sábado, dezembro 31, 2005

SOBRE A CONCLUSÃO DOS FILMES...


Se a nossa vida neste ano de 2005 fosse equiparada a um filme do Hitchcock, o mais certo é que o clímax do suspense se estabelecesse sensivelmente no dia de Natal. Ou mesmo depois. E o genérico final não começaria antes do dia 31 de Dezembro. Seria breve, incisivo e directo. Talvez nem apresentasse letras para além do termo THE END.

Até finais da década de 60, princípios da de 70, o genérico final era muito curto ou mesmo inexistente. Grandes clássicos como “E Tudo o Vento Levou” (1939), “Casablanca” (1943), “Ben-Hur” (1959), “My Fair Lady” (1964) ou “Música no Coração” (1965) terminam com uma rotineira legenda dizendo “FIM” e com uma listagem dos (principais) elementos do elenco.

Sou daqueles cinéfilos que fica dentro da sala de cinema até a cortina se fechar diante do écran. (Quando há cortina por correr) Considero que é louvável estar atento aos nomes da equipa de produção de um filme. Hoje, e desde há cerca de 35 anos, é costume nomear todos os participantes que directa ou indirectamente participaram na feitura do filme.

Às vezes, os genéricos finais são enormes e referem também as instituições que facilitaram a realização do filme, os créditos relativos aos serviços prestados, aspectos técnicos relacionados com o material de filmagem, os nomes das músicas não originais incluídas na película e seus autores e muito mais…

À data da sua estreia em 1978, “Super-Homem” de Richard Donner era o filme com o genérico final mais longo: cerca de 7 minutos de extensão. Medida talvez despropositada ou não.

Seja como for, hoje há procedimentos que por lei são obrigatórios. A informação em relação à duração de um filme inclui o tempo do genérico final que não costuma ser muito conciso nos nossos dias. E que muitas pessoas desprezam com total desapego.

Eu gosto dos genéricos finais. Depois do termo do filme, eles ajudam a promover o estado de espírito certo para quem viu a obra e vai sair da sala de cinema. Por isso, penso que é importante ponderar qual a música que deve acompanhar a passagem dos nomes, o aspecto gráfico das letras e a rapidez com que passam.

A verdade, meus caros amigos leitores, é que o genérico final cimenta um ambiente que pode resultar como um encaixe perfeito para a conclusão de um filme. Trata-se de definir uma atmosfera própria.

Nos tempos áureos do cinema de Hitchcock, os genéricos finais eram insignificantes. O genérico de abertura do filme (de forma tradicional, anterior a qualquer outra imagem do filme) incluía os nomes e as referências centrais na produção da obra.

Nos anos 50, genéricos de abertura como os de Saul Bass (que trabalhou com Hitchcock nas sequências de abertura de “Vertigo”, “Intriga Internacional” e “Psico”) eram invulgares. Em inícios da década de 60, outro grande artista dos genéricos chamado Maurice Binder criaria um padrão interessante para os filmes de James Bond.

No entanto, raramente o genérico dos filmes era, nesses dias, o produto acabado de um trabalho artístico meticuloso. O genérico final era pobre, curto e desinteressante. Como se depois da palavra FIM, nada mais interessasse verdadeiramente.

O caso de “Citizen Kane” (1941) de Orson Welles é peculiar. É das poucas obras clássicas que apresenta um genérico após o termo da acção. A revelação em torna da palavra enigmática ROSEBUD é impressiva e depois a listagem dos nomes dos actores e técnicos revela-se eficaz. Mas “Citizen Kane” era uma obra invulgar a todos os níveis. Welles voltaria a usar o mesmo tipo de conclusão noutros filmes.

Chamar-me-ão cinéfilo fanático porque vejo cada filme até ao seu último segundo. No entanto, acredito que o genérico de conclusão de uma película é essencial. Nas últimas décadas, tem-se procurado promover o interesse das letras finais, intercalando imagens adicionais com os nomes e as informações apresentados.

Na conclusão do segundo filme da saga Matrix, era mostrado um trailer com cenas da terceira parte. Muitas pessoas não o terão visto certamente. Foi uma estratégia de marketing usada com algum engenho.

Em muitos filmes ligeiros, utiliza-se o espaço do genérico final para apresentar cenas que não foram utilizadas ou que revelam imagens cómicas registadas durante as filmagens.

Parece óbvio que, nos dias que correm, poderemos perder algo de interessante se virarmos as costas para o écran antes do momento certo. Mas é comum, em muitas salas, acender a iluminação e abrir as portas enquanto passam os créditos do filme. É o mesmo que convidar as pessoas a sair ou dizer-lhes algo do tipo: Podem ir-se embora porque ninguém os obriga a ver o que não vos interessa”.

O final dos filmes de Alfred Hitchcock é, não raras vezes, o seu momento menos brilhante. Penso em filmes como “Difamação” (1946), “Os Pássaros” (1963) ou mesmo “Intriga Internacional” (1959) que termina muito apressadamente. E de que maneira!

As cenas a seguir ao clímax do suspense pareciam não motivar Hitchcock e é compreensível o seu desinteresse pelas imagens finais, onde se instaura um happy-end, as personagens estão felizes e os espectadores mais desapegados da acção da história.

Terminar com um final feliz não implicava para Hitchcock ser obrigado a rodar muitas cenas. Às vezes, um ligeiro pormenor podia servir os propostos pretendidos.
Em “O Homem Que Sabia Demais” (1956), a cena final é curta e simbólica. Como em “Mentira” (1943), “Desconhecido do Norte Expresso” (1951), “Sabotagem” (1942) ou “Correspondente de Guerra” (1940).

Mas não sejamos demasiado severos! Hitchcock também filmou algumas conclusões belas e eficazes. Pensemos em “Janela Indiscreta” (1954), “Cortina Rasgada” (1966) ou principalmente em “Rebecca” (1940).

O final de “Os Pássaros” (1963) é absolutamente frustrante. Direi mesmo que é a única mácula num filme genial. O termo de “Psico” é mais demorado e explicativo. O monólogo de Mrs. Bates com o rosto de Norman Bates é perfeito. Mas o muito brilhante efeito de sobreposição da caveira com o rosto de Norman passa completamente despercebido. Milhares e milhares de pessoas terão visto “Psico” sem repararem naquele pormenor simbólico e visualmente soberbo. A imagem passa demasiado depressa e, logo a seguir, vemos o carro de Janet Leigh a ser retirado do pântano e as lacónicas palavras THE END.

O caso de “Vertigo” é sintomático. É impressivo, brutal e um pouco surpreendente. Mas é um final abrupto. Quase não temos tempo para respirar depois de Kim Novak cair para o abismo e Stewart se debruçar para vê-la. O filme termina de forma demasiado brusca. Sente-se isso na sala de cinema mas também na sala-de-estar onde temos o nosso leitor de DVD.

O genérico final pode ser o instrumento perfeito de inserção do espectador no ambiente da cena derradeira. O caso de “Vertigo” é muito ilustrativo. A cópia restaurada e apresentada em 1998 apresenta um genérico final com os nomes das pessoas que participaram no trabalho de restauro visual e sonoro. E o que sucede é que se atribuiu assim ao filme um complemento que ele originalmente não tinha. Uma espécie de prolongamento do ambiente sinistro final suportado com o apoio da música do genérico de abertura.

Não foi acrescentado à obra nada que não lhe pertencesse. Não se procedeu como se tivéssemos pintado um chapéu na cabeça da Monalisa de Da Vinci. Mas antes se propiciou uma conclusão estética e artisticamente mais equilibrada. Agora sim o final de “Vertigo” parece equilibrado e completo. Era uma obra-prima e permanece uma obra-prima. Mas, mais do que nunca, chegamos à conclusão do filme e tomamos consciência disso. O trabalho de restauro é irrepreensível. Mas também o pequeno genérico final opera um bom efeito.

Hoje, à luz do que temos visto nas últimas décadas, penso que se a nossa vida no ano de 2005 fosse equiparada a um filme, ofereceríamos mais espaço ao genérico final. O termo da acção seria a 20 de Dezembro. E aos últimos onze dias, equivaleria a apresentação cuidada dos créditos do filme.

É importante essa apresentação, tem interesse e várias finalidades. Agora só me resta desejar que o novo ano que amanhã começa, seja como que um filme feliz para o mundo inteiro. Há sempre manifestações de maldade e egoísmo em todas as histórias. Não se compreende um bom sentimento senão por oposição a um mau sentimento. Também não se entende a alegria sem percepcionar o que é a tristeza.

Que haja muita justiça, paz e harmonia no novo ano. Um pouco como em “O Terceiro Tiro” (1956) de Hitchcock. Aí todos são inocentes. Ninguém precisa de se sentir culpado. O Harry não foi morto e a ideia do crime não passou de um equívoco. Será pedir demasiado?

sexta-feira, dezembro 23, 2005

UM NATAL COM HITCHCOCK



Sempre que alguém se refere ao domínio da Música no universo de Hitchcock, um nome é absolutamente incontornável: o do compositor Bernard Herrmann. O seu trabalho, a sua vida e a sua extensa colaboração com o Mestre do Suspense oferecem-me mil ideias sobre as quais gostaria de escrever.

Na semana das festas natalícias, aproveito para relembrar o nome de Bernard Herrmann. Ele faleceu no dia de Natal do ano de 1975. Foi há trinta anos, exactamente. Após ter completado as gravações da música que compôs para o filme de Martin Scorsese, “Taxi Driver” (1975).

Herrmann foi nada menos do que um dos melhores compositores de Música para Cinema. Trinta anos depois, saúdo o seu trabalho, a sua genialidade e a sua perseverança. E prometo apresentar aqui um texto de evocação da sua obra.

Estamos na semana do Natal. Esta época festiva traduz-se em muitas expressões de amor e em gestos que simbolizam o ideal da fraternidade entre todos os homens. O Cinema está repleto de filmes fabulosos que nos ensinam muito do que podemos aprender com o espírito natalício.

Vejam, por exemplo, uma obra-prima de Frank Capra chamada “Do Céu Caiu Uma Estrela” (1946). Ou reparem na beleza emocional que deriva de filmes especiais como “O Vale era Verde” (1941) de John Ford, “O Feiticeiro de Oz” (1939) de Victor Fleming, “Música no Coração” (1965) de Robert Wise ou “ET” (1982) de Steven Spielberg. São obras poéticas que iluminam muitos momentos de festa passados em família.

Claro que não vejo no suspense macabro de Hitchcock qualquer traço dos ideais do Natal. Mas, se dizem que o Crime não compensa, confesso aos meus leitores que tenho vivido felizes momentos natalícios em redor dos crimes hitchcockianos. Os meus amigos conhecem-me bem e costumam oferecer-me filmes e livros sobre Cinema. Portanto, bem podem imaginar como vivo certas tardes de dia de Natal. E escrevo: um bom crime hitchcockiano também é uma dádiva de Deus.

Não creio que Hitchcock fosse capaz de filmar um genuíno e natural filme de Natal. Porque não lhe interessava conceber um filme proveniente desse universo. Mas quem sabe o que era possível? (Não quis Hitchcock filmar uma obra inteiramente na Disneylândia? Teria sido interessante observar o resultado final de um tal trabalho. Mas Walt Disney terá repudiado veementemente a ideia!)

Um filme de Natal hitchcockiano? O mais provável é que no argumento dessa obra incrível, estivesse um corpo debaixo da mesa da Consoada. E que o mais belo embrulho colocado junto à árvore de Natal fosse um frasco de veneno. Mas o Natal hitchcockiano seria mesmo assim…

A IMAGEM, O SOM E A PALAVRA...


Hitchcock era um defensor consciente ou inconsciente do primado da Imagem sobre a Palavra. Alguns dos melhores momentos do seu cinema são essencialmente visuais. O diálogo não é determinante nestas cenas mas meramente complementar. Isto não significa dizer que o som é dispensável ou que não houvesse rigor na criação sonora dos seus filmes. Os sons no cinema de Hitchcock são importantes: a Música e os ruídos decorrentes da acção. Mas é a Imagem que mostra a maior dimensão da realidade.

Talvez Hitchcock fosse mais genial a criar a Imagem do que a escolher os diálogos dos personagens. Por isso, me parecem tão relevantes inúmeras cenas da sua obra em que não há diálogos.

“Psico” (1960) apresenta sequências inteiras de imagens sem diálogos. A acção decorre da expressividade das imagens e da genialidade da música. Mas também os silêncios são relevantes.
Na cena mais famosa do filme, há uma inteligente gestão do som. Quando Janet Leigh entra na banheira, há uma suspensão temporária da música. Quase só se ouve o som da água que corre do chuveiro. Por isso, o ataque é mais imprevisto e o facto de ser tão imprevisível ainda o torna mais brutal. Logo então, os acordes cortantes da banda sonora criam um efeito arrepiante.

Bem sabemos também que Hitchcock fez questão de adicionar um efeito sonoro suplementar: o som das facadas em simultâneo com os gritos da rapariga. Atenção: foi gravado o som de facadas em melões. Nenhum ser humano foi propositadamente esfaqueado. Nem nenhum cão ou gato.

“Psico” pode ser o melhor exemplo para apontar o que referi. Mas o cinema de Hitchcock está densamente iluminado por cenas deste tipo. Encontramo-las em “Vertigo” (1958), “O Desconhecido do Norte Expresso” (1951), “Janela Indiscreta” (1954), “Chamada para a Morte” (1954), “O Homem Que Sabia Demais” (1956), “Intriga Internacional” (1959), “Cortina Rasgada” (1966), “Marnie” (1964); em “Rebecca” (1940) e “Casa Encantada” (1945) …

São cenas em que o elemento visual é preponderante embora o som também tenha requerido tratamento. O exemplo mais demonstrativo de um filme sem banda sonora mas com um trabalho apurado na produção e definição do som é “Os Pássaros” (1963).

Foi um enorme desafio para Hitchcock conceber um filme de terror sem música porque a música é muitíssimo eficaz na recriação de ambientes sinistros. Aqui, os sons registados com pássaros são sobrepostos, distorcidos, acentuados ou diminuídos consoante os imperativos decorrentes da acção.

A recriação do ataque dos pássaros à casa de Rod Taylor assenta na eficácia do som estridente, perturbante, alucinante. Não há palavras soltas nem diálogos. Só ouvimos os pássaros. Só ouvimos os seus gritos de ataque.

Por isso, concluo sem marca de hesitação que o som no cinema de Hitchcock é concebido de forma inteligente e marca a atenção do espectador. Mas a palavra e o diálogo talvez não tanto…

Um filme demasiado palavroso como “A Corda” (1948) ou a segunda metade de “Chamada para a Morte” (1954) podem traduzir de que forma a Palavra em Hitchcock nem sempre revela tanto brilhantismo como a Imagem.

“Chamada para a Morte” (1954) é o perfeito exemplo do filme de Hitchcock que funciona enquanto há uma acção pautada por gestos, expressões corporais e sombras e que não funciona quando o argumento perde tempo em redor dos pormenores e dos raciocínios. Na primeira metade, há todo um processo de concepção e preparação do acto do crime. Aos primeiros 40 minutos corresponde um belo pedaço de cinema de Hitchcock.

Já a segunda metade não é mais do que um exemplo de cinema policial entediante em que o público acompanha as investigações do detective sem grandes emoções ou apegos emocionais. Aqui escrevo em meu nome porque entendo que falta suspense onde ele era esperado.

Afinal, quase todo o cinema actual é composto por Imagem e Som. Soa lógico que Hitchcock tenha começado a sua carreira de realizador ainda na época do mudo. E que depois tenha vindo a aproveitar o progresso técnico possibilitado pela adição de som às imagens.

Hitchcock começa a realizar em 1925. O ano de 1929 marca um momento de viragem. “Chantagem” (1929) tem duas versões. É um filme concebido e filmado como mudo. Mas depois, é-lhe adicionado som.

Em 1934, Hitchcock já estava bem ciente de que a Música podia rimar de forma fantástica com as imagens e que dessa rima podia advir muita expressividade para as suas cenas de suspense. Por isso, em “O Homem Que Sabia Demasiado” (1934), ele construiu uma cena de importância culminante que decorre durante um concerto no Royal Albert Hall, em Londres. O bater dos címbalos ditará a morte de uma pessoa na assistência. (Na remake de 1956, esta cena é reconstituída e aperfeiçoada)

Em “Sabotagem” (1942), Hitchcock decidiu que o clímax do suspense no topo da Estátua da Liberdade seria quase mudo, sem música e com pouco ruído. Procurava tornar o silêncio mais intenso e angustiante do que qualquer música ou som.

Hitchcock sempre soube tirar proveito dos recursos sonoros à sua disposição. E da possibilidade da escolha entre o ruído e o silêncio.


sábado, dezembro 10, 2005

A FIGURA PESSOAL DE HITCHCOCK


Hitchcock permanece uma das grandes figuras simbólicas do Cinema. É um ícone. Embora os seus filmes debatam sistematicamente os temas do crime, do suspense e da espionagem, muitos intelectuais insistem em colocá-lo entre os melhores realizadores de sempre.

O segredo da popularidade da sua imagem pessoal explica-se por vários motivos. Ele mesmo aparecia fugazmente em cenas dos seus filmes. Tornou-se uma norma quase inviolável, o preceito de fazer aparições discretas em cada uma das suas obras. Não como actor. Mas sim como figurante.

Por outro lado, a sua figura era divulgada amplamente nos cartazes publicitários. Às vezes, o seu rosto e o seu perfil característico eram mais explorados pelas campanhas de marketing do que o nome e a imagem das estrelas dos seus filmes.

Mas não só por isto. Também devido às séries de televisão que apresentou durante cerca de 7 anos (entre 1955 e 1962). Séries com episódios relativamente curtos. (Em “Alfred Hitchcock Presents…” cada história tinha a duração de cerca de 23 minutos. Em “The Alfred Hitchcock Hour” a duração dos episódios foi alongada para 40, 45 minutos. É a segunda série que passa actualmente no canal SIC Mulher da TV Cabo.)

Devo admitir que não sou um conhecedor profundo do trabalho de Hitchcock para televisão. Sei que dos mais de 300 episódios que foram emitidos, Hitchcock só terá realizado pouco mais do que uma vintena. No entanto, o seu papel de apresentador e de anfitrião do programa resultou no veículo perfeito para a promoção da sua imagem. E para a expansão da sua popularidade.

Também foram publicadas colectâneas de contos policiais e histórias de crime sob a tutela de Hitchcock. Em cada livro, a imagem de Hitchcock era difundida e explorada.

O grande público conhecia Alfred Hitchcock. Era tão familiar como os grandes actores e actrizes de Hollywood. Era um homem gordo, rotundo, sisudo, que soltava piadas irónicas carregadas de humor negro e de sarcasmo, pronunciando cada palavra de forma grave, explícita e vagarosa.

O seu auto-retrato (um conjunto de linhas arredondadas) é a imagem de marca dos seus produtos. Podemos vê-lo nos DVDs que hoje se vendem, nas campanhas publicitárias, nas capas dos imensos ensaios que sobre ele foram escritos.

De facto, só outro cineasta do seu tempo era tão familiar das audiências: Charlie Chaplin. E depois, muitos anos mais tarde, apareceria Woody Allen. No entanto, Chaplin e Allen desempenham papéis importantes nos filmes que realizam. Como Orson Welles também. Hitchcock era diferente…

A marca Hitchcock estava associada a um certo tipo de produto cinematográfico. A sua figura encaixava ironicamente nos cenários emblemáticos das suas histórias de crime.

Veja-se o trailer do filme “Psico” (1960): não apresentava imagens do filme como era comum acontecer. Em vez disso, víamos o realizador a passear-se pelos cenários em que a acção decorria, alimentando suspeitas e curiosidade. Sempre com um travo de ironia em cada palavra que pronunciava. O seu olhar deslizava atentamente pelo interior do motel Bates e pela velha casa sinistra. Brincava deliciadamente com tudo aquilo. Divertia-se enquanto preparava a nossa diversão.

O aspecto austero de Hitchcock a que correspondia uma personalidade severa própria de alguém que não se entendia bem com todas as pessoas, deixava antever também um lado bonacheirão. Ele parecia gostar de brincar com tudo.

O seu aspecto rotundo fazia associar à sua personalidade a ideia do gordo que come bem e que tem prazer em comer com requinte.

A sua figura e a sua personalidade parecem estar cravadas nas linhas das pautas da banda sonora de “O Terceiro Tiro” (1955). O compositor Bernard Herrmann que o conhecia intimamente terá composto um arranjo de peças musicais extraídas daquele filme. E ter-lhe-à chamado “A Portrait of Hitch”.
Parece vermos a figura de Hitchcock enquanto escutamos aquele arranjo pleno de humor, sarcasmo e também de uma densidade aqui e ali enigmática. O grande Herrmann terá concebido as frases musicais que descrevem a figura de Hitchcock. Com todo a sua subtileza e ironia. Mas também com toda a sua apetência pelo sinistro e pelo misterioso.


A figura do mestre inglês do suspense ficará para sempre associada à cultura cinematográfica do século XX. Os cinéfilos que viveram durante os anos 40, 50 e 60, não esquecerão aquela figura. Inclusivamente as elites intelectuais. Quem, como eu, foi sensível ao espírito de saudosismo hitchcockiano dos anos 80, também mantém bem presente a figura do Mestre.

Hoje, nas prateleiras das livrarias, encontramos dezenas e dezenas de ensaios sobre o cinema de Hitchcock. E muito frequentemente é a figura do realizador que está em evidência nas fotografias das diferentes edições. Imagens com Hitchcock. A trabalhar, na sua vida pessoal ou em retratos insólitos.

Recordo-me de uma fotografia do rio Tamisa em que se vê o corpo de Hitchcock a boiar sobre as águas; ou de uma imagem sua segurando uma faca comprometedora; vestido de velha senhora inglesa; ou sentado na cadeira da senhora Bates (a estranha e incógnita assassina monstruosa de “Psico”). Em todas estas imagens e em centenas de outras, se definiu a figura de Hitchcock. Figura singular do universo dos filmes…

Julgo que esquecer o nome de Hitchcock será consentir no estabelecimento de uma lacuna cultural. Mas conhecer um pouco do cinema de Hitchcock sem conhecer a sua figura pessoal… Será, mais do que improvável, quase impossível.