sábado, dezembro 23, 2006

MUITO OBRIGADO, PAI NATAL!


Devo estar profundamente agradecido à Providência. Respondi com alegria ao anúncio que o Destino me ofereceu. E calculei de imediato possuir habilitações suficientes para ocupar o cargo em causa. Mas o mercado de emprego está intensamente lotado e julguei por momentos ficar excluído da selecção.

Enfim se a Felicidade também se mede pela dimensão das nossas ambições, sinto-me portador de alguma alegria serena. Conquistei o posto desejado. Não ganhei o Euromilhões nem o amor da mais bela e sensata mulher do mundo. Mas estou contente com as condições deste contrato.

Agradeço ao Pai Natal a moderada satisfação com que vivo esta época festiva. Agradeço-lhe a ele e não ao Menino Jesus porque a avaliar pelas montras das lojas e pelos cartões-postal, já ninguém sabe quem é o menino em causa. Saudações para a Lapónia!


PROCURA-SE:


  • Hitchcockiano convicto

  • Com gosto pela escrita

  • Com elevado grau de cinefilia

  • Portador de uma melomania comprovada

  • Com espírito crítico (Opcional)

  • Com dedicação ao Trabalho (Opcional)

OFERECE-SE:



  • Vida honrada e moderadamente feliz

  • Pleno direito de respirar oxigénio e de gozar os raios do Sol

  • Acesso a televisores de plasma e LCD, leitores de DVD e livros sobre Alfred Hitchcock (mediante pagamento dos mesmos)

  • Direito a admitir que a Felicidade Absoluta é um valor alcançável (ainda que por escassos dias, horas, minutos... ou segundos; ou no caso de existir Vida para além da Morte)

quarta-feira, novembro 29, 2006

SOBRE A IMORTALIDADE



Um cinéfilo a debater a questão da Imortalidade poderá adiantar de imediato que nenhum filme existe sem uma conclusão. Sem um fim, sem as palavras THE END ou as letras do genérico final. Mas também poderá declamar emotivamente que depois das palavras THE END, se pode sempre rebobinar a fita e começar a passá-la de novo. Por isso, o cinéfilo acredita que há filmes imortais ou eternos.

Porque escrevo eu sobre a Imortalidade? Não é que a questão da Imortalidade me preocupe muito. Ainda assim, nos últimos anos, tem-me vindo a inquietar esporadicamente a inevitabilidade da Morte. A ideia de que morrerei e a antevisão de que daqui a 100 anos ninguém vai saber da minha existência.

Por acaso, até acredito na Vida para além da Morte. Mas não estou completamente seguro dela. Se a nossa existência acabar no dia em que morrermos, não deve haver grande problema. Estaremos mortos. Não tomaremos consciência. Não teremos alegrias. Mas também não estaremos muito amargurados… A menos que o Inferno exista e o calor das chamas seja exagerado.

Dou comigo a pensar que a Vida neste nosso planetazinho azul é muito particular. Parece-me que quando morrer, irei gostar que se lembrem que vivi aqui. Para conseguir isso, era conveniente fazer algo de relevante. De preferência uma acção construtiva e positiva para a Humanidade. Porque Hitler e Estaline ainda estão bem vivos na memória das pessoas mas pelas piores razões que se podem imaginar.

Em conversa com uma boa amiga minha que é solidamente ateia, acabei por descobrir que as nossas conquistas também contribuem para a nossa imortalidade. Falei-lhe que havia acabado de escrever um romance. E acabei dando conta de que aquele livro, por muito mau que fosse, podia testemunhar que existi. Se perpetuaria uma boa memória de mim, isso já não poderia garantir.

Talvez tenha sido por isso que não muitas semanas depois, enclausurei o livro dentro de um armário e até hoje não lhe dei a ver a luz do dia.

É agradável ser lembrado. Constatar que não se esquecem de nós. Mas há pessoas de grande valor humano que nunca se salientam. Isso fará delas pessoas menos relevantes? Acredito plenamente que não.

Na verdade, com o progresso tecnológico é mais fácil perpetuar a nossa imagem. Em registos escritos e falados, gravações de som e de imagem. Vídeos, DVDs, MP3, fotografias digitais de enorme qualidade…

Repare-se na evolução técnica do século da Severa para o de Amália. E do século de Amália para o de Mariza. Os retratos dos meus avós na década de 30 permitem-me visitar um passado distante. De igual modo, as películas com exposição de imagens em movimento. Mas hoje as máquinas de filmar já não estão só nas mãos dos realizadores e dos jornalistas. Estão nas mãos de qualquer pessoa. Nas mãos do indivíduo comum. Amanhã sabe Deus o que teremos para registar a memória de um momento ou para arquivar uma expressão artística.

Numa manhã invernosa (de Outono!) escrevo e pergunto a mim mesmo: é tão difícil fazer com que sejamos lembrados? Pelas nossas obras, pelo nosso valor? É difícil.

Se quisermos ser recordados pelo nosso talento, não será fácil nem comum conseguirmos que se lembrem de nós. Porque a genialidade é característica de poucas pessoas. E qualquer tipo de relevância tem um preço às vezes não muito baixo. Ser recordado hoje quem já viveu há muito tempo…

No entanto, temos a outra face da moeda: não valerá mais ser amado em vida do que recordado depois de morto? Então o nosso sentido de dignidade e o valor e a honestidade dos nossos sentimentos contarão mais para o campeonato.

Sobre a Imortalidade, sei que pode ser inconveniente mas tentadora. Sei que, de certo modo, estamos vivos se se lembrarem de nós. Sei que há vários conceitos de Imortalidade. Que cada pessoa constrói o seu ideal de Imortalidade. Por exemplo: Se eu morrer hoje e alguém ler estas linhas amanhã, não será que vivi para além da minha existência terrena?

Sobre a Sétima Arte: acho que um dos alicerces da sua magia é a capacidade de imortalizar figuras, cenas e imagens. Tornar eternamente belos e encantadores os mais belos fenómenos da cultura humana e da natureza terrena e extra-terrena. Um cenário, um acto de amor, uma música, uma sequência trabalhada de percepções visuais.

O Cinema cria mitos e figuras eternamente jovens que vivem para além da vida dos actores, cineastas e técnicos que os tornaram concretos. Este blog bem poderá ser uma célula viva dos homens e das mulheres que o inspiraram. Muito em particular, Alfred Hitchcock.
Poderá ser como que uma batida suave do velho coração do Mestre do Suspense. Aquele coração cansado do homem que trabalhou a ideia cinematográfica do Suspense. Até aos limites da sua criatividade.

Hitchcock vive. Nas células do meu cérebro e na de inúmeros autores que escrevem sobre ele. Vive na tinta que é gasta a debater a sua obra.

Quanto tempo viverá Hitchcock? Não há razão aparente para pensarmos que algum dos seus 53 filmes esteja em perigo de extinção. As cópias restauradas e o progresso tecnológico possibilitarão a esses filmes persistirem intactos durante centenas de anos.

Talvez daqui a 500 anos, os grandes cineastas do século XX possam ser tomados como uma referência cultural importante. Quem sabe como será a Vida então? Se hoje ouvimos a voz de Frank Sinatra e vemos Fred Astaire dançar, quem sabe o que poderemos fazer no futuro? Tudo é possível. E no contexto geral, até a Imortalidade é possível. Hoje e sempre…

segunda-feira, novembro 06, 2006

O SUSPENSE NA TELEVISÃO



No contexto de uma sociedade global como é a do mundo moderno do século XXI, até a Televisão se reinventa em torno de princípios tradicionais. O conceito de série televisiva de sucesso passa agora por novas variáveis. Já não estão só em causa os níveis de audiência durante as emissões nem as receitas financeiras decorrentes da publicidade estrategicamente implantada.

Hoje as séries de sucesso são integralmente vendidas em pacotes de DVDs. E, de alguma forma, podem passar sempre na televisão do espectador. Em qualquer dia e em qualquer hora. O primeiro passo neste sentido fôra dado nos anos 80 com a introdução do vídeo nos hábitos do consumidor médio. (Recordo que vivi com grande entusiasmo essa época em que o vídeo entrou oficialmente em minha casa e passei a poder ver e rever os meus programas predilectos.)

“24” e “Perdidos” são dois exemplos paradigmáticos de como se podem gerir habilidosamente histórias repletas de suspense. Histórias em que se joga preciosamente com o tempo. Neste domínio, “24” é o exemplo perfeito de como se pode explorar de forma muito intensa o patamar das emoções dos espectadores (ao ritmo marcado de cada minuto e de cada segundo).

Na globalidade, as histórias de espionagem e contra-terrorismo de “24” são pouco credíveis mas o que se procura é a criação de pontos de expectativa e não a plausibilidade das situações. Os produtores e argumentistas planeiam e discutem a orientação das histórias com maestria e competência. E todas as semanas, em cada episódio, são criados novos picos de suspense e novas peripécias que desencadeiam o aparecimento de enigmas e o desvendar de surpresas.

Hitchcock gostaria de “24”? Ele que acabou reconhecendo o papel particular da Televisão como veículo de difusão de histórias e de imagens, estou convencido de que não ficaria indiferente ao profissionalismo de um projecto tão bem concebido e orientado.

Hitchcock reconheceu na Televisão um meio de comunicação muitíssimo poderoso. E embora os grandes cineastas da sua geração defendessem o Cinema ante a concorrência dos pequeninos écrans familiares, ele aceitou a proposta arrojada de trabalhar num projecto para o universo televisivo. Todo o dinheiro que Hitchcock investiu aqui foi muitíssimo bem aplicado porque lhe rendeu imensos lucros. E o aproximou ainda mais frontalmente do público.

As suas séries “Alfred Hitchcock Apresenta” e “Alfred Hitchcock Hour” (esta última em exibição no canal SIC Mulher nos últimos meses) narram histórias de crime mais ou menos sórdidas mas frequentemente cinzeladas por um tom irónico e humorístico. Foram emitidas em regime regular entre 1955 e 1962 e ajudaram Hitchcock a difundir a sua imagem pessoal na medida em que ele mesmo procedia à apresentação de cada episódio. Num tom brincalhão e jocoso mas também circunspecto e formal. O tom característico com que ainda hoje é identificado. E que usou nos trailers promocionais de “Psico” (1960), “Os Pássaros” (1963), “Marnie” (1964) ou “Frenzy – Perigo na Noite” (1972).

Cada episódio apresenta uma história completamente autónoma das restantes. Com um desenrolar mais risonho ou mais sombrio. Com personagens diferentes. O desfecho de cada história é pouco previsível. E não há “happy-ends” instituídos. É a diferença entre os episódios de “Quinta Dimensão” e os de “Missão Impossível”. Nos primeiros, o nosso herói pode morrer ou terminar em maus lençóis. Nos segundos, sabemos que os nossos heróis vão sobreviver a tudo e mais alguma coisa porque constituem o elenco fixo da série.

Hoje os episódios de Hitchcock na Televisão podem parecer-nos datados e rústicos. É preciso não menosprezar um aspecto: a Televisão tem sempre progredido uns passos atrás do Cinema. A nível artístico e tecnológico. Mas tem adquirido vantagem porque os televisores são cada vez mais sofisticados e perfeitos. E porque hoje produções relevantes como “24”, “Perdidos”, “Sete Palmos de Terra” e “Os Sopranos” vêm provar que há criações de enorme qualidade (levadas a cabo por profissionais de primeiro nível) e que são concebidas directamente para o palco da Televisão.

O suspense na Televisão está patente nos telejornais e nas telenovelas. Para cativar audiências e criar expectativas, os jornalistas e apresentadores dos jornais de televisão aguçam o apetite do espectador oferecendo-lhe pistas inconclusivas sobre o que ainda pode ver.

E nas telenovelas é comum terminar cada episódio num ponto emocionante. Sempre assim foi com as novelas brasileiras desde “Gabriela”, com as novelas portuguesas desde “Vila Faia” e com as soap operas americanas como “Dallas”. Gerir o suspense no contexto televisivo implica inteligência e empenho. Mas afinal suspense, até no “Big Brother” o encontramos… E no “Um Contra Todos”ou no “Quem Quer Ser Milionário”. Porque o suspense é um ingrediente da Vida.

O que Hitchcock e outros brilhantes artesãos fizeram foi transformar a expectativa em puro divertimento. Torna-se óbvio que a qualidade artística de uma série com vinte episódios (15 horas) não pode frequentemente competir com o primor dedicado à produção de um filme com 120 minutos.

Hitchcock gostaria de séries como “Twin Peaks” sob a direcção de David Lynch ou “Taken” da responsabilidade de Steven Spielberg? Pelo contributo que trouxeram ao modo televisivo de trabalhar o suspense, acredito que sim.

Já agora: porque é que é tão difícil encontrar em Portugal DVDs de séries televisivas a preto e branco? Parte do património televisivo dos anos 50 e 60 tem imagem a preto e branco. Vamos ignorar que essa parte (às vezes muito interessante) existiu?



terça-feira, outubro 24, 2006

SOBRE O TRISTE EMPREGO DO VENDEDOR


Dizem que devemos fazer um esforço por retirar proveito de todas as situações. Mas há circunstâncias embaraçosas das quais não se consegue extrair nada de enriquecedor. Se é verdade que o dinheiro não é um passaporte seguro para a Felicidade, ele ajuda muitíssimo.
E infelizmente acontece que para garantir um sustento mínimo há pessoas que são obrigadas a procederem como idiotas ou como bonecos manipulados. É preciso não possuir mesmo sensibilidade nenhuma para atravessar certos cenários e permanecer imperturbável.


Parecerá que desta vez escrevo uma crónica social. Talvez como discípulo de Frank Capra e não como fervoroso hitchcockiano. A riqueza sociológica de certos filmes de Capra como “Mr. Smith Goes To Washington"(1939), "Meet John Doe" (1941) ou “Do Céu Caiu Uma Estrela” (1946) ia além do debate sobre questões económicas e sociais. (Recordo-me também de um fabuloso "A Loja da Esquina" (1940) de Ernst Lubitsch.)

Eram filmes belos, puros, idealistas, que acentuavam o valor das capacidades humanas e da importância de cada um ser útil no seio da comunidade. Tudo isto registado sem hipocrisias nem lamechices.

Os filmes de Capra eram um hino à procura da Felicidade. À visão de uma sociedade que é mais do que a soma das pessoas que a compõem. E eram filmes que tomando temas sérios, os tratavam com ironia e humor.

É mediante uma perspectiva lúcida mas não demasiado dramática que desejo lidar com circunstâncias estranhas como as que vou narrar. Talvez como um filme de Capra. Mas talvez infelizmente sem o seu conteúdo construtivo e optimista.

Vejam bem: numa destas manhãs ia eu a descer uma das ruas da baixa lisboeta quando fui abordado por uma moça tímida que não deveria ter mais de trinta anos. Atirou-se para a minha frente e bloqueou-me o caminho não se apercebendo que balançava entre a atrapalhação, o desconcerto e a falta de segurança.

Fez-me várias perguntas pessoais em menos de meio minuto, anotou as minhas respostas na folha de uma pasta e implorou-me que a seguisse até ao escritório da empresa onde trabalhava. Não encontrei tempo para aceitar ou para recusar. Senti-me embaraçado. Quis voltar para trás mas pareceu-me ajuizado mostrar alguma solicitude.

Entrámos numa loja pequena, subimos umas escadas na parte traseira do edifício até ao primeiro andar e só parámos numa sala pequena com duas secretárias de atendimento. A cena evidenciava algum suspense e aqui a música de Herrmann até nos ajuda a desenhar o cenário.

Enquanto explorava com o olhar tudo o que por ali havia, a rapariga apresentou-me a uma colega de posto superior (mas não muito superior como veremos).
Pediram-me que me sentasse. Perguntaram-me se eu era do Benfica para cativar a minha simpatia. Depois fiquei sentado diante de uma das secretárias com desconforto e redobrado embaraço. Perguntava-me continuadamente porque motivo estava ali.


A funcionária mais velha (que já teria quarenta anos) bombardeou-me com um historial da empresa. Eu não estava interessado em saber como é que a empresa nascera e progredira. Bati nervosamente com os pés no chão e com as mãos nas pernas.

A senhora declarou com formalismo: «O senhor é um homem de sorte». Perguntei-lhe porquê. Ela sorriu e soltou uma resposta preparada e mecânica. Eu havia sido seleccionado na rua no dia do aniversário da empresa. E bastava-me aderir aos serviços da firma para ser beneficiado com inúmeros descontos e vantagens.

Sorri. Olhei para ela e constatei com tristeza que muitos milhares de desempregados gostariam de ter aquele emprego miserável. Não era fisicamente duro como o daqueles que trabalham nas obras. Nem tão incómodo e amargo como o dos que recolhem o lixo. Mas era quase sinónimo de amealhar clientes por caridade.

Bem ou mal, aquela senhora representava um papel e tinha as deixas bem decoradas e os gestos e maneirismos bem coordenados. Esforçava-se afincadamente e merecia algum prémio pelo seu esforço.

A dado momento, perguntou-me que habilitações literárias tinha. Disse-lhe que estudara vários anos na Faculdade e completara o curso de Antropologia. Ela não sabia o que isso era e para que servia. Como não sabia escrever a palavra «antropólogo», limitou-se a escrevinhar umas palavras apertadas em pouco espaço.

«Se esse curso não serve para arranjar emprego porque é que o tirou?» – questionou ela. Sim. Estava certa. Para que tirara eu um curso que é um veículo para a plataforma dos desempregados e dos inúteis? Respondi-lhe que procurava ansiosamente actividades que satisfizessem o meu ego profissional.

«É um homem de sorte» – Tornou ela a dizer.
«Porquê? Porque faço coisas no dia-a-dia que me dão prazer e entusiasmo?»
«Não. Porque foi escolhido no dia do nosso aniversário e vai poder beneficiar de inúmeras vantagens se se fizer sócio até ao fim do dia.»


Nesta altura, já eu estava cheio de calor. Ela voltou a bombardear-me com a listagem dos benefícios oferecidos aos sócios. Quis vir-me embora mas não pretendia honestamente entristecer aquela senhora tão aplicada na sua missão.

Olhei para ela fixamente. Apesar de tudo, ela não devia acreditar muito no discurso publicitário que declamava. Mas esforçava-se por acreditar e por me fazer acreditar também. Sem sucesso deve dizer-se…

Por fim, levantei-me da cadeira usando o comportamento gestual para fazê-la entender que queria sair e tinha pressa. Ela convidou-me a voltar no fim do dia e informou-me que estaria ali até às 20 horas. E esperaria por mim se necessário.

Sorri com delicadeza. E disse-lhe que talvez voltasse. Ela não deve ter acreditado em mim. «Eu» não acreditava em mim.

Saí, desci as escadas em direcção à loja e então já ninguém me acompanhou. Quando pisei o chão da rua manifestei-me aliviado. Que diabo! Há pessoas que têm cada emprego! Senti-me frustrado. Gostaria de ter ajudado aquelas senhoras mas elas mesmas me haviam deixado quando se renderam mediante o meu desinteresse.

E é este o mundo em que vivemos! Quem trabalha numa área profissional onde se sente feliz já tem uma boa dose de felicidade. E quem vive sem precisar de trabalhar também… (Já agora!)
E triste o nosso mundo desigual e injusto, onde há tantos pobres e desempregados e tanta falta de optimização dos recursos!


Deixei aquela empresa um pouco entristecido e cabisbaixo. Parei no meio da rua e contemplei as pessoas que por ali circulavam. Olhei para trás e então estremeci. Para a entrada da loja fôra arremessado o corpo de uma mulher. Não a conhecia. Aproximei-me e verifiquei com amargura que era o desgraçado cadáver de uma jovem que eu nunca havia visto antes. O que me intrigava é que segundos antes, quando atravessara a loja para sair, não reparara em corpo nenhum. E uma pessoa certamente repara num cadáver quando passa por ele…

Esperem lá, esperem lá. Esta é uma crónica de carácter mais sociológico e capriano. Não devem ter em conta o parágrafo anterior. Não se enquadra aqui. Além do mais, não é verdadeiro. Desculpem-me lá. Não consegui terminar à Capra e deixei avivar um espírito hitchcockiano que me parecia quase ausente destas linhas. Estou perdoado?

quinta-feira, outubro 12, 2006

HITCHCOCK E O SOBRENATURAL



As histórias de suspense proliferam no panorama cinematográfico das últimas décadas. Mas é cada vez mais difícil discernir as influências de cada realizador. Depois do Mestre (clássico) do Suspense, outros cineastas se têm afirmado, procurando agitar as emoções do espectador em cenários de expectativa e terror. Alguns deles na área do Sobrenatural ou do Fantástico…

John Carpenter por exemplo. Foi um notável cineasta de suspense. Fez “Halloween” (1978) numa linha de continuidade de “Psico” mas sem enveredar por plágios evidentes e descarados como os de Brian De Palma. “Assalto à 13ª Esquadra” (1976) é notável. O “Nevoeiro” (1980) é muito interessante. “The Thing” (1982) (que é uma remake de um clássico de ficção científica dos anos 50) apresenta um suspense que é caprichosamente tecido e desenvolvido ao longo da acção.

Carpenter sabia alimentar um suspense intenso, emocionante e pontualmente inesperado. Talvez hoje não saiba tão bem e se perca em pormenores um pouco grotescos. Veja-se o seu “Vampiros” (1998)

Nos filmes de Carpenter tudo é possível e as coordenadas da realidade podem ser subvertidas por fenómenos sem sentido ou por motivos que põem em causa a ordem natural e científica do mundo. Como acontece em “Halloween” cuja sequência final encerra um capítulo de terror sobre um arrepiante psicopata para dar origem a uma história enigmática sobre um monstro imortal, uma entidade maléfica que vive para além da Morte ou que nem passa por ela.

A ordem do Sobrenatural passou de forma marginal no Cinema de Hitchcock. Mas compreendemos hoje que ele poderia ter explorado essa área que depois Carpenter dominou com maestria.


O escritor de best-sellers de terror, Stephen King, concebeu muitos livros que foram depois convertidos em brilhantes filmes de Suspense e Terror. “The Shining” (1980) de Stanley Kubrick, “Misery” (1991) de Rob Reiner ou “A Zona Morta” (1983) de David Cronenberg… Seria insensato pensar que Hitchcock poderia ter gostado de usar alguma da literatura de King ou que ela lhe pudesse ter servido de inspiração? Tal como algumas das obras de Daphne Du Maurier o fascinaram…

“Os Pássaros” (1963) pode ter sido a manifestação extrema e mais ostensiva do anti-natural no Cinema de Hitchcock. Do anti-científico, do anti-lógico. Poderá o cinema assombrado e perturbado (ou perturbador) de David Lynch, David Cronenberg ou Nicholas Roeg ter nascido deste tipo de universo sem sentido onde o autor nem sequer procura encontrar explicação para os fenómenos mais inquietantes? (Não me refiro aqui a Roman Polanski porque já fiz referência ao seu trabalho num apontamento anterior e não devo tornar-me repetitivo.)

Nos últimos anos, um novo vulto do Cinema de Mistério se impôs: M. Night Shyamalan. Os seus “O Sexto Sentido” (1999), “Sinais” (2002) e “A Vila” (2004) reportam-nos de forma mágica para universos enigmáticos mas frequentemente para fazer o espectador encontrar paz no seio do assombro e do terror.

Hitchcock não filmava histórias de fantasmas nem de extraterrestres (ou ninfas).E pelo que vemos em "Rebecca" e em "Vertigo" tinha muito talento para isso. Hoje só podemos argumentar que o suspense de Shyamalan é brilhante como o de Hitchcock e gira em torno da sensação do Medo. Mas é diferente…

Já “Os Outros” (2001) de Alejandro Amenábar bem pode convocar a memória para “Rebecca” de Hitchcock. A Casa é uma entidade carismática e poderosa tanto em “Os Outros” como em “Psico” como em “Rebecca”. As portas fechadas, os enigmas, as sombras, a recriação do medo, as portas que rangem… E uma Nicole Kidman parecida com Grace Kelly (a loira favorita de Hitchcock).

Do mesmo modo “Viver de Novo” (1991) de Keneth Branagh. É uma história de amor eterno e com um argumento que parece funcionar em estrura de ciclo fechado. Em que o passado se repete no presente, em que vamos descobrindo o passado à medida que avançamos no presente. Hitchcock poderia ter pegado num projecto como este?

O romantismo bucólico de “Viver de Novo” traz-me à memória um clássico bem mais perfeito do cineasta William Dieterle: “Retrato de Jennie” (1948). Mas a dimensão aterrorizadora da sua história faz-me pensar em Hitchcock ou no “Segredo da Porta Fechada” (1948) de Fritz Lang.

Hitchcock não costumava filmar o Sobrenatural mas talvez ele não se tenha apercebido das potencialidades deste género de histórias. Nos anos 50 e anteriormente, os filmes de ficção científica e de terror eram muito desconsiderados, taxados como filmes B ou produções de segunda importância.

Depois do sucesso retumbante de “Psico” em 1960 onde a entidade maligna quase parece assumir um carácter sobrenatural ou fantasmagórico, Hitchcock procurou levar o suspense até onde nunca o tinha levado. Dá-se a criação de “Os Pássaros” a partir do conto de Daphne Du Maurier.

“Os Pássaros” é um filme de terror puro assente em premissas inconcebíveis: a revolta dos pássaros de todo o mundo contra a Humanidade. Este filme abriu a porta do universo de Hitchcock para o Fantástico. “Psico” abordara a temática dos fantasmas emocionais. “Os Pássaros” introduz um novo conceito de realidade na obra de Hitchcock.

Hitchcock bem poderia ter aproveitado a inspiração proveniente desse projecto incrível que foi também um desafio técnico e cinematográfico. Só que depois de “Os Pássaros”, ele limitou-se a repetir as suas temáticas caindo no erro de repetir fórmulas e conceitos.

“Marnie” (1964) reenvia e memória para o seu “Casa Encantada” (1945). “Cortina Rasgada” (1966) e “Topázio” (1969) voltam a fazer o cineasta debruçar-se sobre histórias de espionagem. “Frenzy” (1972) reaborda a temática do psicopata depois imitada e repetida centenas de vezes por outros realizadores de maior ou menor talento.

Hitchcock parecia estar num beco sem saída. Voltava a usar estratégias e tipos de argumento que já experimentara. Quando faleceu em 1980, deixou a meio o projecto de “The Short Night” que também era uma história de espionagem.

Com mais de 65 anos e até aos 80, Hitchcock perdeu a ousadia e a audácia próprias de quem gosta de experimentar desafios novos. Preferia continuar a jogar em terrenos próprios. E defendia-se argumentando que o auto-plágio define um estilo artístico.

Na década de 60, o cinema de terror assume uma dimensão mais respeitável. O cinema de ficção científica também. Acredito que algures no Sobrenatural Hitchcock poderia ter encontrado uma nova dimensão para o seu suspense.

Filmes brilhantes como “A Cidade dos Malditos” (1960) de Wolf Rilla, “A Semente do Diabo” (1968) de Roman Polanski ou “O Exorcista” (1973) de William Friedkin aproximaram o cinema de suspense de um cinema do Fantástico com qualidade. Terror e Suspense estão aqui irmanados e são conceitos inseparáveis e que se alimentam mutuamente.

Talvez Hitchcock se tenha perdido algures por aqui. Na década de 70, um projecto como “Aquele Inverno em Veneza” (1972) não lhe interessou. (É a adaptação de uma belíssima história de Daphne Du Maurier, um dos contos mais assombrosos que já li.)

Nesse mesmo ano de 72, Steven Spielberg que admirava Hitchcock à distância, realiza para televisão uma brilhante obra de suspense intitulada “Um Assassino Pelas Costas”. (É a história de um homem pacato perseguido diabolicamente por um camião sinistro.)
O mesmo Spielberg atingiu a fama mundial três anos depois com “Tubarão” – Um dos filmes de suspense mais lucrativos da História do Cinema.


Um novo cenário se desenvolvia em Hollywood, o suspense era fórmula certa para o sucesso mas Hitchcock começava a ser uma referência e não um agente activo.

Suspense é sempre expectativa, receio do que está para vir e neste sentido até “Alien – O Oitavo Passageiro” (1979) define um grau intenso de suspense. Este filme mostra sete seres humanos a viverem com um monstro alienígena. Num espaço restrito. Com corredores e zonas escuras. Com a ameaça de um terrível e brutal ataque a cada canto e em cada momento.

Isto é suspense puro e simples. Não se passa num cenário hitchcockiano mas contem a aplicação de algumas regras de elementar valor para Alfred Hitchcock. Muito em particular a gestão dos conhecimentos do espectador. A definição do que o público deve conhecer ou não. A recorrência a surpresas estratégicas e chocantes. E a longa gestão da espera: quando é que o monstro vai atacar e de onde vai ele atacar?

O legado de Hitchcock terá certamente inspirado muitos dos construtores actuais do suspense cinematográfico. Só é pena que muitas pessoas não reconheçam em que medida Hitchcock veio a contribuir com o seu trabalho para o entendimento de como se deve gerir o suspense e torná-lo eficaz.

Agora só podemos traçar um plano, verificar que passadas Hitchcock deu, que caminhos poderia ter escolhido (caindo no risco evidente de sermos especulativos). No entanto, é obrigatório que procuremos sempre compreender o cinema actual como o reflexo directo da sua contemporaneidade mas também como o produto de uma linha de evolução.

domingo, setembro 24, 2006

A MÚSICA DO CINEMA DE HITCHCOCK FAZ-NOS COMPANHIA


É verdade. Quem passou por este blog nos últimos dias terá obviamente reparado que lhe foi adicionado um ingrediente importante. É a Música do Cinema de Hitchcock. Este é apenas um pequeno contributo suplementar que me empenhei em tornar concreto.

Temos escutado esta semana o tema do genérico de "Vertigo" (1958) composto por Bernard Herrmann e que na tela se faz acompanhar pelas imagens enigmáticas do grande designer Saul Bass (como a que vemos na fotografia).

Procurarei mudar o tema musical sempre que possível. Oxalá não considerem abusiva a ideia de colocar as notas de Herrmann directamente nos vossos ouvidos. Esta música é um dos hinos mais célebres da obra de Hitchcock. Quem a conhece compreende a dimensão do seu poder porque possivelmente já a ouviu no contexto do filme. Quem não a toma por familiar poderá mesmo assim sentir o tom enigmático deste trecho que abre um dos filmes maiores de todos os tempos.

Atenção: Esta é uma transcrição da banda sonora original. Poderão encontrar no mercado versões gravadas mediante condições tecnológicas mais modernas. Mas uma gravação com um som mais sonante e límpido poderá até não traduzir tão bem a criatividade artística de Herrmann. Criatividade que associa sublimemente componentes clássicos com moldes inovadores e um pouco experimentais; sonoridades peculiares e uma repetição estratégica de certos acordes.

Quem se cansar do tema musical que está em acção poderá sempre desligar o sistema de som do computador. Bernard Herrmann cria um ambiente propício às minhas introspecções hitchcockianas. Mas quem se entediar de Herrmann ou da repetição de um trecho poderá (e deverá) pedir-lhe que pouse a batuta com que dirige tão emotivamente a orquestra. Porque o silêncio às vezes opera mil vezes melhor que qualquer som. E só cada um de nós (que é director do filme da sua vida) é que sabe intuitivamente quando uma cena apela ou não à necessidade de uma banda sonora.

quarta-feira, setembro 20, 2006

NAS PASSADAS DE HITCHCOCK II - A Suspeição e o Crime






O patamar emocional dos personagens é sobejamente importante nas histórias de crime de Hitchcock. A tal ponto que aqui e ali Hitchcock gostava de invadir o território da Psicanálise (como acontece em “Casa Encantada” (1945) e em “Marnie” (1964)).

No domínio das emoções é essencial definir o pensamento dos heróis com os quais o público se identifica. Que suspeitas alimentam, que desconfianças, que atracções ou repulsas…

A suspeição e a desconfiança estão quase sempre presentes no cinema de Hitchcock. Ou estão alojadas nos personagens ou são semeadas no olhar e no pensamento do espectador.

O caso de “Suspeita” (1941) é o paradigma de uma história de mistério e crime sem crimes. Tudo naquele filme se passa ao nível da perspectiva da protagonista (Joan Fontaine). Se tememos por ela é porque ela receia e tem medo e não porque haja perigo… E se sofremos com ela é porque lemos o seu pensamento como se ela falasse directamente para nós.

A suspeição e a desconfiança criam uma incrível inquietação. Neste sentido, Hitchcock foi um dos percursores da construção de um cinema centrado no patamar de pensamentos ambíguos, de obsessões e de desconfianças.

Em “Suspeita” Hitchcock foi liminarmente obrigado pelos produtores a construir um happy-end. No caso da intriga do filme em particular, isto significava que Cary Grant não podia de modo nenhum desempenhar o papel de um assassino. As pessoas não esperavam isso de Cary Grant nem era credível pensar que a ideia ia resultar bem junto do público.

Hoje percebemos como o filme teria sido enriquecido se a proposta de Hitchcock tivesse sido aceite. O impacto emocional do filme seria mil vezes superior se Cary Grant fosse um terrível criminoso e se Joan Fontaine morresse nas suas mãos.

A desconfiança e o medo levam à construção de fantasmas. Mas às vezes esses fantasmas só existem no pensamento das pessoas. A ambiguidade decorrente da desconfiança tem sido explorada em muitos e variados filmes.

Numa linha hitchcockiana próxima de “Suspeita”, Glenn Close e Jeff Bridges protagonizaram “O Fio do Suspeito” (1985) de Richard Marquand. Aqui uma advogada defende cegamente um homem em tribunal e consegue que seja declarado inocente da morte da sua esposa. No final, aquele homem por quem se apaixonara tão perdidamente revela-se o temido assassino e ela terá de lutar pela sua vida.

Numa época em que já não se associavam tão ingenuamente os actores a um padrão definido de papéis, Jeff Bridges que parecia um herói (e nós víamo-lo com os olhos de Close) converte-se num golpe rápido do argumento em predador insensível.

“Presumível Inocente” (1990) de Alan J. Pakula funciona no mesmo patamar. Aqui Harrison Ford poderá (ou não) ser autor de um crime passional. Só nos últimos minutos do filme é desvendado o enigma de uma história que não sendo muito emocionante está bem filmada e alimenta quase até ao fim uma angustiante ambiguidade.


Em 1983, Robert Benton (cineasta mais brilhante na composição de melodramas como “Kramer contra Kramer” (1979) e “Um Lugar no Coração” (1984)) realizou “Na Calada da Noite” como um palco de acção hitchcockiana. Meryl Streep surge-nos como uma loira enigmática que tanto se poderá revelar perigosa como volátil ou frágil. Benton filma algumas sequências oníricas e privilegia o papel da Psicanálise na explicação de certos desejos inconscientes. Hitchcock estava morto em 1983 mas parece passear por ali…

Jonathan Demme filmou “O Último Abraço” (1979) com o fito de explorar a atenção e o interesse dos hitchcockianos. É um filme com uma mulher perigosa (para variar não é loira o que já revela alguma imaginação…) e uma intriga misteriosa repleta de pistas que não se sabe onde vão conduzir. Tem um final trepidante no alto das cataratas do Niagara. (A propósito, sempre me pareceu que Hitchcock poderia ter dirigido “Niagara” (1953) de Henry Hattaway!)

A película de Demme explora a desconfiança do espectador que se transmite pela suspeição do próprio protagonista (Roy Scheider). Demme que realizaria anos depois um brilhante “Silêncio dos Inocentes” conduz aqui um filme bastante modesto. Mas há variados pormenores a evocarem o cinema de Hitchcock. O filme estreou pouco tempo antes da morte do Mestre clássico do Suspense. Já este estaria muito velho e doente. Talvez nem tenha reparado na homenagem.

Há inúmeros exemplos de histórias transpostas para o Cinema que se alicerçam na ênfase dada aos sentimentos da Desconfiança e da Dúvida. Em algumas delas o perigo nasce dentro de casa (“Dormindo Com o Inimigo” (1991) de Joseph Ruben com Júlia Roberts; ou “A Verdade Escondida” (2000) de Robert Zemeckis). Outras vezes o perigo pode vir de fora e instalar-se no mundo pessoal das suas vítimas (como em “O Inquilino Misterioso” (1990) de John Schlesinger).

Hitchcock realizou um morno “Lifeboat” (1944) contando a história de um grupo de pessoas deixadas pelo destino a bordo de um barco exíguo. Aqui as suspeições e desconfianças de uns em relação aos outros tornam-se difíceis de suportar. Uma embarcação no alto mar pode suscitar uma dupla sensação de angústia: é um espaço fechado dentro de um espaço aberto imenso.

Roman Polanski concebeu mais tarde um ambiente particularmente tenso em “A Faca na Água” (1962) desenvolvendo a história de dois homens e de uma mulher num barco exíguo. Um possível trio amoroso… Um casal cujo quotidiano é invadido pela presença de um estranho.

As audiências viram Nicole Kidman, Sam Neill e Billy Zane em “Calma de Morte” (1989) dentro do espaço claustrofóbico de um barco. Um filme de Philip Noyce que leva a tensão emocional do espectador à circunstância de cada personagem ter de lutar pela sua vida.

Talvez tenha sido sintomático nomear Roman Polanski. Porque ele é mestre na arte de conceber ambientes inquietantes. E é capaz de criar terror sem efeitos especiais. No domínio da suspeição e da desconfiança isto revela-se fulcral. Veja-se o clássico “A Semente do Diabo” (1968).

Suspeição, Desconfiança e Dúvida? São território de Hitchcock em “Mentira”, “Rebecca”, “Janela Indiscreta” ou “Desconhecido do Norte-Expresso” mas são afinal também temáticas importantíssimas em todas as histórias policiais (como as de Agatha Christie ou de Patrícia Highsmith). Só que Hitchcock tinha o seu jeito próprio de as explorar. E terá sido imensamente imitado ao longo dos anos…

segunda-feira, setembro 11, 2006

NAS PASSADAS DE HITCHCOCK I - Os psicopatas





O que é que aconteceu ao suspense hitchcockiano? Morreu com o cineasta ou ainda existe no cinema dos nossos dias? Na verdade bem sabemos que o suspense não é uma criação de Hitchcock e que já o encontrávamos bem evidente na literatura de Edgar Allan Poe e de H. G. Wells ou no cinema de D. W. Griffith e de Fritz Lang.

Grifith compôs belas sequências de suspense em “Nascimento de Uma Nação” (1915) e em “Intolerância”(1916). Lang foi o criador de brilhantes filmes de suspense como “M” (1931), “The Woman in the Window” (1944) e “O Segredo da Porta Fechada” (1947).

O suspense conhece muitos matizes. Na vida humana como em qualquer forma de arte. O suspense hitchcockiano segue alguns parâmetros e premeia certas temáticas. O que é que lhe sucedeu após o ano da morte de Hitchcock (1980)?

Parece-me evidente que nos últimos anos se operou uma diluição do suspense hitchcockiano em muitos estilos diferentes de thrillers e de histórias de mistério. Ao ponto de já não podermos argumentar com precisão se Hitchcock poderia ou não ter feito este ou aquele filme.

Hitchcock deixou uma legião de seguidores e eventualmente alguns sucessores. Ainda em vida, ele era já muito imitado e acabou competindo com aqueles que copiavam o seu estilo. Podemos neste contexto pensar em “Charada” (1963) e “Arabesco” (1966) de Stanley Donen, em “O Prémio” (1963) de Mark Robson ou em “Wait Until Dark” (1967) de Terence Young.

Brian De Palma que apresentou recentemente no Festival de Veneza o filme “A Dália Negra”, é um relevante continuador do suspense hitchcockiano. Os seus filmes de suspense têm sido financeiramente lucrativos especialmente aqueles que realizou nos anos 70 e 80. Exemplos: "Carrie" (1976), “Vestida para Matar” (1980) e “Testemunha de um Crime” (1984). Filmes mais espalhafatosos do que geniais e que eram exageradamente sangrentos. Com soluções visuais demasiado aparatosas e que evidenciavam algum mau gosto. Obras que aplicam um grande sensacionalismo visual e em que a música de Pino Donaggio procura adensar o suspense ao pormenor de cada segundo.

O primeiro filme hitchcockiano de Brian de Palma foi “Sisters” (1973) e logo depois seguiu-se-lhe “Obsessão”. Ambos têm música do compositor maior do cinema de Hitchcock: Bernard Herrmann.

“Obsessão” foi realizado com mais contenção e reenvia a memória do espectador para “Vertigo” (1958) com todo o seu espírito obsessivo, necrófilo e melancólico.

O que soa a mau gosto em De Palma, soa cruel mas intenso em Jonathan Demme. O seu “O Último Abraço” (1979) é fraco mas muito ao estilo de Hitchcock. O desenvolvimento final do seu “Selvagem e Perigosa” (1986) prende a respiração. A exploração competente do tema dos “serial killers” em “Silêncio dos Inocentes” (1991) revela uma enorme densidade emocional.

Em “Silêncio dos Inocentes” a direcção de actores é brilhante. E o impacto visual das imagens e do modo de filmar intensifica o desempenho dos actores. Alfred Hitchcock, realizador de “Frenzy” (1972), teria rodado um filme como este?

A área temática dos psicopatas é tão importante nos filmes de Hitchcock que lhe poderíamos dedicar um comentário extenso. Veja-se “O Inquilino Sinistro” (1926), “Mentira” (1943), “O Desconhecido do Norte-Expresso” (1952), “Frenzy” ou o incontornável “Psico” (1960).

Mas deve-se salientar que outros filmes historicamente relevantes contam histórias sobre psicopatas e são marginais ao cinema de Hitchcock. Como “Peeping Tom” (1960) de Michael Powell, “The Collector” (1965) de William Wyler ou “Repulsa” (1965) de Roman Polanski.

Nas últimas duas décadas têm-se feito muitos filmes em que o perigo decorrente da loucura se converte num suspense vertiginoso.

“Atracção Fatal” (1987) de Adrian Lyne e “Instinto Fatal” (1992) de Paul Verhoeven foram sucessos retumbantes. Ambos estão centrados num ambiente carregado de erotismo e em que a mulher-tentação se revela um perigo extremo. Glenn Close e Sharon Stone foram as brilhantes estrelas de cada um dos filmes.

Há outros tipos de psicopatas que têm assaltado as histórias dos filmes contemporâneos. O psicopata vingativo que procura repor implacavelmente uma justiça perdida. Exemplos: “A Mão Que Embala o Berço” (1992) de Curtis Hanson e “Jovem Procura Companheira” (1992) de Barbet Schroeder.

Psicopatas com traumas que sendo vítimas do seu destino se tornam carrascos do destino dos outros. Como Robin Williams em “One Hour Photo” e "Insónia" (ambos de 2002).

Histórias que até podem ser tristemente verídicas como acontece no caso do clássico “Massacre no Texas” (1974) de Tobe Hooper. (Aliás a história verídica desse psicopata havia inspirado "Psico" muitos anos antes.)

A loucura pode ser um fundamento credível para os procedimentos mais brutais. E parece conferir sentido e lógica a realidades inimagináveis. Hitchcock apercebeu-se disso. E do perigo que pode advir de um louco à solta. Perigo para os personagens. Emoção para os espectadores… Esta receita para o cinema de suspense não perdeu o seu impacto.

quarta-feira, setembro 06, 2006

HITCHCOCK NA ESPLANADA (Conclusão)


Caminhamos placidamente para os derradeiros dias de Verão. E, como ficou prometido, a Cinemateca conclui até ao final do mês o ciclo HITCHCOCK NA ESPLANADA. Às quintas, sextas e sábados sempre às 22.30.

O programa inclui algumas omissões graves porque este não é obviamente um ciclo de revisitação integral da obra do realizador. Mas é sempre apetecível reencontrar o bom cinema do Mestre clássico do suspense no conforto da esplanada junto ao bar. Especialmente porque as condições de projecção são muito boas.

Nos corredores da Cinemateca podemos examinar uma colecção de cartazes e posters publicitários relativos à obra de Hitchcock.

As sessões têm um intervalo e só começam a meio do serão. Logo há espaço e oportunidade para conviver com os amigos e respirar serenamente o ar fresco e suave das noites de Verão. O serviço de bar funciona até à meia-noite. Quem estiver só pode levar um livro, um jornal ou um passatempo e permanecer no espaço enquanto o grupo de espectadores se vai juntando.

Quando estou sozinho lá, sinto-me em família, rodeado por desconhecidos que me parece conhecer muito bem... A unir-nos está uma cinefilia revigorante e a partilha de um ambiente que é de todos nós e que gozamos na memória do mestre Hitchcock. Beber um café diante de James Stewart, de Janet Leigh ou de Ingrid Bergman é para mim respirar no meu habitat natural. Mas garanto-vos que é imensamente agradável ouvir as exclamações e os risos de outros espectadores. O Cinema adequa-se bem aos solitários mas muitos solitários juntos fazem uma audiência animada. E onde há animação há vida...

Hitchcock vê-se e revê-se com agrado. Revisitar alguns dos seus filmes é um ritual que enriquece o ânimo e a experiência pessoal de qualquer hitchcockiano.

Isto no momento em que o preço dos DVDs baixa e muito do cinema de Hitchcock está acessível e bem difundido comercialmente. E nos meses em que o canal Hollywood tem reposto alguns sucessos do Mestre em horário nobre... Mas bom... Os cinéfilos não costumam trocar uma tela verdadeira por um écran de televisão.

Por tudo isto lá irei estar na esplanada... Com um café diante de mim. Quem não me conhece, procure entre os trintões gorduchos e pensativos que por lá passeiam. E talvez os vossos olhos passem por mim.

Passam nos próximos dias:

DESAPARECIDA, Quinta 7
O DESCONHECIDO DO NORTE-EXPRESSO, Sexta 8
PSICO, Sábado 9

A POUSADA DA JAMAICA, Quinta 14
SOB O SIGNO DO CAPRICÓRNIO, Sexta 15
A CORDA, Sábado 16

JOVEM E INOCENTE, Quinta 21
A CASA ENCANTADA, Sexta 22
DIFAMAÇÃO, Sábado 23

REBECCA, Quinta 28
LADRÃO DE CASACA, Sexta 29
JANELA INDISCRETA, Sábado 30

terça-feira, agosto 15, 2006

FELIZ ANIVERSÁRIO MRS ALMA HITCHCOCK!



Ontem teria sido dia de festa em casa dos Hitchcock. A grande senhora por detrás do ilustre cineasta Alfred Hitchcock festejaria ontem 107 anos. Era uma mulher discreta mas muito mais influente do que poderíamos pensar à partida.

Alfred Hitchcock dependia da sua mulher de uma forma subtil mas intensa. Ela oferecia-lhe estabilidade emocional e segurança. E ele gostava sempre de escutar a sua opinião.
Alma Hitchcock lia frequentemente as propostas que eram feitas ao marido. Revelava a sua opinião acerca de cada projecto e contribuía com ideias e sugestões.

Era uma senhora que emprestava conforto e confiança a Hitchcock. Carinho e compreensão. Gostava de se vestir bem e de cuidar da sua imagem mas não era exuberante nem tremendamente bonita como as actrizes que o marido dirigia.

O lado mais tímido e frágil de Hitchcock tinha necessidade de uma mulher temperamentalmente forte e que fosse competente nas suas funções. Alma começou a trabalhar na indústria cinematográfica ainda antes de Hitchcock. Era uma profissional experiente em muitas áreas da produção de um filme.

Alma nasceu a 14 de Agosto de 1899. Fez ontem 107 anos. O seu rotundo marido nasceu um dia antes: a 13 de Agosto de 1899. Por ironia ou capricho do destino. Hitchcock reparou em Alma pouco tempo depois de começar a vê-la trabalhar em Londres.

Perguntavam a Hitchcock porque gostara tanto de Alma. Ele respondia com humor: “Gosto de mulheres mais velhas.”

Hoje eu saúdo mais uma vez o casal. Numa época em que o casamento assusta um pouco as pessoas porque parece que as acorrenta a um compromisso,
Alma e Alfred Joseph viveram um belo exemplo de parceria romântica, emocional e profissional. Que durou mais de cinquenta anos.

Um ano depois de ter começado a escrever neste blog, é natural que me sinta no dever metodológico de fazer um balanço destas sessenta semanas. Para preparar melhor os meses que estão para vir.

Há amigos meus que comentam que escrevo demais e que cada post deveria ser mais breve. Eu gosto de desenvolver uma ideia durante vários dias. Por isso, opto sistematicamente por escrever mais linhas de cada vez, publicando menos mensagens por mês. É uma estratégia.

Este blog é a tentativa de fazer uma reflexão prolongada sobre o meu amor aos filmes. Há quem comente que deveria falar mais de outros realizadores e de outras áreas temáticas do Cinema no tempo e no espaço.

No entanto, a construção deste blog deveria partir de um dos pontos centrais da minha cinefilia: o hitchcockianismo.

Daqui a um ano, Alfred Hitchcock completaria 108 anos. No dia 13 de Agosto. Nesse dia conto publicar o derradeiro post deste blog que tanto servirá de instrumento de conclusão como de ponte para um outro possível blog.

O compromisso que me mantém fiel à cinefilia e ao hitchcockianismo terá cimentado raízes há muitos anos. Talvez há mais de duas décadas e meia. Vive neste blog e acredito que permanecerá activo pela minha vida fora.

O compromisso entre Hitchcock e Alma terá sido concebido a bordo de um navio. Viajavam em missão de trabalho e, depois de um intenso impasse, Hitchcock ter-se-à abalançado a propor Alma em casamento. O barco agitava-se muito porque o mar estava inquieto. Alma estava muito agoniada e encontrava-se estendida sobre uma cama. Entre soluços e um ligeiro arroto terá declarado que aceitava a proposta de Alfred Joseph.

Hitchcock guardaria para sempre a memória daquela cena romântica adornada com o arroto de Alma. Parecia que o amor e o humor estavam sempre presentes na vida e no cinema de Hitchcock. Às vezes em momentos cruciais.

O meu compromisso com o Cinema (e muito em particular com o universo de Alfred Hitchcock) é sólido e sadio. Mas uma coisa vos digo: um filme pode ser uma criação espantosa e há filmes que me divertem imenso sempre que os revejo. Mas nenhum filme substitui o calor humano de uma mulher como Alma. (Nem a oferta de amor expressa num arroto espontâneo como aquele…)

O filme acaba e é apenas celulóide, um disco metálico ou fita de VHS. Não nos acarinha nem aconselha. Delicia-nos enquanto está a passar mas não fala directamente para nós nem nos beija. Por isso saúdo sempre o Cinema. Mas saúdo hoje em particular o amor de Alma. Todo o tipo de amor que enriquece a experiência de viver neste mundo. Feliz 107º Aniversário!

domingo, agosto 06, 2006

SOBRE O MACGUFFIN - O MOTIVO DE TODOS OS MOTIVOS


O Cinema de Hitchcock é para todos os efeitos um fenómeno de criação e de recriação de ilusões. Um entretenimento e uma fuga à realidade. Por isso, quase nunca os seus filmes relatam histórias quotidianas mas mostram antes pessoas do quotidiano em situações extraordinárias.

Para Hitchcock era primordial que o espectador se identificasse com o herói e que, por meio dessa identificação, vivesse intensamente as peripécias do seu percurso atribulado.

O “macguffin” é um termo de importância central na aproximação de Hitchcock ao Cinema. Faz parte de qualquer glossário de princípios hitchcockianos. O “macguffin” simboliza um interesse que mobiliza e afecta densamente o destino dos personagens de um filme.

Pode ser o conteúdo misterioso das garrafas escondidas na adega de uma casa grande (como em “Difamação”). Ou o teor da fórmula secreta que move os espiões e os contra-espiões. Pode ser a causa de se querer a morte de alguém ou o motivo do estabelecimento de uma loucura ou de uma obsessão. Razões e explicações? Hitchcock não perdia muito tempo com elas. Nem era necessário fazê-lo.

O “macguffin” existe para cumprir uma função. É a explicação para um roubo, para uma sabotagem ou para um assassinato. Basta que tomemos consciência da sua importância. Que sintamos que é um pormenor vital.

Nem sempre Hitchcock narrava as histórias do princípio ao fim. Não raras vezes, deixava pormenores insolúveis. E também esse aspecto enriquecia indirectamente o enredo dos seus filmes, tornando-os mais complexos e menos lineares.

Veja-se a densidade emocional dos personagens de “Os Pássaros” que está muito para além da história de terror. Ou a paixão entre Cary Grant e Ingrid Bergman em “Difamação” que acaba por se revelar como estando acima do interesse pelo destino dos vilões e pela intriga de espionagem.

Na verdade, Hitchcock contava sempre o essencial. Mas não perdia tempo a explicar aspectos secundários. A menos que esses aspectos iludissem o espectador e o conduzissem a uma surpresa. (É o que acontece com a trivial questão dos 40 000 dólares roubados em “Psico”.)

Como é que surge o termo “macguffin”? Hitchcock costumava contar a história do “macguffin” a muitos dos seus entrevistadores.

Segundo ele, dois homens viajavam de comboio e um deles terá perguntado ao outro: “Desculpe-me a curiosidade, o que traz o senhor nessa mala?” O seu interlocutor respondeu laconicamente: “É um macguffin.” O homem curioso terá torcido a cabeça e coçado o couro cabeludo. Estava intrigado. “O que é um macguffin? Queira desculpar porque se calhar sou muito ignorante…” O homem da mala olhou-o e respondeu prontamente: “Um macguffin serve para caçar leões na Escócia. É muito útil!
Mas…” – Terá sentenciado o outro entre gaguejos – “Mas não existem leões na Escócia!” Estava intrigado com a razão de ser de uma coisa que não servia qualquer fim. “Não há leões na Escócia? Então o que trago na mala não é certamente um macguffin.” – Concluiu prontamente o outro homem.


Moral da história: O “macguffin” existe porque tem razão de existir e é importante. No entanto, não interessa a Hitchcock nem aos espectadores percebê-lo intrinsecamente. É suficiente que se tome consciência de que é um aspecto de importância crucial.

Uma boa razão para um homem querer matar a sua esposa pode ser o seu desejo de fugir para a Escócia para caçar lá leões. Mas não existem lá leões?! Então não pode ter sido esse o propósito que explica o assassinato. Seja como for, o que interessa é que ele a matou e pode voltar a matar alguém. É nesse receio, nessa emoção que Hitchcock tentará desenvolver o conteúdo da sua história.

O “macguffin” é uma explicação plausível. Mas não interessa verdadeiramente saber em que consiste. O homem matou a sua esposa porque tem uma amante que vive na Escócia e quer ir viver com ela. De qualquer modo, ele até podia querer ir caçar leões a terras britânicas ou à cidade de Paris. Desde que o inverosímil parecesse coerente…

A emoção e, muito em particular, a construção do suspense são muito mais relevantes do que as explicações. Hitchcock enfatiza em cada cena, em cada plano de alguns dos seus melhores filmes o valor da imagem e o propósito dela servir um fim: desenvolver o universo emocional dos espectadores.

“As pessoas pagam para ser assustadas.” – Costumava proferir ele. De facto, pagam para se sentirem tontas e inseguras no ponto mais íngreme do percurso da montanha russa. Ou para se arrepiarem no comboio-fantasma das feiras. Pagam para ver filmes de terror. Para se esquecerem do seu quotidiano. Para se anestesiarem das dores rotineiras e encontrarem uma fuga emocional algures na luz da máquina de projectar filmes.

E o que é o Cinema senão uma máquina de construção de sonhos? Uma fuga à realidade… Ou numa boa hipótese um reenvio para a realidade através do percurso da ficção…

segunda-feira, julho 24, 2006

HITCHCOCK E OS OSCARS






A relação do cinema de Hitchcock com o universo dos Óscars não foi feliz. Hoje a Academia de Hollywood bem pode sentir-se desconfortável por não ter atribuído um único galardão ao Mestre do Suspense no espaço de cinco décadas, dezenas de filmes e inúmeros sucessos de bilheteira.

Claro que em 1966, Hitchcock recebeu o Irving Thalberg Award como prémio por uma carreira de qualidade invulgar. No enatanto, os prémios de consagração de carreiras não são Óscars genuínos diga-se o que se disser.

Pareceu-me interessante investigar todos os Óscars atribuídos a filmes de Hitchcock nas mais variadas categorias. Apresento aqui uma lista das atribuições sem menosprezar as nomeações que, por si só, já são um sinal de prestígio evidente.

Alfred Hitchcock foi nomeado 5 vezes para Melhor Realizador. Por:
  • Rebecca, 1940
  • Um Barco e Nove Destinos, 1944
  • Casa Encantada, 1945
  • Janela Indiscreta, 1954
  • Psico, 1960

O único filme de Hitchcock a receber o prémio de Melhor Filme do Ano foi "Rebecca", obra materializada pelo grande produtor David O. Selznick um ano depois do seu "E Tudo o Vento Levou". A influência de Selznick em Hollywood era enorme. E embora "Rebecca" seja um belo filme sob variados aspectos - nomeadamente o da riqueza visual expressa na bela fotografia a preto e branco - grandes obras-primas de Hitchcock hoje unanimemente aclamadas nem sequer foram nomeadas para o galardão de Melhor Filme. Como por exemplo "Janela Indiscreta", "Mentira", "Vertigo", "Intriga Internacional", "Psico" ou "Os Pássaros".

Os Óscars valem o que valem. Acima de tudo atribuem estatuto e uma enorme capacidade de encaixe financeiro. Mas as qualidades dos filmes não são quantificáveis. Os gostos mudam e os conceitos de qualidade metamorfoseiam-se. O que hoje é genial amanhã poderá parecer datado. E o que não parece relevante agora poderá ser mais tarde digno de uma enorme respeitabilidade.

Os Óscars envolvem dinheiro, influência e interesses. Mas mesmo assim marcam a História de Hollywood e, com ela, a evolução dos padrões cinematográficos. Por isso, pelo que representam, fiz uma pequena investigação. Aqui está a listagem das atribuições, apresentada ano a ano.

1940 - "REBECCA"

  • Melhor Filme
  • Melhor Fotografia a Preto e Branco

Nomeado para: Melhor Realizador, Melhor Actor (Lawrence Olivier), Melhor Actriz (Joan Fontaine), Melhor Actriz Secundária (Judith Anderson), Melhor Argumento Adaptado, Melhor Art Direction, Melhor Montagem, Melhor Banda Sonora Original (Franz Waxman), Melhores Efeitos Especiais.

1940 - "CORRESPONDENTE DE GUERRA

Nomeado para Melhor Filme, Melhor Actor Secundário (Albert Basserman), Melhor Argumento Original, Melhor Fotografia a Preto e Branco, Melhor Art Direction, Melhores Efeitos Especiais.

1941 - "SUSPEITA"

  • Melhor Actriz (Joan Fontaine)

Nomeado para Melhor Filme, Melhor Banda Sonora Original (Franz Waxman)

1943 - "MENTIRA"

Nomeado para Melhor Argumento Original (SÓ?)

1944 - "UM BARCO E NOVE DESTINOS"

Nomeado para Melhor Realizador, Argumento Original, Fotografia a Preto e Branco.

1945 - "CASA ENCANTADA"

  • Melhor Banda Sonora Original (Miklos Rozsa)

Nomeado para Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor Secundário (Michael Chekhov), Melhor Fotografia a Preto e Branco, Melhores Efeitos Especiais.

1946 - "DIFAMAÇÃO"

Nomeado para Melhor Actor Secundário (Claude Rains) e Melhor Argumento Original.

1947 - "O CASO PARADINE"

Nomeado para Melhor Actriz Secundária (Ethel Barrymore)

1951 - "O DESCONHECIDO DO NORTE EXPRESSO"

Nomeado para Melhor Fotografia a Preto e Branco.

1954 - "JANELA INDISCRETA"

Nomeado para Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhor Fotografia a Cores e Melhor Som.

1955 - "LADRÃO DE CASACA"

  • Melhor Fotografia a Cores

Nomeado para Melhor Guarda-Roupa e Melhor Art Direction.

1956 - "O HOMEM QUE SABIA DEMAIS"

  • Melhor Canção ("Whatever Will Be, Will Be)

1958 - "VERTIGO"

Nomeado para Melhor Art Direction e Melhor Som. (SÓ?)

1959 - "INTRIGA INTERNACIONAL"

Nomeado para Melhor Argumento Original, Melhor Art Direction, Melhor Montagem.

1960 - "PSICO"

Nomeado para Melhor Realizador, Melhor Actriz Secundária (Janet Leigh), Melhor Fotografia a Preto e Branco, Melhor Art Direction.

1963 - "OS PÁSSAROS"

Nomeado para Melhores Efeitos Especiais (SÓ?)

Duas Interrogações adicionais:

1) Como é que não há mais actores secundários nomeados? Exemplos: Thelma Ritter em "Janela Indiscreta", Lila Kedrova em "Cortina Rasgada", Jessica Tandy em "Os Pássaros" ou Barbara Bel Geddes em "Vertigo".

2) Como é que nenhuma das brilhantes bandas sonoras de Bernard Herrmann compostas para Hitchcock recebeu uma nomeação? Foi estranho mas aconteceu...

segunda-feira, julho 10, 2006

NA ESPLANADA COM HITCHCOCK


Estamos no Verão. Estes dias quentes propiciam plácidos serões ao ar livre. Nesta época há mais tempo disponível para o entretenimento e para o lazer. A receita para uma noite agradável pode inquestionavelmente resultar da soma de um bom filme com um momento de convívio prazenteiro.

Tendo em mente todas estas considerações, a Cinemateca Portuguesa (na Rua Barata Salgueiro em Lisboa) convida-nos a rever alguns dos grandes filmes do Mestre do Suspense no espaço da esplanada junto ao bar e à livraria. Às quintas, sextas e sábados sempre às 22.30. O ciclo tem o nome “NA ESPLANADA COM HITCHCOCK”.

É uma oportunidade simpática para todos os cinéfilos nostálgicos, para quem não dispensa um bom filme projectado numas dimensões maiores do que as da televisão. E para quem não está habituado a ver cinema debaixo do céu estrelado.

Parece que a época dos jardins-cinema já passou. O hábito dos drive-in nunca conheceu grandes implementações em Portugal. E talvez as exibições na parede da praça principal da vila já não aconteçam sob o ambiente festivo de outros tempos. (Agora é mais fácil descobrir cinema numa das várias salas pequenas do centro comercial da terra.)

Por isso, mais uma vez, a Cinemateca nos presenteia com um programa de filmes exibidos na esplanada, num ambiente familiar e sereno e onde se respira uma cinefilia revigorante.

Eu ainda sou dos dias em que um filme podia ser reposto inúmeras vezes depois da sua temporada de estreia. E dos tempos em que o Verão era a época soberana do ano para as reprises. Por isso, rever cinema antigo num tranquilo serão de Julho é qualquer coisa que me convoca para algumas das mais agradáveis recordações de tempos idos.


O ciclo decorre até ao final do mês no horário atrás definido. E está prometido que continuará em Setembro. Aqui fica a lista das obras que ainda poderemos redescobrir nos próximos dias.

  • "OS 39 DEGRAUS" - Quinta-Feira, 13
  • "JANELA INDISCRETA" - Sábado, 15
  • "CORRESPONDENTE DE GUERRA" - Quinta-Feira, 20
  • "SUSPEITA" - Sexta-Feira, 21
  • "MARNIE" - Sábado, 22
  • "À 1 E 45" - Quinta-feira, 27
  • "MENTIRA" - Sexta-feira, 28
  • "FRENZY - PERIGO NA NOITE" - Sábado, 29

terça-feira, julho 04, 2006

O GRANDE COMPOSITOR DE HITCHCOCK











O passado dia 29 de Junho e particularmente as linhas que aqui escrevo estavam no meu horizonte há vários meses. Porque nesse dia o grande compositor e maestro Bernard Herrmann completaria 95 anos se fosse vivo.

Na verdade, eu havia mesmo idealizado uma homenagem especial a este homem cuja obra me tem marcado com uma dose de magia. Mas diversos acontecimentos vieram contrariar as minhas intenções
Como cantava John Lennon (dos Beatles), numa música já perdida no tempo (mas não na memória de certas pessoas), a Vida é tudo aquilo que nos acontece enquanto fazemos planos para ela. Ou como dizia o outro: Queres pôr Deus a rir? Conta-lhe os teus planos!”


Façamos de conta que o dia 29 não passou sem eu ter deixado aqui umas palavras de apreço pela vida e pela obra de Bernard Herrmann.

Bernard Herrmann foi o grande compositor do cinema de Alfred Hitchcock. Trabalhou durante mais de três décadas na criação de música para filmes e iluminou imagens de realizadores tão distintos como Orson Welles, Martin Scorsese ou François Truffaut.

A colaboração entre Hitchcock e Herrmann foi perfeita e paradigmática. É o exemplo de como um cineasta e um músico podem trabalhar em parceria criando juntos algo de luminoso e de único. A união das imagens dos filmes de Hitchcock com a música de Herrmann é exemplarmente harmoniosa. Como se Herrmann tivesse nascido para tornar genial o cinema de Hitchcock. E vice-versa: como se Hitchcock tivesse vivido para criar atmosferas propícias ao engenho de Herrmann.

Não me parece importante deter-me com pormenores biográficos sobre a vida deste homem de carisma artístico invulgar. Posso dizer que era oriundo de uma família de emigrantes judeus russos que se mudou para os Estados Unidos. Nasceu a 29 de Junho de 1911 na cidade de Nova-York. Estudou Música, desenvolveu contactos precoces com pessoas relevantes do universo das artes e decidiu muito jovem que queria ser compositor e maestro.

Trabalhou na rádio (na estação CBS) onde terá conhecido Orson Welles para quem compôs música em inúmeros programas de teatro radiofónico. A mais célebre e impressionante emissão radiofónica de Welles e Herrmann foi certamente uma adaptação realista de “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells.

Em 1941, Orson Welles realizou, escreveu e interpretou o seu primeiro filme: o aclamadíssimo “Citizen Kane”. E convidou o seu amigo Bernard Herrmann para criador da banda sonora da obra.

Nesse mesmo ano, Herrmann, então com 30 anos, recebeu um Óscar pelo seu trabalho em “The Devil and Daniel Webster” de William Dieterle.

Herrmann era um homem irascível e temperamental. O seu trabalho é a obra de um artista e pensador, devoto da arte musical e que gostava de reflectir sobre as suas potencialidades no universo cinematográfico.

Trabalhou na composição de bandas sonoras de dezenas de filmes e também compôs para televisão (música para episódios de séries famosas como “A Quinta Dimensão” ou “Alfred Hitchcock Apresenta…”)

Com Hitchcock concebeu algumas das suas obras-primas, entre elas “Vertigo” (1958) e “Psico” (1960). Mas também “Intriga Internacional” (1959) e “Marnie” (1964).

Sabem, meus amigos leitores, não entendo ao certo o que mais me sensibiliza e impressiona na música de Bernard Herrmann. A Música remete para emoções e as emoções nem sempre se explicam. Talvez possa ser a expressividade das suas criações musicais, a nostalgia que emana de certas partituras ou o efeito poético e harmonioso que produzem em nós.

A música de Herrmann expressa emoções. É verdade. Medo, ansiedade e amor. É uma música (quase sempre) criada para acompanhar imagens mas vive à margem delas e envia-nos para um universo onírico de sensações únicas.

Grande maestro (dizem que sentia um enorme prazer e realização pessoal a dirigir uma orquestra), Herrmann será certamente imortalizado pelo seu trabalho no Cinema. Esse trabalho que ele abraçou por um capricho insistente do destino.

Convido os meus leitores a visitarem o site do Bernard Herrmann Society que reúne inúmeros documentos e trabalhos de apreciação do grande compositor. (www.bernardherrmann.org) Já tenho colaborado no fórum do site, trocando ideias e partilhando conhecimentos com variadíssimas pessoas entusiastas da arte de Herrmann.

E claro para os grandes fãs de Herrmann há sempre a sua biografia escrita por Steven C. Smith em 1991 e intitulada “A Heart at Fire’s Center” (“Um Coração No Centro do Fogo”).

O prazer e o entusiasmo que o trabalho de Herrmann suscita são peculiares. Porque a sua música nem sempre é doce e afável. Nem sempre é meiga e confortável para os nossos ouvidos. Ele era um compositor arrojado. Às vezes ousava ser experimental e inovador. Outras vezes era mais convencional mas nunca desinteressante.

Convido também as pessoas que me lêem a visitar o site do British Film Institute (BFI), em Londres, onde irá decorrer durante o mês de Julho um interessante ciclo de filmes com música de Herrmann. Se a distância à capital inglesa fosse mais rápida e menos dispendiosa, talvez ousasse passar por lá…

Bernard Herrmann faleceu na noite de Natal do ano de 1975. Um dia depois de estarem completas as gravações relativas à banda sonora de “Taxi Driver” de Scorsese. Herrmann morreu cedo demais.

Dizem que Spielberg o admirava profundamente e talvez filmes como “Encontros Imediatos de 3º Grau” (1977) ou “Inteligência Artificial” (2001) fossem projectos que motivassem o empenho do compositor. Agora só podemos especular…

Sim. Bernard Herrmann deixou este mundo cedo demais. Ainda tinha muito para nos oferecer mas estava cansado e doente. O seu legado é extenso e não está verdadeiramente completo. Em 1991, Scorsese refez “O Cabo do Medo” a partir de um filme de 1962 e recorreu à banda sonora original de Herrmann e a excertos de uma partitura dele nunca usada.

Em 1998, Danny Elfman conduziu uma regravação de “Psico” para a modesta remake de Gus Van Saint. Há cerca de três anos, Quentin Tarantino incluiu “Twisted Nerve” de Herrmann na banda sonora de “Kill Bill”.

A magia e o talento de Bernard Herrmann permanecem vivos em brilhantes gravações digitais editadas nos mercados discográficos mundiais. Pela mão de pessoas empenhadas, de maestros atentos e de trabalhos de orquestra cuidados. Regrava-se e reedita-se Herrmann. Nunca antes Herrmann esteve tão próximo dos seus admiradores. E hoje graças à tecnologia da Internet alcança-se com uma facilidade inédita algumas das suas gravações mais raras.

Bernard Herrmann enriquece o quotidiano de muitas pessoas. Pode parecer estranho ouvir Herrmann no carro a caminho do emprego. Herrmann e não Tina Turner ou os U2. Mas o universo de Herrmann funciona como paralelo a todos os outros. Diferente e alternativo. Ontem como hoje. Hoje como amanhã. Dentro ou fora dos filmes. Anexado ou não a imagens. Esse é um dos seus encantos…

terça-feira, maio 30, 2006

NOVO LIVRO SOBRE HITCHCOCK EM LÍNGUA PORTUGUESA




O mínimo que posso afirmar acerca da edição portuguesa de “It’s Only a Movie” de Charlotte Chandler é que me proporcionou alguns dias de leitura muito agradável. Gosto de beber pausadamente o meu café numa esplanada; e de ler ou escrever enquanto mergulho nos universos que crio ou que outras pessoas conceberam.

O livro de Chandler é apresentado como uma incursão na vida e na obra de Hitchcock. Inclui testemunhos de muitas pessoas que conheceram e trabalharam com o Mestre do Suspense.
A autora é uma amiga de longa data da família Hitchcock e membro da direcção do Film Society of Lincoln Center. Já publicou um best-seller sobre a vida de Grouxo Marx e outro sobre Frederico Fellini que foi muitíssimo aclamado e traduzido. É uma senhora que se movimenta com facilidade entre grandes personalidades do Cinema e que tem colhido experiências relevantes.

“É Só Um Filme” permite prazer puro a qualquer hitchcockiano. No entanto, não sei até que ponto a minuciosidade de certos apontamentos é relevante para quem procure uma leitura ligeira. Nem sei se um cinéfilo não hitchcockiano poderá encontrar deleite nas páginas deste livro. Também não acredito que possa ser apreciado por uma pessoa indiferente à cinefilia.

De facto, as primeiras quarenta ou cinquenta páginas são deliciosas. Mas depois, a autora condensa notas e apontamentos e dispõe-nos numa ordem cronológica demasiado rígida.
Contava encontrar um livro que me revelasse muitas histórias inéditas. E também muitos episódios interessantes. E eles estão lá. Mas o tom é demasiado jornalístico e muito pouco literário.

As páginas finais relatam o drama de Hitchcock perante a sua debilidade física e defronte da doença da esposa. Chandler é contida. Não fala de si mesma nem procura avivar, de forma barata, as emoções do leitor. É muito precisa acerca da organização e da apresentação das informações.

“É Só Um Filme” é um livro biográfico escrito por alguém que conseguiu recolher testemunhos valiosos. Louvo a Editorial Bizâncio pela sua aposta neste livro.

Encontrei algumas histórias curiosas no decurso da leitura desta obra e uma oportunidade soberana para consolidar conhecimentos e impressões. O livro é um presente perfeito para qualquer hitchcockiano. Tanto mais que havendo dezenas e dezenas de obras sobre Hitchcock, poucas têm sido editadas em língua portuguesa e menos ainda em português de Portugal.

Aconselho o livro a quem procura conhecer melhor a personalidade de Hitchcock, o desenvolvimento do seu trabalho e o impacto das suas criações sobre o público; e sobre os actores, técnicos e músicos que se cruzaram com ele. É uma biografia sobre a influência da vida deste homem na vida dos outros.

Homem amado e detestado. Temido e venerado. Controverso e carismático. Surpreendentemente marcante. Ícone do Cinema do século XX. Este livro fala-nos do homem e da sua obra. Sem proezas literárias nem processos narrativos elaborados.

No percurso das páginas deste livro, é muito belo o sentimento de amor e dedicação que une Hitchcock à sua esposa Alma. Alfred Joseph e Alma foram companheiros durante mais de cinquenta anos. Trabalharam juntos, trocaram ideias, apoiaram-se mutuamente e dividiram entre si muito alento e esperança. A ideia de que Alma pudesse morrer antes de si preocupava intensamente Hitchcock nos seus derradeiros dias.

O consentimento de Alma, os seus conselhos e as suas opiniões eram indispensáveis para o cineasta do suspense. Alfred e Alma partilharam a paixão pelo Cinema e um grande e saudável espírito de romantismo. Não admira que a filha do casal, Patrícia Hitchcock, tenha proferido algures que este pode ser o livro mais interessante que leu sobre o seu pai.

Deixo aqui uma citação retirada da página 309. São palavras de Hitchcock: “Sou um homem cheio de sorte. Comecei muito cedo a fazer aquilo que queria fazer. E pude continuar a fazê-lo. Encontrei a companheira perfeita para a minha vida. Tivemos uma filha perfeita, Pat. Não mudaria nada na minha vida, senão o facto de ela ter de acabar.”

Na iminência do seu fim enquanto cineasta e enquanto ser humano, Hitchcock deixou evidenciar uma fragilidade crescente. Mas também um regozijo por ter sido presenteado com tantas dádivas.

Uma nota final: Já escrevi, não sei bem em que artigo, que Hitchcock foi sepultado, sendo secreta a localização da sua campa. Aprendi com Chandler que não é verdade. O corpo de Hitchcock foi cremado e as suas cinzas deitadas ao Oceano Pacífico. O mesmo destino encontrou Alma Reville Hitchcock. Acredito que algures se terão encontrado. Ou que ainda se vão reencontrar.

Hitchcock terá dito também: “Os filmes são a minha vida mas, mesmo que não possa fazer mais nenhum, gostava de continuar vivo… enquanto a Madame estiver viva. Nunca poderei estar bem se ela estiver doente. A nossa vida a dois é agora tão próxima como ontem, tão afastada como amanhã.” (página 310)

Acredito que, amanhã, Alfred Joseph e Alma estarão bem próximos. Amanhã como ontem. Quero acreditar que sim. Nos filmes de Hitchcock, nem sempre os factos faziam sentido e eram justos. Mas a lógica de Deus talvez seja diferente… Tem de ser diferente.