sexta-feira, outubro 28, 2005

SOBRE A VIOLÊNCIA NO CINEMA...


Quando se critica o excesso de violência no Cinema e simultaneamente se apregoa um hitchcockianismo quase fanático, pode parecer denotar-se um certo tipo de incoerência. Mas não é tanto assim... Há alguns aspectos a considerar neste âmbito e aqui nem tudo é preto nem tudo é branco.

Primeiramente, gostava de assinalar que também um filme brutal (mas paralelamente tão tocante) como “O Homem-Elefante” (1980) de David Lynch se tem revelado um exemplo de pedagogia eficaz junto de crianças de tenra idade.
A violência e a maldade existem. Interessa é saber como as mostrar para as tentar abolir.
Muitos miudos pequenos têm revelado sensibilidade perante o filme de Lynch, aprendendo por meio dele que nenhum ser humano merece ser escorraçado por ter um aspecto físico repelente. Ou, por outras palavras, que a aparência dos seres humanos é irrelevante pois é o espírito ou a alma das pessoas que mais conta. E eis como o Cinema pode sensibilizar, oferecer lições de vida, humanizar portanto...

A violência nos filmes é polémica. Observem o caso específico de “A Paixão de Cristo” (2003) de Mel Gibson. Parece descabido o excesso de violência do filme. Estou quase certo que é descabido. Mas talvez não seja... Porque só confrontados com as realidades mais cruas é que frequentemente tomamos consciência da inutilidade e da estupidez da violência.
Será o filme de Gibson um reflexo do seu aparente gosto pela violência? Aquele que vemos nos filmes do Mad Max que ele protagoniza ou no aclamado “Braveheart” (1995) que o levou a arrecadar alguns óscares para o bolso e muito dinheiro também...? Parece-me que a violência em “Braveheart” é mostrada mas não exaltada. Estarei enganado?

A violência no Cinema atrai as audiências. Às vezes nem se compreende se é por bons ou maus motivos. Filmes como “Mystic River” (2003) de Clint Eastwood, “A Promessa” (2001) de Sean Penn, “Mississipi em Chamas” (1988) de Alan Parker... Não são meras reflexões sobre a crueldade da Vida e de certas almas atormentadas. São filmes que nos fazem pensar como é de ordem crucial que cada um de nós assuma o seu papel neste mundo e o procure fazer em consonância com o mundo e com nós mesmos. Mesmo que o mundo funcione mal e seja tentador recorrer à violência para corrigir injustiças e disfunções. (O que me faz pensar em “Taxi Driver” (1975) de Scorsese).

É tão difícil assim construir um mundo verdadeiramente humano e humanizador? Parece que sim. Porque a História da Humanidade está densamente marcada por guerras de diferentes índoles. Desde que o Homem é Homem, o percurso histórico dos povos tem sido pontuado por infinitas disputas, querelas, batalhas e conflitos com consequências densamente sangrentas e dramáticas.
E afinal, o resto da Natureza não é muito melhor. Os animais comem-se uns aos outros. Para sobreviverem mas também para satisfazerem uma sede instintiva de fazer matanças. É cruel mas é verdadeiro.

Será possível fazer do Cinema uma arte humana e humanizadora? O que diferencia os homens dos restantes animais é a capacidade de reflectirem sobre os seus actos e de construirem conceitos éticos e morais que condicionam a sua acção. Cada acto humano pode e deve ser reflectido.
Poderá o Cinema ensinar homens e mulheres a serem melhores seres humanos? Ensinar-lhes humanidade com tudo o que isso implica de racional e civilizado? Acredito que sim.

Não escrevo aqui propriamente como hitchcockiano porque a alma dos filmes de Hitchcock está embuída de crimes, de suspense e de uma violência mais ou menos explícita. E talvez, se Hitchcock trabalhasse nos nossos dias, os seus filmes não fossem menos violentos que os de Quentin Tarantino...

Nem escrevo como o cinéfilo que se curva ante a genialidade artística e cinematográfica de “O Silêncio dos Inocentes” (1991) de Jonathan Demme ou de “Laranja Mecânica” (1971) de Stanley Kubrick. Excelentes filmes mas violentos e de que maneira...

Escrevo sim como o ser humano que gosta de ver o Cinema contribuir para o crescimento intelectual dos espectadores e não meramente para o seu entretenimento. A verdade é que há filmes em que se usa e abusa da violência e talvez se faça isto de forma tacanha e teimosa. Senão pensemos em obras aclamadas como “Era uma vez na América” (1984) de Sergio Leone, “Deliverence” (1972) de John Boorman ou “Cães de Palha” (1971) de Sam Peckinpah...

Eu gosto particularmente de “Misery” (1990) de Rob Reiner e do “The Shining” (1980) de Kubrick. Mas pode haver quem fique escandalizado com as minhas preferências e com a quantidade de tinta vermelha usada nesses filmes para recriar ambientes sangrantos. Acredito que sim.

Há 20 anos atrás, perguntei a mim mesmo se não existiria em mim um lado estranhamente sádico. Senão porque gostaria de filmes de terror? Senão porque considerava a sequência do chuveiro em “Psico” tão interessante de estudar, de ver e de rever?

Conversei com um jovem padre, então meu amigo. E ele disse-me:
“Quando era criança, nada me divertia mais do que ver cowboyadas. Ver cowboys matando índios e índios matando cowboys. Era importante saber quem tinha razão. Quem eram os bons e quem eram os maus”.

O pequeno miudo, futuro seminarista e defensor da paz e da concórdia, lutava pela melhor facção. Nos filmes antigos que passavam na RTP, habitualmente venciam os heróis. Logo, aquelas cowboyadas eram lições de vida das quais ele retirava importantes e confortáveis deduções. Como a de que se deve lutar pelos bons princípios, aqueles que nos são de interesse relevante ou mesmo vital...

Em conclusão, não creio que um western ou um bom filme de crime e mistério possam trazer mal ao mundo. Desde que a ênfase dada à violência não seja exagerada. Como escrevi atrás, a violência e a maldade existem no nosso mundo. Não vale a pena fingir que não são reais.

Por isso, aceitemos os filmes como retratos da Humanidade. Podemos sempre aprender com eles a conhecer melhor as pessoas. Podemos deleitar-nos com as suas virtudes artísticas e técnicas. E aceitar que é divertido saber se o bom espião vai ser morto ou se a bela jovem resistirá ao ataque do assassino. Porque não?

Não podemos subestimar o valor e a importância do Cinema. No século passado e naquele em que vivemos. Seremos capazes de usar devidamente o seu poder e influência? Creio que sim. Quero acreditar que sim. Quero convencer-me que o factor “violência” nas produções cinematográficas não é determinante. E gosto de pensar que o Cinema evoluirá de forma tão natural e sintomática como a Ciência e a Tecnologia. Como arte que é, o seu percurso é diferente. O primeiro século de existência da arte cinematográfica, os primeiros 100 anos, foram assombrosos. Quero acreditar que o universo dos filmes pode constituir um nítido e efectivo instrumento de crescimento da Humanidade. Estarei a ser utópico? Não, talvez só saudavelmente optimista...

quinta-feira, outubro 13, 2005

A ARTE CINEMATOGRÁFICA E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA





Um dos aspectos a que sou particularmente sensível enquanto cinéfilo e observador de filmes é procurar manter presente que cada filme é um produto do seu tempo. Interessa ver cada obra dentro do contexto que a viu nascer senão não teremos uma verdadeira percepção das qualidades e dos defeitos que a definem.

Nunca poderemos tomar consciência absoluta da inovação técnica apresentada por Orson Welles em “Citizen Kane” (1941) sem conhecermos os padrões cinematográficos da época. Sim. É um filme que ainda hoje seduz pelo encadeamento narrativo e pelas imagens tão enigmáticas, densas e impressivas. O trabalho de montagem em “Kane” é diferente de todos aqueles que Hollywood conhecia… Mas hoje, no ano 2005, depois de um jovem de 25 anos ter visto “Laranja Mecânica” (1971) de Kubrick, “Taxi Driver” (1975) de Scorsese, “Eraserhead” (1977) de Lynch, “Irmãos Inseparáveis”(1988) de Cronenberg ou “21 Gramas” (2003) de Alejandro Gonzalez Inarritu… Poderá ele ser sensível ao talento que vem de uma obra como a de Welles ou para o sentimentalismo de um “Casablanca” (1943) ou, se quisérmos falar de cinema europeu, para um miserabilismo como o de “A Estrada” (1954) de Fellini; ou para uma arte de criar comoções como a do “Ladrões de Bicicletas” (1948) de De Sica?

Afinal os jovens de hoje conhecem Spielberg, Scorsese, George Lucas, um sem número de artifícios visuais e técnicos que os encantam e a que já estão habituados. A magia da imagem de Terry Gillian ou de Tim Burton… O tratamento digital das imagens… Há recursos hoje com que os autores clássicos do Cinema nem sonhavam.

O filme “Os Dez Mandamentos” (1956) de Cecil B. De Mille ou o “Mary Poppins” (1964) de Robert Stevenson encantaram as audiências na época das suas estreias. As pessoas perguntavam-se: “Como é possível fazer isto em Cinema ?” Mas hoje: “A Guerra dos Mundos” (2004) de Spielberg ou o “Homem-Aranha” (2002) de Sam Raimi não seduzirão mais os jovens? E serão filmes superiores? Talvez não…

É paradoxal que um filme possa receber uma maior aclamação na sua época consoante apresente recursos técnicos mais evoluídos, impressionantes e convincentes. O público não estará a confundir arte com tecnologia?

Só posso concluir que o Cinema é uma arte que em Hollywood (e não só) se produz e promove como uma indústria; e que recorre necessariamente ao patamar da evolução tecnológica. Não pensemos agora no âmbito comercial do Cinema e centremo-nos na temática da tecnologia.

Tomemos como exemplo o genérico do “Vertigo” (1958) de Hitchcock. Está sublimemente concebido por Saul Bass (um dos poucos mestres clássicos da arte de criar genéricos). É a abertura ideal para um filme que se centra num ambiente de obsessões, de vertigens e de distorções. Espirais girando sobre si mesmas, surgindo umas das outras ou em sobreposições enigmáticas; espirais com colorações diferentes que nascem de um olho de mulher e a ele retornam. É fantástico. Hoje, as novas gerações serão sensíveis à genialidade deste genérico densamente enriquecido pela música de Bernard Herrmann (o mais célebre e importante dos compositores de Hitchcock)?

O progresso tecnológico ajuda os cineastas a exporem as suas narrativas e a conceberem cenários e ambientes diversos. Tem-no feito de forma gradualmente mais impressiva e eficiente. Mas também é certo que alguns realizadores se escondem atrás dos artifícios técnicos. Consciente ou inconscientemente.

Por outro lado, o problema da tecnologia é que mediante ela, os filmes ficam de algum modo catalogados e datados. Vemos os filmes de ficção científica dos anos 50 e ficamos desencantados com as limitações técnicas dos seus efeitos especiais. O mesmo se pode afirmar dos filmes de terror. (Uma possível remake de “Os Pássaros” (1963) feita hoje não poderia ser mais aterrorizadora?)

Conversei com um jovem de 19 anos há pouco tempo. Confessou-me que gostava muito de Cinema e que considerava Hitchcock como um mestre de referência para muitos cineastas. De uma forma ou de outra. Gostei de o ouvir. Falei-lhe do genérico de “Vertigo”. Ele respondeu-me: “É muito bom. Claro que eu hoje talvez fizesse qualquer coisa de semelhante no meu computador.”
Sorri mas não devo ter conseguido disfarçar algum desencanto. Poderia o célebre genérico de Saul Bass ser reinventado por um computador nas mãos de um jovem estudante do 12º Ano?


Afinal, meus leitores, em que termos poderemos definir a arte cinematográfica? Como arte que é, não é uma ciência exacta nem afecta as pessoas de forma igual. Um mesmo filme sensibiliza uns espectadores e outros não. Do mesmo modo que um quadro, ou uma música ou uma escultura. Mas também é verdade que o Cinema evolui, progride, transforma-se. Porque é um fenómeno social. E um fenómeno tecnológico. Como o bom senso dita para todas as acções humanas, nenhum ingrediente deve ser tomado em demasia. Deve ser atribuída à tecnologia o valor devido mas nem o cineasta nem o espectador devem fazer dela um parâmetro central. Defendo a ideia de um cinema que usa a tecnologia como um recurso e não como um fim em si mesmo.

Seja como for, não existe um modelo perfeito de arte cinematográfica. O que para mim é perfeito, pode não o ser para o meu vizinho. E claro que os filmes da série Matrix são visualmente fenomenais. E claro que uma animação como a de Shrek é soberba. Mas não concordam que quando a adaptação da “Guerra dos Mundos” de H. G. Wells assenta exageradamente nos efeitos especiais, o mínimo que se pode dizer é que Spielberg não está no seu melhor?

Lembro-me de uma reportagem gravada imediatamente a seguir à estreia de “Non ou a Vã Glória de Mandar” (1990) de Manoel de Oliveira. Perguntaram aos espectadores que saiam da sala o que haviam achado do filme. Alguém disse: “Bem, o guarda-roupa era muito bom…” A opinião podia estar certa ou não. Mas o guarda-roupa não é tudo. E a tecnologia também não…

quinta-feira, outubro 06, 2005

PARA ALÉM DO PIANO, A NOSTALGIA



Estive ontem num centro comercial da cidade de Lisboa e senti um ambiente ligeiramente nostálgico no ar. Não vinha das pessoas que comiam e conversavam em redor das mesas. Nem vinha do movimento frenético daqueles que faziam compras e se mostravam afadigados. Vinha do som do piano no centro das galerias. Um homem relativamente novo estava ali a tocar músicas antigas impregnadas de romantismo.

Senti aquela velha tristeza, tão antiga em mim, de não saber tocar sabiamente piano. Estudei Música vários anos mas nunca atingi um grau mínimo de capacidade interpretativa que me motivasse a tocar para os outros. E então, lá estava eu… Sozinho e entregue à realidade inegável de que cada um é o que é e não o que podia ter sido.

Olhei em redor e vi amigos em conversas amenas, colegas de trabalho que viriam dos seus empregos e muitos casais de namorados. E eu ali sozinho, entregue à minha condição de homem só. Sabem que alguns dos melhores cinéfilos são pessoas solitárias? Devia ser solidão o que sentia ao ver-me rodeado por imensas pessoas sem que ninguém olhasse para mim. E era uma solidão um pouco amarga porque vivia-a ao som daquela música tão linda mas melancólica.

O Cinema é uma máquina de construção de sonhos. Para os que o fazem, sim. E para os que o vêem. Para mim, tem-me permitido camuflar uma tristeza que ao som da música daquele piano, se tornava mais perceptível.

O Cinema ajuda-nos, sim. Quase que, por entre o barulho das pessoas a falarem, ouvia o piano do filme “Janela Indiscreta” de Hitchcock. Aquelas notas musicais que sensibilizaram Miss Coração Solitário e a retiveram no preciso momento em que ia tomar os comprimidos certos para um suicídio quase inevitável. Sim. A Música também opera maravilhas. Move montanhas. Destrói iras e ansiedades. (Não é também nostálgico o “As Time Goes By” do “Casablanca” (1943)? E o “Moon River” de “Breakfast at Tiffany’s” (1960)? E os temas de “Love Story” (1970), “Aconteceu no Oeste” (1969) e “África Minha” (1985)? O Cinema e a Música podem unir-se de forma soberba!

Como muito do que é belo, aquele piano cujo som chegava até mim, revelava um lado quente e melodioso mas também me convocava para alguma tristeza. Como uma rosa bela nunca está completa sem os seus espinhos… Ou como o Amor definido por Luís de Camões: essa “ferida que dói e não se sente”, esse “contentamento descontente”.

O som do piano, no centro das galerias comerciais, parecia sobrepor dois mundos: o das realidades e o dos sonhos desfeitos. Como o que alimentei, em tempos, de ser um grande pianista ou de viver profissionalmente de qualquer coisa que também enriquecesse a faceta mais emocional da minha pessoa.

A Música opera milagres… No cinema de Alfred Hitchcock, a Música é de importância crucial. Grandes compositores trabalharam para o cinema de Hitchcock: Franz Waxman, Miklos Rozsa, Dimitri Tiomkin, Maurice Jarre ou John Williams (o músico predilecto de Spielberg). E acima de todos, Bernard Herrmann que é muito directamente associado ao realizador inglês. (A associação Herrmann/Hitchcock prolongou-se durante mais de uma década, por sinal a fase mais prodigiosa de Hitchcock.)

Há filmes da obra de Hitchcock em que uma melodia precisa pode ser determinante: como em “Desaparecida” (1938), “O Homem Que Sabia Demais” (1956) ou “Mentira” (1943).
Às vezes (e isso já acontecia nas épocas áureas da carreira de Hitchcock), uma boa melodia pode funcionar como um eficiente veículo publicitário de promoção do filme.

No universo de Hitchcock, a música alerta-nos para realidades, convoca-nos para estados de espírito, incorpora-nos no seio dos ambientes mais diversos…
Às vezes, a música pode ser tão bela que magoa. Outras vezes, pode ser um convite para que não pensemos nos espinhos da rosa e só nos concentremos na sua beleza e harmonia visual.

Vi-me ali naquele centro comercial, diante da Música, como o homem que admira a poesia da Vida. E é obrigado a admitir que, sem mágoas, as alegrias também não seriam tão significativas e marcantes. E tão agradáveis de viver.
Oxalá os meus leitores me perdoem a ousadia de fazer uma referência precisa ao impacto que certa música tem sobre mim. Como um cinéfilo que se leva a sério, as bandas sonoras do Cinema interessam-me particularmente. Compro-as em CD, ouço-as, estudo-as, examino-as como partes integrantes dos filmes e como obras de arte autónomas

Talvez se possam rir da minha cinefilia fanática: a cinefilia de quem escuta música pensando em filmes; vê filmes e está absorvido pelas bandas sonoras; e bebe um café, discernindo os sons de “Janela Indiscreta” no corrupio de um centro comercial.