento que considerei interessante a iniciativa do INATEL de promover jantares temáticos. O menu de cada jantar estava associado ao filme da noite e era servido no topo das bancadas, na zona dos camarotes, por um preço adicional. Confesso que a ideia me assustou inicialmente porque já estava a imaginar o som original do filme massacrado com a batida dos talheres e dos pratos. Mas não se registaram problemas dessa ordem.

Foi servida como entrada a Salada Hitchcock e como complemento final da refeição a sobremesa ideal para o Mestre: Gelado em essência de Brandy. O prato principal foi Rosbife à Hitchcock. Hitchcock consumia intensamente carne, nomeadamente ao almoço quando lhe era servido um bife de proporções consideráveis – sem ovo a cavalo, que os ovos não lhe agradavam.

Considerando que sofria de problemas cardíacos e que era muito pesado, a dieta de Hitchcock não deveria passar por essas suculentas refeições de carne. Quem sabe se tivesse comido mais prudentemente, Hitchcock teria tido tempo de vida suficiente para realizar mais filmes… Mas, segundo dizem, só se vive uma vez. E a Vida também é enriquecida por pequenos prazeres gastronómicos. Como aqueles que o INATEL propôs para os cinéfilos, em noite de Verão.

RESUMO DO JOGO
No Estádio do INATEL, naquela noite, o jogo foi diferente. Houve emoção, inteligência táctica e estratégica e arte. Mas não houve derrotas. Nem empates. Todos ficaram a ganhar qualquer coisa. Hitchcock treinou bem a sua equipa. Norman Bates marcou dois golos soberbos. O primeiro, mais aparatoso e espectacular, aos 40 minutos. O segundo, aos 70 minutos.
A 5 minutos do termo do jogo, sentiu-se um calafrio geral. Lila Crane avançou para a grande área do adversário mas foi assustadoramente confrontada com um guarda-redes inesperado: o esqueleto da Sra. Bates. Norman tomou conta da bola e tentou o seu terceiro golo da noite. Sam Loomis defendeu a sua baliza heroicamente e impediu o pior. A bola foi embater na trave. O goleador estava implacável, movia-se com uma força diabólica e mostrava instintos perigosos. Um cartão vermelho veio colocá-lo definitivamente fora do jogo. Foi para os balneários, alegando que não fazia mal a uma mosca. Mas não era verdade.
A audiência aplaudiu o desempenho dos jogadores. Hitchcock continua a ser um campeão. Um campeão histórico e um campeão para o futuro.