quinta-feira, agosto 14, 2008

DIRECTED BY ALFRED HITCHCOCK


«Na vida, se soubéssemos as consequências de cada coisa, o entusiasmo perderia a razão de ser. Que piada teria ir a um jogo de basebol, se já soubéssemos que equipa ia vencer? Para quê ir pescar se já se sabia de antemão se haveria pesca (ou não)? O desconhecido tem apelo precisamente porque é misterioso. (…) Como vivemos, o problema é nosso. Podemos fazê-lo num constante estado de ansiedade quanto ao futuro, sempre com medo de que no final os maus vençam, a injustiça triunfe e a humanidade se destrua. Ou poderemos usar a dádiva (de não conhecer o futuro) criativamente; ajudar homens de boa vontade a ganhar, ajudar a justiça a triunfar e acreditar que o drama humano deve ter um final feliz. O melhor do futuro é que vem para nós, um dia de cada vez.»
Alfred Hitchcock

É frequentemente difícil proferir conclusões no final de um longo discurso. Especialmente quando conversamos intuitivamente sem procurar uma ordem coerente para o encadeamento dos diferentes argumentos. O que se apresenta neste blog que hoje termina são oitenta comentários distintos que incidem sobre temáticas diferentes expostas segundo uma ordenação arbitrária. Na verdade, só existem dois elementos comuns a todos estes comentários: o Mestre Hitchcock e eu mesmo.

Por esse motivo, é complicado encontrar uma ideia que confira sentido a esta sucessão de reflexões. O que procurei sempre (até à última linha) foi escrever aqui com sinceridade. Como referi antes, de um modo poético e quase surrealista, procurei ver a minha vida e tudo o que me rodeia pelas lentes das câmaras dos filmes de Hitchcock, pelo olhar que emanava deles. Tentei fazer das minhas percepções um ponto de partida para a compreensão do cinema de Hitch.

Cheguei a comparar-me a esse homem a quem chamo às vezes Alfred Joseph – chamo-lhe assim quando identifico o lado dele que me é mais familiar. O da sua timidez e do seu desejo de aceitação pelos outros; o da sua insegurança em relação às suas certezas e da sua necessidade (que lhe era vital) de ter junto de si os que mais amava no mundo – em particular, a sua esposa Alma Reville, cuja morte ele nem queria conceber e cuja doença cardíaca antecipou o seu próprio declínio pessoal.

Alfred Joseph e eu. Aquele sobre quem escrevi e aquele que debitou comentários dispersos sobre a Vida, o Cinema e o Suspense – segundo diz o lema do blog.

Tentei provar aqui que o universo de Hitchcock engloba muito mais do que o patamar do «suspense». O suspense será como que a nuvem mais visível e expressiva num céu onde também se pode ver o Sol, a Lua, nuvens mais pequenas e até um pequeno aeroplano que passa momentaneamente.
O Cinema de Hitchcock não é só suspense. Não é tão linear nem tão simplista assim. Procurei mostrar diferentes perspectivas e valores na filmografia de Hitch. Mas muito ficou por escrever…

Desde Junho de 2005, tenho escrito para este espaço, respondendo ao desafio de dissertar sobre temáticas específicas intuitivamente definidas por mim. No termo de tantos meses de escrita, confesso que nunca li atentamente o que deixei para trás. Agora, no derradeiro comentário, apresenta-se-me abusivamente uma questão desconcertante: como devo terminar o blog?

Primeiramente, é meu dever explicar porque é este o meu último texto para o «EU, HITCHCOCKIANO, ME CONFESSO». Na verdade, considero que neste nosso pequeno mundo, tudo deve ser planeado e previsto mediante cenários salutares. Planear implica antever as dificuldades e agir a priori contra elas.

Não disponho do tempo necessário para desenvolver este blog de um modo mais dinâmico (quer em termos informáticos, quer principalmente em termos da expansão dos conteúdos). Esta realidade é incontornável e não é meu desejo transformar o prazer da escrita sobre Cinema numa rotina desagradável que é respeitada por obrigação moral.

Continuarei a escrever. Gerindo o tempo livre do melhor modo possível. O Hitchcock nunca poderá ser esquecido por mim. Estou a terminar um livro sobre filmes. E encontro-me na fase conclusiva de um romance e de um livro de contos. A escrita é para mim uma fonte de entretenimento e uma criação dinâmica. Nunca deverá ser vista de outra forma. Confesso, no entanto, que termino este blog com alguma mágoa. Mágoa que não poderei ignorar nem negar.

Hoje é dia 13 de Agosto. Alfred Hitchcock faria hoje anos e parece-me simpático encerrar esta iniciativa no dia do calendário em que tudo começou. Exactamente há 109 anos. Defini esta data para o fim do blog há vários meses. Ainda que possamos ser escravos dos planeamentos – e do desejo de uma vida onde tudo decorre como é previsto – nada nos pode libertar das imprevisibilidades. Como a Morte. Ou a Doença. Ou a decadência das capacidades físicas – essa mesma que impediu Hitchcock de terminar o seu último projecto: «The Short Night» baseado num romance de Ronald Kirkbridge.

Como já escrevi algures, com o Hitchcock aprendi a interessar-me verdadeiramente pelo aspecto técnico dos filmes e por reflectir sobre o valor intrínseco e extrínseco de cada obra cinematográfica. Tudo começou para mim em 1985. Numa pequena sala de cinema de Lisboa onde descobri «Janela Indiscreta». Hitchcock já estava morto mas começou então a marcar-me. Por isso, nunca ninguém pode ter a certeza de nada. Mesmos mortos, os seres humanos têm um poder imprevisível. Daí o fascínio de todos os mistérios, de todos os enigmas que não compreendemos nem podemos conhecer. A Vida, a Morte e o Futuro.



terça-feira, agosto 12, 2008

EM MEMÓRIA


Nos passos finais do percurso que me levou a reflectir sobre o cinema de Hitchcock durante mais de 150 semanas, parece-me pertinente não deixar de nomear um número específico de pessoas. São as personalidades do universo de Alfred Hitchcock que faleceram entre Junho de 2005 e Agosto de 2008, o período em que este blog esteve activo.

Estão aqui 25 nomes mas outros, hitchcockianamente importantes, terão morrido enquanto este blog progredia no seu passo lento, aparentemente apático mas profundamente consciente.

Para todos eles, porque cada um ofereceu o seu contributo próprio aqui fica a minha homenagem.

BARBARA BEL GEDDES – Faleceu a 8 de Agosto de 2005 e fiz referência directa ao seu desaparecimento no comentário daquela semana. Representou um sensibilizante papel em «Vertigo» encarnando a mulher simples e pouco sensual, apaixonada pelo protagonista.
Era uma actriz sóbria e convincente. A sua presença, pelo que tem de transparente e verdadeiro, opõe-se à de Kim Novak com todo o seu misticismo e magnetismo desconcertante.
O papel de Midge era perfeito para ela. E ela nunca se importou em oferecer autenticidade ao seu papel mesmo que isso significasse ter uma presença mais discreta e muito menos «glamourosa».
Hitchcock sempre gostou de a ver trabalhar. Barbara Bel Geddes também brilhou na série «Alfred Hitchcock Apresenta», nomeadamente num episódio da 3ª temporada («Lamb To The Slaughter») em que mata o marido e oferece aos polícias, como jantar, a arma do crime: uma perna de carneiro.

HENRY BUMSTEAD faleceu a 24 de Maio de 2006. Era um veterano «production designer» (decorador) que trabalhou durante décadas em Hollywood, com grandes cineastas e em grandes filmes.
O papel de um «production designer» passa pelo estudo, decoração e tratamento dos espaços onde as filmagens decorrem. Na procura da autenticidade ou do espírito que se quer imprimir ao filme. É um trabalho de pesquisa, de adequação dos cenários e dos locais reais aos contextos de cada argumento.
Bumstead ganhou Óscares por «To Kill a Mockingbird» (1962) e por «A Golpada» (1973). A sua longa associação a Clint Eastwood levou-o a trabalhar repetidas vezes para ele, nomeadamente em «Imperdoável» (1992), «Mystic River» (2003), «Million Dollar Baby» (2004), «Flags of Our Fathers» (2006) e «Letters from Iwo Jima» (2006). Pelo seu brilhante trabalho em «Vertigo» (1958), também obteve uma nomeação para um Óscar. Trabalhou numa produção absolutamente miserável chamada «Psico III» (que como o nome indica é uma segunda sequela do filme de Hitch).
Bumstead contava como havia percorrido inúmeras ruas de S. Francisco em busca dos locais ideais para as cenas de «Vertigo». Hitchcock sempre gostou do seu arguto poder de observação.
Morreu com 91 anos. Participou em mais de cem filmes. Para Hitchcock também trabalhou em «O Homem Que Sabia Demais» (1956), «Topázio» (1969) e «Intriga em Família» (1976).

LARAINE DAY morreu a 10 de Novembro de 2007. Nunca foi uma estrela maior até porque, quando vinculada à MGM, era remetida para papéis desinteressantes. Alfred Hitchcock parece que gostou dela e pediu-a emprestada àquele estúdio para interpretar a protagonista de «Correspondente de Guerra» (1940) ao lado de Joel McCrea.
Laraine Day trabalhou com Cary Grant, Gary Cooper, John Wayne ou Spencer Tracy mas permaneceu muito ligada ao seu desempenho em sete filmes do personagem Dr. Kildare. (Os filmes protagonizados por Lew Ayres deram origem a uma famosa série dos anos 60 com Roger Moore). Laraine Day morreu com 87 anos.

HANSJÖRG FELMY faleceu a 24 de Agosto de 2007 (com 76 anos). Era um veterano actor alemão. Em «Cortina Rasgada» (1966), filme onde participam vários actores muito competentes em papéis secundários, fez o papel do sinistro Gerhard. É ele que acolhe Paul Newman e Julie Andrews em Berlim Leste; e é ele mesmo que os persegue na cena final, no espectáculo de Ópera. O elenco de «Cortina Rasgada» é um dos maiores trunfos do filme. Hansjörg Felmy é, a seu modo, quase tão temível e perturbante como Gromek – o homem morto de modo macabro a meio da narrativa.

PETER HANDFORD faleceu a 6 de Novembro de 2007. Era um veterano técnico de som. No seu extenso currículo, estão «África Minha» (1985), «Tom Jones» (1963), «Crime no Expresso do Oriente» (1974) e «Ligações Perigosas» (1988).
Para Hitchcock, trabalhou em «Sob o Signo do Capricórnio» (1949) e «Frenzy» (1972). Sempre se referia a Hitchcock como muito metódico, quase exageradamente escravo dos seus planeamentos.

TEDDY INFUHR teve um desempenho curto mas simbólico no cinema de Hitchcock. Era o miúdo acidentalmente morto pelo irmão em «Casa Encantada» (1945). Numa cena muito pequena mas determinante. No filme de Hitchcock, não chega a dizer uma palavra. Mas depois participou em muitos filmes, alguns deles de grande qualidade e fama. Como «Os Melhores Anos das Nossas Vidas» (1946), «O Rapaz do Cabelo Verde» (1948) e «Sementes de Violência» (1955).
Morreu a 12 de Maio de 2007, com 70 anos.

CLAUDE JADE era uma actriz que François Truffaut descreveu a Hitchcock como sendo de algum modo parecida com Grace Kelly. Em «Topázio», representou o papel da filha ansiosa de um agente secreto francês. Faleceu a 1 de Dezembro de 2006. Com 58 anos de idade. Nunca veio a ser uma loira glacial de Hitchcock – como Tippi Hedren ou Kim Novak – mas podia ter sido.

LLOYD LAMBLE morreu com 94 anos, a 10 de Abril deste ano. Era um grande actor secundário do cinema britânico. Na verdade, era australiano e diz-se que deixou o seu país depois de ter sido associado ao comunismo. Fez um pequeno papel em «O Homem Que Sabia Demais» (1956).

EVAN HUNTER foi o argumentista de «Os Pássaros». Era um célebre escritor de livros policiais que assinava também como o nome Ed McBain. Trabalhou muito no argumento de «Marnie» mas discordava de Hitchcock em relação à cena em que Sean Connery se deita abusivamente com Tippi Hedren. Hunter considerava a cena indecorosa e antipática. E no seu entender, o público não gostaria dela. Acabou abandonando o projecto.

PHILIPPE NOIRET era um grande actor francês. Brilhou em «Cinema Paraíso» (1988) e em «O Carteiro de Pablo Neruda» (1994). Era versátil e participou em imensos filmes. Integrou o elenco de «Topázio», ao lado de outro actor francês, Michel Piccoli.

JOSEPH PEVNEY dirigiu 5 episódios da série «The Alfred Hitchcock Hour». Era um realizador veterano na área da Televisão. Trabalhou em «Casei com uma Feiticeira» e foi um emblemático director de episódios do «Caminho das Estrelas». Faleceu no passado dia 18 de Maio, com 97 anos.

SUZANNE PLESHETTE foi a professora de «Os Pássaros». Era uma actriz morena e atraente. A sua participação num episódio de «Alfred Hitchcock Apresenta» atraiu a atenção do público e de pessoas influentes. Nunca foi uma estrela maior de Hollywood mas a sua presença nos filmes era convincente e sincera. Morreu no passado dia 19 de Janeiro. Com 70 anos – vítima de um cancro num pulmão. Curiosamente, em «Os Pássaros», vemo-la fumar compulsivamente.

LEONARD ROSENMAN compôs música para «The Alfred Hitchcock Hour» nos anos 1964/65. E também para a clássica série «The Twilight Zone». Também compôs para Cinema. Morreu no passado dia 4 de Março, com 83 anos.

PETER GRAHAM SCOTT foi um notável produtor, realizador, editor de imagem e argumentista. Dizem que foi responsável por levar Diana Rigg ao papel da sedutora Sra. Emma Peel em «Os Vingadores» – série clássica dos anos 60. A título de curiosidade, registe-se que Scott interpretou um pequeno papel em «Jovem e Inocente» (1937) de Hitchcock. Tinha então 13 anos. Morreu a 5 de Agosto de 2007, com 83 anos.

JOSEPH STEPHANO foi o argumentista de «Psico». O homem que adaptou o romance de Robert Bloch (inspirado num caso verídico) para o universo cinematográfico de Hitchcock. Morreu com 84 anos, a 25 de Agosto de 2006.
Prestou depoimentos extensos sobre o seu trabalho para Hitchcock e é pontualmente difícil discernir se certas particularidades da história de «Psico» foram criação sua ou resultado do génio imaginativo de Hitchcock. Certo é que foi responsável pela enorme dimensão humana dos personagens do filme.

GEORGE TABORI, dramaturgo e encenador, foi o argumentista de “Confesso” (1952). Morreu a 23 de Julho de 2007. Com 93 anos. A história de «I Confess» é muito interessante no contexto das temáticas hitchcockianas: conjuga suspense, crime, culpa e religião, quatro temáticas importantes na personalidade do Mestre. O resultado final é negro e pontualmente morno mas relevante.

JAY PRESSON ALLEN foi a argumentista de «Marnie». Substituiu Evan Hunter quando este abandonou a produção do filme. Era uma notável adaptadora de livros e de peças teatrais para Cinema. Concebeu o argumento cinematográfico de «Cabaret» (1972) com Liza Minelli e também o de «Princípe da Cidade» (1980) do realizador Sidney Lumet.
«Marnie» foi o seu primeiro argumento. A segunda metade do filme é, na minha opinião, decepcionante. Mas a culpa pelas falhas do filme não terá sido exclusivamente da argumentista. A história partia de um livro e Hitchcock parecia saber muito bem como a contar. Ainda que o suspense falhe rotundamente. E aquele conceito de Psicanálise soe a uma série de teorias simplistas e primárias. Felizmente, «Marnie» tem uma bela fotografia e uma grande banda sonora.

ERNEST LEHMAN foi o brilhante argumentista de «Intriga Internacional» (1959). Era um homem que sabia conjugar a emoção das histórias com a humanidade dos personagens. Era versátil e pegava em trabalhos completamente distintos; como «Música No Coração» (1965) e «Quem Tem Medo de Virginia Wolf» (1966).
Hitchcock gostava muito de Lehman. O sucesso de «Intriga Internacional» (com a sua teia trepidante de acontecimentos narrativos) levou o Mestre a convidá-lo depois a escrever o argumento do seu derradeiro filme, «Intriga em Família» (1976).

PATRICK ALLEN morreu com 79 anos, a 28 de Julho de 2006. Foi detective em «Chamada Para a Morte» (1954), ao lado de John Williams. Era particularmente conhecido pela sua voz, a voz que emprestou durante mais de trinta anos a trailers publicitários.

RAY EVANS partilhava os créditos de composição musical com Jay Livingston. Juntos escreveram mais de 400 canções, num longo espaço de 64 anos. O maior sucesso deles terá sido «Que Será Será» importalizado por Doris Day em «O Homem Que Sabia Demais» (1956). A canção tinha uma função estratégica no filme e converteu-se num sucesso mundial. Foi também galardoada com o Óscar.
«Monalisa» foi outro enorme êxito da dupla. Ouvimo-la em «Janela Indiscreta» embora não tenha sido composta para esse filme. Para «Cortina Rasgada», foi concebida uma canção de Evans e de Livingston. Tinha um carácter promocional. O tema está incluído no CD com a banda sonora de John Addison. (Mas curiosamente não é cantado por Julie Andrews, a estrela do filme, nem ninguém considerou essa hipótese.)

ALIDA VALLI foi a protagonista de «O Caso Paradine» (1947). Era muito bela e emprestou dignidade e mistério ao papel da jovem e distinta mulher acusada de um crime. Hitchcock não se entendeu muito bem com ela porque Valli lhe havia sido imposta pelos produtores. Ninguém gosta de imposições. Muito menos gostava Hitchcock.
Alida Valli trabalhou com Visconti, Antonioni, Pasolini e Bertolucci. Era uma estrela maior do cinema italiano. Morreu com 84 anos, a 22 de Abril de 2006.

ROSCOE LEE BROWNE era actor e compôs seis décadas de versatilidade interpretativa. Em «Topázio», era um espião que trabalhava publicamente como florista. Morreu a 11 de Abril de 2007. Com 81 anos.

WILLIAM TUTTLE era um perito em maquilhagem e caracterização. Foi chefe do departamento daquela área, na MGM, entre 1950 e 1969. Para Hitchcock, trabalhou em «Intriga Internacional». Participou em mais de 300 filmes, alguns deles clássicos imortais: «Gata em Telhado de Zinco Quente» (1958), «Show Boat» (1951) ou «Serenata à Chuva» (1952) entre muitos outros…
Morreu com 95 anos, a 27 de Julho de 2007.

PETER VIERTEL escreveu o argumento de um grande filme de espionagem e acção do Mestre Hitchcock: «Sabotagem» (1942). Aquele que termina com o vilão suspenso das alturas da Estátua da Liberdade. Escreveu também o argumento de «A Rainha Africana» (1951) de John Huston.

JANE WYMAN faleceu a 10 de Setembro de 2007, com cerca de 90 anos. A actriz foi protagonista de «Pavor nos Bastidores» (1950) mas acabou sendo encoberta pela presença de Marlene Dietrich. Um dos seus maiores desempenhos foi o de «Belinda – A Escrava do Silêncio». Nesse filme, vestia a pele de uma surda-muda incapaz de explicar que a sua gravidez era resultado de uma violação. O papel levou-a à conquista do Óscar em 1948.
«Pavor nos Bastidores» é um filme menor de Hitchcock e o papel de Jane Wyman tem pouco de atractivo a priori e a posteriori. O grande sucesso, encontrou-o ela em melodramas do cineasta Douglas Sirk.

quinta-feira, agosto 07, 2008

HITCHCOCK E O NAZISMO





Cerca de uma década antes de surgir a sua primeira série televisiva (com episódios autónomos de menos de trinta minutos), Alfred Hitchcock viveu uma experiência particular. Em 1944, concordou realizar dois pequenos filmes de carácter propagandístico e em apoio aos heróis e às vítimas da 2ª Guerra Mundial. Pequenos filmes com cerca de meia hora, cada um. Constituiram uma importante incursão de Hitchcock na narrativa cinematográfica de histórias de curta duração.

Na época, Hitchcock já se tinha mudado para os Estados Unidos onde trabalhava para o produtor David O Selznick. Encontrava-se a cimentar o desenvolvimento da ideia de “A Casa Encantada” quando aceitou vir propositadamente à Europa para realizar «Boa Viagem» e «Aventura Malgaxe». Em Janeiro e Fevereiro de 1944, Hitchcock encontrou-se de volta ao seu país natal.

Aqueles dois filmes produzidos em Inglaterra, com a participação e o contributo directo de actores e técnicos de língua francesa, serviriam potencialmente de promoção de um certo espírito anti-belicista e anti-nazi ou quem sabe para enaltecimento dos heróis de guerra dos países aliados.

De facto, Hitchcock admitiu. Era demasiado gordo e velho para se alistar nos exércitos das frentes de batalha. Mas poderia combater na guerra, usando as suas próprias armas: os instrumentos que faziam dele um hábil e famoso cineasta.

O resultado final não é tão propagandístico quanto isso. As duas curtas-metragens que foram já editadas em DVD (e que passaram num programa de Catarina Portas no canal 2 da RTP há poucos anos) parecem mais histórias de aventuras, espionagem e traição. Não encontro nelas, claras mensagens políticas.

«Boa Viagem» é um filme mais interessante. A sua história é narrada mediante flashbacks que reconstituem os acontecimentos tal e qual como peças de um puzzle. A ideia da personagem sósia (que não é quem julgávamos que fosse) foi muito trabalhada no cinema de Hitchcock. No final, a sucessão dos acontecimentos é revista e verificamos que tudo o que sucedeu só obteve concretização a partir de um plano meticulosamente preparado. Tal como noutros enredos tipicamente hitchcockianos.

A morte chocante da jovem vítima da resistência é possivelmente o momento mais intenso da história. Quase que parece anteceder o frio assassinato de Juanita num outro filme muito político que Hitchcock viria a realizar no contexto cubano, «Topázio» (1969).

A verdade é que se Hitchcock procurava veicular uma mensagem sociológica ou anti-nazi nos dois pequenos filmes de 1944, o seu intuito surge dissimulado ou esbatido. Parece antes que o realizador trabalhou aqui histórias de espionagem num registo de entretenimento próximo do de qualquer filme seu do género. Explorando o dramatismo das situações e deliciando-se a narrar os acontecimentos mediante jogos de aparências.

Neste universo, os espiões e os contra-espiões representam os seus papéis (tal e qual como actores) no desejo de adoptar uma identidade falsa que os fará ludibriar a acção dos inimigos. No caso de «Aventura Malgaxe», há uma confrontação entre o mundo dos espiões num palco de guerra mundial e o camarim dos actores de uma companhia teatral. Afinal, um espião é um actor. Engana, dissimula, representa um papel que não corresponde ao da sua identidade própria.

Enquanto contasse histórias de espiões, Hitchcock estava no seu campo de batalha próprio. Era senhor desse campo de batalha. De modo espontâneo e porque o tempo o firmou como mestre desse tipo de histórias.

Resta apenas apurar se o esforço de produção e realização destas obras terá sido meritório e proveitoso, na medida em que, durante décadas, poucos espectadores as viram e hoje, mais de sessenta anos depois, nada de muito engenhoso ou emocionante sobressai delas. Foram esquecidas no tempo e não brilham nos nossos dias pela sua excelência nem pela sua genialidade ímpar. São antes documentos históricos, feitos numa época precisa por um homem influente.

As duas curtas-metragens de 1944 não parecem funcionar como filmes de propaganda onde tudo é simples e directo. Pelo contrário, nestes filmes há uma visão ambígua dos personagens que não ajuda a veiculação de uma mensagem evidente e sem meios-termos.

O mesmo não se poderá dizer do documentário com imagens reais retiradas de campos de concentração nazis e que Hitchcock editou. Chamam-lhe o filme de Hitchcock sobre o Holocausto. O produtor Sidney Bernstein (amigo pessoal de Hitchcock e que produziria mais tarde para ele «A Corda» (1948) e «Sob o Signo do Capricórnio» (1949)) trabalhava então para o governo britânico. O Ministério da Informação foi incumbido de produzir um documento que apresentasse filmagens nos campos, imediatamente após a Libertação, em 1945.

O resultado traduziu-se em centenas de milhares de metros de filme; imagens captadas directamente de cerca de 5000 campos. O propósito era criar um relato objectivo, cru e sem artificialismos, que fosse suficientemente poderoso para alertar as pessoas para os métodos de terror usados pela política nazi.

Aquelas imagens eram de uma violência extrema. Alertavam para a estupidez da ideologia nazi e para a perversão da maldade humana. Seria inconveniente mostrá-las. Mas o governo britânico e os técnicos do filme não procuravam meias verdades. Enquanto denunciassem a extensão da tragédia, poderiam também mostrar àqueles que lutaram contra a Alemanha que a sua luta fôra importante. E que cenários daqueles nunca mais se deveriam repetir.

Havia todo o interesse em levar aquelas filmagens à população alemã para que tomasse consciência plena das atrocidades levadas a cabo pelo governo de Hitler e pela sua ideologia macabra.

Sidney Bernstein chamou Hitchcock para que este montasse as imagens. Procurava alguém que fosse capaz de provar a autenticidade daqueles cenários tenebrosos, que mais pareciam o resultado delirante de uma mente enlouquecida.

Hitchcock procurou mostrar planos amplos que mostrassem que não havia artificialismos nem truques baratos naquelas imagens. Os corpos dos mortos misturavam-se com o da gente viva. Mortos e vivos nus, privados de toda a dignidade humana. Homens, mulheres e crianças tratados como lixo.

O documento, tal como foi editado, permaneceu oculto durante quarenta anos. Parecia particularmente difícil mostrá-lo às audiências. Viviam-se os meses do pós-guerra e ninguém queria arriscar sensações perigosas ou sentimentos de revolta. Os cinemas convidavam as plateias para entretenimentos que causassem alegria, esperança ou riso. As memórias dos campos de concentração filmadas pelos técnicos do governo britânico acabaram armazenadas num armário. Mais precisamente, nos arquivos do Imperial War Museum, em Londres.

Em 1985, o filme montado passou na televisão britânica com o nome «A Painful Reminder». Anos depois apareceu em DVD com o título «Memórias dos Campos» (no original «Memory of The Camps»). Agora pode ser visto na Internet.
Trata-se de um filme que envolve o trabalho de vários operadores de câmara, técnicos e profissionais do cinema. Uma obra que apresenta uma orientação definida e comentada por um discurso em «voz-off». O actor Trevor Howard lê o guião que fora concebido por Sidney Bernstein e seus colaboradores.

Agora as «memórias dos campos» podem ser visitadas por toda a gente. Este é um documento brutal e que exige alguma preparação por parte do espectador. Tal como os seus mentores pretenderam fazer dele, é um registo que nos mostra sem delicadezas os horrores do Holocausto levados a um extremo inconcebível. Nunca em nada que Hitchcock tivesse feito, a maldade, a insensatez e a perversão humana haviam sido tão claramente mostrados.
Pela primeira vez, Hitchcock editava imagens reais. A verdade acerca dos campos de concentração deixou-o deprimido e impressionado. O seu contributo para o filme foi importante. Mas raramente ele falava deste projecto. O assunto era demasiado delicado. E monstruoso.

(1945, 53 minutos; Hitchcock é creditado como técnico editor)

quarta-feira, julho 16, 2008

AS APARIÇÕES DE HITCHCOCK NOS SEUS FILMES





Falar dos filmes de Hitchcock implica fazer referência a um tipo específico de cinema: a soma de ingredientes peculiares doseados segundo uma fórmula única. Costumo dizer que Hitchcock usou a mesma receita para compor histórias de estilos muito diferentes. Filmes diferentes unidos por particularidades comuns. A aparição curta de Hitchcock nos seus filmes tornou-se, com o decorrer dos anos, uma regra emblemática que ele aprendeu a respeitar com zelo e ironia.

Num filme de Hitchcock, o rotundo Mestre do Suspense pode teoricamente aparecer em qualquer cena, vindo de qualquer zona do ecrã. E de facto, a imagem dele está impressa no celulóide da maioria das suas obras, embora nem sempre haja certezas concretas quanto a pormenores de filmes mais antigos. De modo corrente, Hitchcock só surge na imagem de um filme uma única vez.

A aparição do realizador provoca um estranho impacto. Gera-se o confronto entre o universo da ficção e o do mundo real, na medida em que Hitchcock é uma figura real inserida no filme. É uma figura que as pessoas conhecem e que tanto tem cabimento dentro do filme como fora dele.

Inicialmente, Hitch fazia aparições pontuais diante das câmaras para poupar trabalhos e despesas. Se havia necessidade de um figurante, ele mesmo se predispunha a ocupar o lugar.

Lentamente, este procedimento converteu-se numa brincadeira e quase num ritual. Às vezes, Hitchcock não tinha cabimento em nenhum contexto da história. Então, providenciavam-se soluções. O anuncio num jornal que aparece em cena. Um retrato ou um pormenor visual no cenário.

Na verdade, as pessoas começaram a dedicar tanta da sua atenção à busca da figura do realizador que algo indesejado tendia a ocorrer: elas afastavam o pensamento da intriga do filme. A trama central era a alma de cada filme e a razão de ser da sua existência. No processo de construção do suspense e da ansiedade, não convinha que pormenores secundários viessem a funcionar como factores contraproducentes. Hitchcock e os seus conselheiros sentiram isso. Então, começou a conceber-se a aparição de Hitchcock para a fase inicial dos filmes. Para que quando vissem Hitchcock, as audiências deixassem de o procurar. Em muitas obras, Hitchcock aparece logo nos primeiros minutos.

O chamado «cameo appearance» é definido no dicionário Michaelis como «descrição ou representação teatral curta que mostra de maneira inteligente uma situação ou a personalidade de uma pessoa». Este conceito parece adequar-se na perfeição ao modelo das aparições de Hitchcock. Ele nunca profere uma palavra em cena. O momento em que aparece não dura mais do que alguns segundos. A sua presença é muito irónica e quase jocosa (feita portanto à semelhança da imagem que temos dele).

As aparições de Hitch não são como as de outros realizadores. Nunca como as de Orson Welles ou Charles Chaplin que protagonizavam filmes seus, conferindo dramatismo e autenticidade aos seus papéis. Nunca como Jacques Tati que quase não falava diante das câmaras mas que tem no seu cinema um desempenho físico ou corporal absolutamente nuclear. Nunca como Woody Allen ou Clint Eastwood que são autores de primeiro plano e gostam de interpretar papéis importantes nas suas obras. Woody Allen é sempre irritantemente igual a si próprio e Eastwood tem sérias limitações interpretativas mas eles impõem sistematicamente as suas figuras nos filmes que fazem. Talvez só mesmo Shyamalan utilize uma fórmula semelhante, insistindo em aparecer em pequenos papéis que desempenha, satisfazendo um capricho próprio.

De resto, Martin Scorsese, Sidney Polack, David Lynch e muitos outros também surgem em imagens de filmes seus ou de outros realizadores. Mas nunca num intuito metodicamente definido e respeitado. Hitchcock era talvez o único realizador do seu tempo que as audiências reconheciam com facilidade. A sua imagem era propagada nas campanhas publicitárias dos filmes e tornou-se ainda mais difundida através das séries de televisão. Ele era famoso como um actor. Era uma estrela de cinema numa época em que só os actores eram estrelas.

A ironia de Hitchcock surgir misturado com os seus personagens pode ser lida de muitas formas. A mais interessante delas será conceber que Hitchcock se considerava ele mesmo uma vítima do medo e do suspense. Tal e qual como os heróis e as frágeis vítimas cujas histórias ele contava em filme. O rapazito que aprendera a ter medo do castigo e a angustiar-se com a espera desse castigo estava ali. E não seria tão diferente dos homens e mulheres que lutavam pelas suas vidas nos enredos das suas películas. Hitchcock sabia o que era o medo e a angústia. O universo dos seus filmes pertencia-lhe e ele não existia senão nele.

Mergulhando na filmografia de Hitchcock, verificamos que a sua imagem surge em quase todos os filmes. A seguinte lista mostra-nos um sumário dessas aparições. E o pequeno filme posto no YouTube propõe-nos uma montagem elucidativa.

«O INQUILINO SINISTRO» (1926): À secretária, numa sala de redacção; e mais tarde, no meio da multidão, a observar a detenção de uma pessoa.

«CHANTAGEM» (1929): Sendo incomodado por um rapaz pequeno, enquanto lê um livro no metro. Considero esta aparição uma das mais cómicas de todas.

«ASSASSÍNIO» (1930): Caminhando à frente da casa onde o crime foi cometido, já o filme tinha começado há cerca de uma hora.

«OS 39 DEGRAUS» (1935): Caminha também numa rua.

«JOVEM E INOCENTE» (1937): À saída do Tribunal, segurando uma câmara, de forma desajeitada.

«A DESAPARECIDA» (1938): Quase no termo do filme, passa na gare da estação de comboios de Londres, usando um casaco preto e fumando um cigarro.

«REBECCA» (1940): Caminhando próximo da cabine telefónica, na parte final do filme, quando George Sanders faz uma chamada.

«CORRESPONDENTE DE GUERRA» (1940): No início da história, depois de Joel McCrea deixar o seu hotel, usando um casaco e um chapéu e lendo um jornal.

«O SR. E A SRA. SMITH» (1941): A meio do filme, passa por Robert Montgomery em frente do seu prédio.

«SUSPEITA» (1941): Colocando uma carta no marco do correio, a 45 minutos do princípio do filme.

«SABOTAGEM» (1942): Numa rua, em Nova Iorque, assim que o carro do sabotador pára; a meio do filme.

«MENTIRA» (1943): No comboio para Santa Rosa, jogando às cartas. Curiosamente, tem as cartas todas do naipe de espadas.

«UM BARCO E NOVE DESTINOS» (1944): Num anúncio a uma dieta que é mostrado num jornal; vemos uma fotografia de Hitch muito gordo e outra dele, bastante menos pesado.

«CASA ENCANTADA» (1945): Saindo de um elevador no Hotel Empire, carregando uma caixa de violino e fumando um cigarro.

«DIFAMAÇÃO» (1946): Na grande festa em casa de Claude Rains, bebendo champanhe de modo muito descontraído (por oposição aos protagonistas que vivem um momento tenso) e depois afastando-se.

«O CASO PARADINE» (1947): Saindo do comboio e transportando um violoncelo.

«A CORDA» (1948): A sua imagem de marca (a silhueta que ele desenhou como auto-retrato) pode ser vista momentaneamente num placard de néon, a partir da janela do apartamento onde decorre toda a acção do filme. Há quem defenda que ele pode ser visto na cena inicial, a caminhar na rua, ao lado de uma mulher.

«SOB O SIGNO DO CAPRICÓRNIO» (1949): Na praça, durante uma parada, vestindo um casaco azul e um chapéu castanho, logo cinco minutos após o início do filme. Dez minutos depois, ele é um dos três homens nos degraus do Parlamento. A acção do filme decorre no século XIX e as roupas de Hitchcock parecem não só estranhas para ele, como para o contexto em que se encontra.

«PÂNICO NOS BASTIDORES» (1950): Volta-se para trás para olhar para Jane Wyman, quando ela vai na rua disfarçada. É o realizador a observar uma personagem a fazer-se passar por outra.

«O DESCONHECIDO DO NORTE-EXPRESSO» (1951): Entrando para um comboio com um contrabaixo, enquanto Farley Granger sai do comboio (na estação da sua terra); logo no início do filme.

«CONFESSO» (1952): Atravessando o topo das escadas, depois do genérico. Um sinal aponta para uma direcção e ele caminha exactamente na direcção oposta.

«CHAMADA PARA A MORTE» (1954): Na fotografia antiga que está na moldura; nela vemos uma reunião de antigos colegas da escola e Hitch está sentada à mesa, do lado esquerdo.

«JANELA INDISCRETA» (1954): Mexendo nos ponteiros do relógio, no apartamento do pianista; a meio do filme.

«LADRÃO DE CASACA» (1955): Aos dez minutos, sentado à esquerda de Cary Grant num autocarro.

«O TERCEIRO TIRO» (1955): Passando perto da limusina de um velho milionário que contempla os quadros expostos.

«O HOMEM QUE SABIA DEMAIS» (1956): Observando os acrobatas no mercado marroquino, de costas para a câmara e do lado esquerdo da imagem; logo antes do assassinato.

«O FALSO CULPADO» (1957): Fazendo o discurso de apresentação do filme, logo após o genérico.

«A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES» (1958): Cruza-se na rua com James Stewart, onze minutos após o genérico.

«INTRIGA INTERNACIONAL» (1959): Perdendo um autocarro, na conclusão do genérico.

«PSICO» (1960): Está à entrada do escritório onde Janet Leigh trabalha; vemo-lo através do vidro usando um chapéu de cowboy.

«OS PÁSSAROS» (1963): Deixando a loja de animais e levando dois cães pequenos consigo; cruza-se com Tippi Hedren que entra na loja. A cena ocorre imediatamente após o genérico.

«MARNIE» (1964): Surge na imagem, num corredor de Hotel, quando Tippi Hedren vai em direcção ao seu quarto.

«CORTINA RASGADA» (1966): Está sentado no átrio do Hotel d’Angleterre com um bebe loiro ao colo; o bebé urina-lhe numa perna; ele limpa-se discretamente.

«TOPÁZIO» (1969): Vai sentado numa cadeira de rodas e é empurrado por uma enfermeira. Ele levanta-se da cadeira, aperta a mão a um homem e caminha para a direita.

«PERIGO NA NOITE» (1972): No centro da multidão, com um chapéu. As pessoas estão a ouvir o discurso de um orador. Todas o aplaudem menos Hitchcock.

«INTRIGA EM FAMÍLIA» (1976): Vemos a silhueta dele através do vidro grosso e fosco de uma porta; a meio do filme.

sábado, julho 12, 2008

PATRICIA HITCHCOCK COMPLETOU 80 ANOS




Gostaria de ter sido actriz mas o seu pai nunca a encorajou determinantemente a seguir as passadas dessa vocação natural. Talvez fosse mesmo verdade que Hitchcock acreditasse na ironia com a qual gracejava: «Uma actriz não é uma mulher respeitável».
A perspectiva de ver a filha beijar inúmeros homens diante das câmaras e potencialmente a recriar comportamentos que o desagradassem não o deixaria entusiasmado nem feliz.
Deveria encontrar-se uma melhor forma de vida para Patricia. Ela brincou um pouco com a ideia de ser actriz. E parece que gostou. Mas não parecia particularmente talentosa nem era muito bonita.

Obteve uma graduação no Marymount High School em Los Angeles mas quis participar nos palcos americanos e ingleses. Podemos vê-la em «Pânico nos Bastidores» (1950) ao lado de Jane Wyman; em «Desconhecido do Norte Expresso» (1951) como a irmã da amante de Farley Granger – aquela que, com os seus óculos de lentes grossas, se parece de modo crasso com a vítima do assassino. E em «Psico» (1960) como a pitoresca colega de Janet Leigh.

Patricia Hitchcock participou numa dezena de episódios da série televisiva do pai, «Alfred Hitchcock Apresenta». Fez aparições fugazes e discretas em filmes como «The Mudlark» (1950) de Jean Negulesco ao lado de Alec Guiness e«Os Dez Mandamentos» (1956) de Cecil B. DeMille.

Hoje permanece a grande herdeira financeira do legado de Hitchcock. Ela e a sua família são detentoras de grande parte dos direitos dos filmes. E, como se sabe, eles são constantemente repostos nas televisões e reeditados no mercado.

Faz depoimentos em muitos dos documentários sobre Hitchcock, falando dele, da sua personalidade e dos seus filmes. Também escreve. É co-autora do livro «Alma: A Mulher por detrás do Homem», sobre a sua mãe, em parceria com Laurent Bouzereau.
Lê o que outros escrevem e sentencia palavras de promoção aos livros sobre Hitchcock de que gosta ou que considera que têm valor. Costuma dizer (já a ouvi referir em várias circunstâncias): «O segredo do sucesso do cinema do meu pai é que ele trabalhava sempre a pensar no prazer das audiências

Patricia não parece interessada em fazer grandes abordagens de contéudo crítico à obra de Hitchcock. Nem parece saber muito de Cinema ou de filmes. Aquilo que ela melhor poderá pronunciar é como foi ser filha desse homem tão peculiar – que se converteu num ícone do século XX.

Dos palcos da Broadway em produções como «Solitaire» (1942) e «Violet» (1944) até ao casamento com Joseph O’ Connel, em 1952, houve uma viragem na sua perspectiva de vida. Converteu-se numa ilustre dona de casa, mãe de três filhas e depois avó.

Patricia fez 80 anos no passado dia 7 de Julho. Nasceu em 1928 na Grã-Bretanha e mudou-se com os pais para Hollywood, em 1939 quando Hitchcock foi convidado por David O. Selznick para realizar «Rebecca». No percurso da sua carreira cinematográfica, os momentos em que trabalhou com o pai ainda serão os mais significativos.
Conta-se que no termo das gravações de um episódio da série televisiva de Hitch, ele terá gostado tanto da sua participação que terá sentenciado com um orgulho incontido: «Não foi mesmo bem esta jovem e talentosa actriz?»

domingo, junho 29, 2008

EU, CANDIDATO A ESCRITOR, ME CONFESSO


Em cima, Alfred Hitchcock com o escritor Evan Hunter - célebre autor de livros policiais e do argumento de "Os Pássaros" feito a partir de um conto da romancista inglesa Daphne Du Maurier

É uma situação recorrente as pessoas ouvirem-me narrar um certo diálogo que a minha professora primária travou comigo. Tinha eu então sete anos. A boa senhora de aspecto robusto e austero perguntou-me o que gostaria de ser. Os meus colegas tinham ideias bem definidas acerca dos seus objectivos futuros. (Pelo menos, assim parecia. Quando se está na 3ª Classe, existe uma enorme flexibilidade vocacional.)

Eu respondi com bastante prontidão. Queria ser escritor. Sabia que o trabalho que mais prazer me oferecia era o da escrita. Não sabia se um escritor podia viver bem ou mal, podia ganhar muito ou pouco. Se conversávamos sobre ambições na vida, desejaria escrever muito.

Como sou demasiado tímido, a escrita permite-me trabalhar dentro do meu mundo pessoal. E isso já me agradava então. Por outro lado, aprendera a escrever pouco depois dos quatro anos. Com o auxílio e dedicação da minha avó. Aos sete anos eu já era um veterano na arte.

Escrevia poesia (com rimas ou sem rimas). Contos e pequenas histórias. Construía relatos e comentários críticos aos programas que via na televisão. Tudo em jeito de brincadeira levada a cabo com algum profissionalismo e seriedade. Usava uma máquina de escrever alemã dos anos 50. E quando escrevia, embarcava no meu mundo próprio que cada vez mais adoptei como genuinamente meu.

Na realidade, querer qualquer coisa não significa conquistá-la. Ter ambições profissionais inatas não faz pressupor talento natural para um determinado trabalho. Para quase tudo na vida, é preciso empenhar muito tempo e muito esforço.

Li recentemente, uma entrevista feita ao famoso escritor Ray Bradbury. Ele sempre alimentou um fascínio particular pelo Cinema. Criou o argumento para vários filmes (entre eles “Moby Dick” de John Huston). E sempre revelou muito receio de adaptar para Cinema obras escritas por outras pessoas. Do mesmo modo que considerava infame a forma como certos argumentistas trabalharam livros seus.

Quase todas as pessoas escrevem. Algumas delas escrevem bem. Mas facilmente uma pessoa se consegue achar capaz de escrever um livro. Desde que aplique empenho e vontade – ou às vezes mesmo sem eles. Não existe essa presunção em relação ao trabalho de um compositor, de um engenheiro ou de um médico.

A situação é particularmente irritante no universo dos filmes. Porque todos parecem capazes de criticar o trabalho do argumentista. Muito mais prosaicamente do que o fazem em relação ao desempenho do editor de imagens, do set-designer ou do director de fotografia. Esse pormenor irritava Ray Bradbury.

O meu mais nobre e altruísta objectivo enquanto criador de escrita (não direi escritor) seria ajudar os outros. A actividade de um escritor pode ser decisiva para os seus leitores: ela pode contribuir para o bem-estar deles através de textos tecidos mediante estratégias precisas. Oferecer lições de vida, ensinamentos. Contar histórias fascinantes que conseguem prender um livro às mãos como se tivesse cola. Agarrar a atenção de quem lê com relatos de fazer suster a entrada de ar nos pulmões e de eliminar todo o sono e toda a fome. Permitir partilhar sabedoria ou pensamentos geniais emitidos por quem pensa de modo invulgarmente brilhante.

Meus amigos, confesso. Confesso que não devo ter muito para oferecer. Sinto-me às vezes demasiado cansado para transmitir bem-estar aos que me lêem. O tempo é pouco e passa depressa. As imposições da vida não nos deixam ocupar as horas de cada dia com aquilo que mais nos apaixona.

Serei um candidato a escritor. Mas não consigo ligar o botão de produção de escrita logo que me sento com a caneta na mão. Às vezes, quando começo a redigir qualquer coisa, já passou uma hora e não tenho tempo para brincar mais aos escritores. Gosto de pensar no prazer que a escrita me dá. Mas não posso tomar a escrita como uma obrigação profissional ou um dever moral.

Há tanta coisa no mundo acerca da qual vale a pena escrever. E há tanta coisa no universo da nossa imaginação que transcende esse mundo - mas que também é real nem que seja no nosso cérebro...

Caminho para os quarenta anos. E parece-me tão vaga a sensação de realização profissional. Só gostava de escrever tão bem quanto possível … Acerca de certas pessoas, de certas percepções da vida e de certos tesouros mundiais que enriquecem o património cinematográfico e a história de tudo o que foi o Cinema. Não será pena se um dia morrer e não tiver conseguido louvar na Vida o melhor que ela tem? Louvar por meio da escrita, que não sei fazê-lo de outra forma…

Este blog vai terminar no dia 13 de Agosto. Durante mais de três anos, procurei encontrar tempo na minha rotina diária para reflectir sobre o Cinema do Hitchcock. Mas deixei muito por dizer. Até porque tanto já foi dito acerca do Mestre do Suspense que não valeria a pena repetir ideias sentenciadas centenas de vezes pelo mundo fora…

Vou procurar aproveitar o tempo que falta. Com o calendário na extremidade da minha secretária. Contabilizando os dias para fazer uma boa gestão do material acerca do qual ainda devo escrever. O tempo não pára. Não pára para quem vive. Não pára para os heróis hitchcockianos que têm as suas vidas presas por um fio – ou que têm poucos segundos até a bomba explodir, ou serem descobertos, ameaçados, feridos ou mortos. Não pára para os escritores. Nem para os candidatos a escritores.

terça-feira, junho 03, 2008

«VERTIGO» HÁ CINQUENTA ANOS




A estreia de «Vertigo» foi há cinquenta anos. Mais precisamente, no dia 9 de Maio de 1958. Em São Francisco, a cidade onde decorre a acção do filme.
Cinco décadas depois, o filme de Hitchcock permanece intenso e é um belo exemplo de como a arte cinematográfica consegue seduzir de múltiplas formas. Pelo poder das imagens (em Hitchcock, o aspecto visual é preponderante), pela inteligência do argumento, pelo fascínio da música, pelos aspectos técnicos da montagem das cenas e do tratamento da cor; pela presença dos actores, pela ousadia técnica num período em que filmar a queda de um corpo ou a encenação visual de uma vertigem exigia perícia e «know-how».

Cinquenta anos depois, aqui deixo duas ligações para o Youtube: uma para o genérico do filme, outra para o trailer da reposição em cópia restaurada (tal como foi apresentado há cerca de uma década).

Considerado, por muitos, como o melhor filme do Mestre do Suspense; idolatrado por cinéfilos de todo o mundo que o ousam colocar na lista dos dez melhores de sempre, «Vertigo» é uma obra ímpar. Uma viagem ao universo da angústia e da obsessão. Um filme peculiar que desenvolve a sua intriga sob um suspense que tem muito mais de emocional e de psicológico do que trepidante e rocambolesco.

«Vertigo» representa um trajecto febril pelo patamar das emoções, dos sentimentos, das paixões que se convertem em obsessões e do amor que se converte em neurose. Trajecto que parece sinuoso e interminável. Como o desenho de uma espiral. Que pode ter tido início na cena em que o protagonista fica suspenso no telhado e só parece ter fim quando ele se debruça do alto do campanário (sem medo de perder nada talvez porque já tenha perdido tudo).

«Vertigo» mostra-nos que desejar qualquer coisa implica deduzir que ela existe de algum modo. Que o passado é tão real como o presente. Que o pesadelo angustia e assusta tanto como a realidade de quem está a dormir e a sonhar. Que a fronteira entre o que existe e o que se vê pode ser maior do que parece. Que amar é um sentimento vivo mesmo que signifique a paixão por algo que morreu (ou que, pior ainda, nunca existiu).

A um universo hipnótico e onírico, Hitchcock contrapõe o mundo de Midge – que não tem magia, nem fantasmas, nem sedução erótica; repare-se que nas cenas em que Midge aparece, não pontua a música assombrosa e apaixonada de Bernard Herrmann.

Hitchcock mostra-nos claramente que o fascínio de algumas das grandes emoções implica vertigens; que a abertura para a contemplação da beleza e do prazer pressupõe o conhecimento daquilo que é horrível ou doloroso. A paixão de Scottie por Madeleine é verdadeira mas perigosa. Bela mas venenosa. Romântica mas dissonante. Como a banda sonora de Herrmann.




terça-feira, maio 20, 2008

JAMES STEWART NASCEU HÁ CEM ANOS

JAMES STEWART (1908 - 2008)


Faz hoje cem anos que nasceu. Chamava-se James Maitland Stewart. Foi um dos mais consagrados actores americanos de sempre. Ganhou um óscar em "The Philadelphia Story" (1940) de George Cukor - uma comédia com Katharine Hepburn e Cary Grant. Mas eu não o esqueço em "A Loja da Esquina" do mesmo ano e realizado por Ernst Lubitsch e igualmente no clássico "Do Céu Caiu uma Estrela" (1946) de Frank Capra.

Foi igualmente notável em "Harvey" (1950) de Henry Koster onde representava um excêntrico homem cujo melhor amigo seria um coelho gigante que ninguém via. Ou em "Anatomia de Um Crime" (1959) de Otto Preminger, onde representava o papel de um advogado no cenário dramático de um tribunal.

Representou vários westerns mas nunca gostei muito de o ver encarnar papéis de cowboy. O melhor desses exemplos será "O Homem Que Matou Liberty Valance" (1962) de John Ford.

Mas claro que um dos melhores espaços de trabalhou que encontrou foi ao lado de Alfred Hitchcock. Para o cineasta do suspense, protagonizou quatro filmes, dois deles brilhantes ("Vertigo" e "Janela Indiscreta") outros dois bastante interessantes (o divertido "O Homem Que Sabia Demais" e o experimental "A Corda").

Penso que aquilo que mais me agrada na presença de Stewart é que representava brilhantemente o homem comum. Não me parece que tivesse grandes capacidades interpretativas. Não como Henry Fonda, Anthony Quinn, William Holden, Alec Guiness ou Burt Lancaster. Mas a postura de Stewart era convincente.

Não tinha um aspecto atlético nem conquistador. Parecia frágil, vulnerável, facilmente afectado pelas vicissitudes das intrigas hitchcockianas. Contrariamente a Cary Grant cujos papéis pareciam mais artificiais e eram muito menos dramáticos (porque no cinema de Hitchcock, Grant parecia conseguir vencer sempre as adversidades com moderada destreza). E quando Hitchcock quisera fazer dele um vilão (em "Suspeita") nem os produtores o consentiram.

A história da maior parte dos filmes de Hitchcock envolve homens e mulheres comuns. James Stewart parecia um deles. Era um deles. Mostrava-se genuíno na figura do homem que é vítima dos outros e de si próprio. E que sofre o drama das suas limitações e fraquezas. Stewart interpretava papéis complexos e que na generalidade não eram lineares. Esse foi um valioso contributo para o cinema de Hitchcock - facilmente o espectador se identifica com um homem vulnerável, que não é muito valente nem particularmente virtuoso. (Afinal, quem o mandou espreitar para as janelas dos vizinhos ou envolver-se pela suposta mulher de um pretenso amigo?)

quarta-feira, maio 14, 2008

1955: O ANO DA FELICIDADE

1) Os bosques da Nova Inglaterra

2) O genérico de "Terceiro Tiro" com o nome de Robert Burks
3) Uma cena de "Ladrão de Casaca"


A Hitchcock está usualmente associada a imagem de um cinema denso e dramático. Mais emocionalmente intenso do que idílico. É verdade que os seus filmes desenvolvem permanentemente as temáticas do suspense, do medo e do crime. Cenários visuais como os de “Rebecca” ou de “Psico” são sintomáticos do clima sombrio que ele construia com maestria e naturalidade no seio do seu trabalho.

Hitchcock gostava muito de filmar a preto-e-branco. O seu primeiro filme a cores, “A Corda” (1948) foi realizado dez anos depois de algumas das mais famosas produções em Technicolor. O clássico “E Tudo o Vento Levou” de 1939, produzido por David O. Selznick, é o retrato de uma indústria que se revigorava à passagem de cada década. Com o final dos anos 20 veio o som. No termo dos anos 30 desenvolveu-se categoricamente a fotografia a cores nos filmes.

Como parece lógico, há filmes que beneficiam mais particularmente dos recursos decorrentes de uma imagem multicolorida que pode ser trabalhada com tons mais intensos ou esbatidos. Em Hollywood, cedo se interiorizou um conceito mais ou menos explícito: um filme dramático beneficia da perspectiva sombria e nostálgica do preto-e-branco. Por isso, filmar a preto-e-branco persistiu como um procedimento corrente até à década de 60. E no domínio dos óscares (para referir o caso dos mais famosos prémios de Cinema), fazia-se a distinção entre o galardão para a Melhor Fotografia a Cores e o galardão para a Melhor Fotografia a Preto-e-Branco.

Nos anos 70 e 80, Woody Allen, Martin Scorsese, David Lynch e muitos outros cineastas notáveis recusariam a cor na fotografia de alguns dos seus filmes – em abono de uma interiorização psicológica maior ou da construção de retratos do mundo tão extremamente humanos como desumanos.

Hitchcock gostava de filmar a preto-e-branco e só muito depois de 1948 é que admitiu que a cor lhe oferecia mais recursos suplementares de trabalho.

Em 1955, encontramos dois filmes ligeiros na filmografia do Mestre do Suspense. São cómicos e imbuídos de ironia. Não têm um suspense de cortar a respiração nem uma intriga exemplarmente hitchcockiana. Mas, mais do que isso, um pormenor os parece ligar: a intensidade e beleza da cor.

Claro que me refiro a “Ladrão de Casaca” e “Terceiro Tiro”. Filmes com imagens de grande beleza cinematográfica e artística. O primeiro recebeu o Óscar para Melhor Fotografia – foi o único filme de Hitchcock a receber um óscar nessa categoria. O segundo enquadra uma trama «deliciosamente» macabra nas paisagens idílicas da Nova Inglaterra.

Nem importa que o suspense neste ano de 1955 não fosse de colar o espectador à cadeira. Parece que Hitchcock buscava inspiração num outro tipo de imagens – horizontes de paz, bosques esverdeados quase que aparentemente pintados numa tela (sem parecerem nada artificiais).

Naquele ano, Hitchcock parecia inclinado a criar cinema mais ligeiro e particularmente belo ao olhar. Podemos constatar que “Ladrão de Casaca” é uma moderada desilusão. Enquanto “Terceiro Tiro” surge como uma inteligente e bem tecida ironia mas não oferece ao hitchcockiano comum aquilo que ele mais aprecia.

Críticas feitas aos filmes, o poder da fotografia a cores (bem intensa nas duas obras) resulta como um dos mais belos trunfos do cinema de Hitchcock naquele ano de 1955. “Terceiro Tiro” é um exemplo cinematográfico mais equilibrado do que Ladrão de Casaca”. Em todos os aspectos sem excepção.

“Ladrão de Casaca” reúne um par mítico de actores: Cary Grant e Grace Kelly. Mas nem o «glamour» das estrelas nem a paisagem paradisíaca das praias do Mónaco, emprestam ao filme o impacto emocional suficiente. Se esse impacto não foi procurado, Hitchcock quereria pelo menos fazer ali um filme divertido - e só atingiu esse propósito de modo parcial e desequilibrado.
“Terceiro Tiro” parte, pelo contrário, de um argumento bastante inspirado e que é desenvolvido por um grupo de actores que soube emprestar àquela trama humana toda a graça e naturalidade que eram necessárias.

A fotografia de “The Trouble with Harry” é quase perfeita. Em “To Catch a Thief”, há trabalhos de montagem menos geniais. Refiro-me às cenas em que os protagonistas passeiam de carro. Era comum filmar os actores num cenário e depois fazer passar imagens por detrás deles. O truque poupava o esforço de filmar os intérpretes num carro em movimento mas nem sempre resultava na perfeição. Aos olhos dos jovens dos nossos dias, habituados ao nível da qualidade técnica contemporânea, certos defeitos parecem crassos e por isso lhes apetecerá dizer: «Vê-se mesmo que é uma montagem!»

Nestes âmbitos da Fotografia no universo hitchcockiano, parece incontornável referir o nome de um grande técnico, Robert Burks, que trabalhou em 12 filmes do realizador e foi responsável por desempenhos notáveis. Burks fazia parte da grande equipa que trabalhou com Hitchcock na época áurea da sua carreira.

Em 1951, foi o brilhante director de fotografia de “Desconhecido do Norte-Expresso”. Depois, foi sempre aceitando propostas diferenciadas do cineasta inglês. Umas exigiam imagens reais, cruas e quase documentais – como “Falso Culpado” ( 1957) ou “Confesso” (1952). Outras careciam de um tipo de imagem mais estilizada – como “Janela Indiscreta” (1954) que se passava num cenário fechado e clautrofóbico ou “Vertigo” (1958) que vivia de imagens oníricas, nubladas, às vezes captadas em espaços amplos e muito abertos.
Em tudo aquilo em que colaborou com Hitchcock, Robert Burks respondeu com o melhor de si. E nunca desiludiu em aspecto algum.

Em “Chamada para a Morte”, usou uma cor densa naquilo que pode ser considerado uma peça filmada em termos cinematográficos. As imagens do filme foram depois trabalhadas para serem projectadas segundo o processo tecnológico das 3 dimensões. Na cena do ataque a Grace Kelly, o pormenor da tesoura era particularmente evidenciado.

Em “O Homem Que Sabia Demais” (1956) e “Intriga Internacional”, a riqueza de certos decors era captada com o auxílio de Robert Burks. A “O Falso Culpado” (1957), foi impressa a autenticidade de um documento quase jornalístico.

Robert Burks também trabalhou em “Marnie” e “Os Pássaros”. Curiosamente, ele era um mestre na área específica dos efeitos especiais. Trabalhou num filme americano sobre o milagre de Fátima – “The Miracle of Our Lady of Fatima” (1952) mas também no mesmo domínio em “Key Largo” (1948) de John Huston, “The Woman in White” (1948) de Peter Godfrey feito a partir de um dos meus romances clássicos preferidos, “The Big Sleep” (1946) de Howard Hawks e “Arsenic and Old Lace” (1944) de Frank Capra.

O trabalho de Robert Burks como o de qualquer outro grande director de fotografia enriquece a arte de todo o tipo de cineastas. Aos que não têm ideias nem talento, empresta alguma magia visual. Àqueles que são mestres na realização, oferece tudo aquilo que lhes é pedido, apela a sugestões significativas e responde para além daquilo que é inicialmente proposto.

Filmes como “Apocalipse Now” (fotografia de Vittorio Storaro), “Niagara” (fotografia de Joseph MacDonald), “2001 – Odisseia no Espaço” (fotografia de Geoffrey Unsworth), “Taxi Driver” (fotografia de Michael Chapman), “Big Fish” (fotografia de Philippe Rousselot) “Dracula” de 1992 (fotografia de Michael Ballhaus) e tantos tantos outros nunca seriam tão visualmente impressivos sem o contributo dos seus directores de imagem.

A Robert Burks, fica ligada a qualidade técnica da fotografia de alguns dos grandes fimes de Hitchcock. Curiosamente, fez há dois dias 40 anos que ele morreu. Num terrível incêndio. No dia 13 de Maio de 1968 – dia de Nossa Senhora de Fátima cuja história ele deve ter conhecido bem durante o trabalho referido (de 1952).

Na filmografia de Hitchcock gosto de nomear o ano de 1955 como o ano da felicidade das cores vivas, intensas, e alegres. Seja nas luzes brilhantes do rebentar dos foguetes em “Ladrão de Casaca” ou nos bosques densos do “Terceiro Tiro”. Seja no azul do mar das praias monegascas ou nas telas que Sam Marlowe (John Forsythe) pintava. Seja até nas peúgas coloridas do Harry, esse morto que apareceu estendido no ambiente pacífico do campo.

domingo, abril 27, 2008

A MORTE


«You know what I think? I think that we're all in our private traps, clamped in them, and none of us can ever get out. We scratch and we claw, but only at the air, only at each other, and for all of it, we never budge an inch. »
Norman Bates em “Psico” (1960)

«Com a morte, separação da alma e do corpo, o corpo cai na corrupção, enquanto a alma, que é imortal, vai ao encontro do Julgamento divino e espera reunir-se ao corpo quando este, transformado, ressuscitar no regresso do Senhor. Compreender como acontecerá a ressurreição supera as possibilidades da nossa imaginação e do nosso entendimento
In Catecismo da Igreja Católica (Resposta à questão “Com a morte, que sucede ao nosso corpo e à nossa alma?”)


Tão trágica como incontornável. Tão avassaladora como estranhamente natural à existência humana. Realidade que devora tudo aquilo em que toca. A Morte foi tema de inspiração para muitos filmes de Hitchcock.

Morte como drama da perda. Morte como o culminar do medo e perspectiva aterradora de quem sente esse medo. A Morte poderá representar o fim. Mas também pressupõe um começo para além de si.

Morte é separação. Distanciamento. É-nos difícil conceber um universo com limites físicos. Para lá de cada estrela, planeta ou galáxia, parece fazer sentido que haja espaço para mais. Se o universo tiver um termo, parece fácil conceber que haja qualquer coisa para além dele. Logo, se verificamos que é plausível a infinidade do espaço, também podemos admitir que a vida não termine com a morte terrena.

Mas se tudo não passa de um jogo de aparências e o mistério final da vida de tudo o que existe nos for mantido secreto, então seremos quase como ratos de laboratório. Talvez Deus exista e nos ame muito mas aparentemente Ele poderá ser tão verdadeiramente hitchcockiano como o próprio Hitchcock.

Sim. Seremos inegavelmente culpados de muitas das fatalidades que nos sucedem. Mas se somos impotentes e ineficazes na prática da benevolência com os outros e com nós próprios, Deus parece querer testar a nossa paciência. Parece querer avaliar a nossa bravura e santidade (seja lá o que isso for), confrontando-nos com adversidades que não compreendemos e que nos amargam a existência. A mais emblemática dessas adversidades poderá ser a Morte. Com tudo o que representa de doloroso e de insolúvel.

Deus tece laboriosamente as nossas vidas com redes de suspense, de expectativa e de mistério. Talvez Ele não possa mesmo fazer mais por nós. Não duvidando da Sua bondade e benevolência paternal, talvez existam obstáculos contrários à ordem Dele. E que impeçam a Sua boa vontade. Poderemos ser nós próprios esses obstáculos, ao tomarmos as opções erradas. O Catolicismo faz-nos crer que sendo dotados de um livre arbítrio, seremos livres para escolher. Mas nesse caso, o nosso destino dependerá das nossas escolhas. E seremos castigados pelo nosso egoísmo e imprudência.

Talvez muito simplesmente o nosso raciocínio lógico não faça sentido num quadro mais amplo. Seremos como as formigas que passam no chão junto aos nossos pés e que não nos preocupamos em preservar vivas.

Aparecemos neste mundo peculiar, de modo singelo. Não trazemos nada connosco. Depois vamos crescendo e vendo morrer pessoas que nos são preciosas – elas também deixando aqui tudo o que lhes pertencia. E partiremos desta vida um dia, deixando aqui o que durante algum tempo limitado ousámos pensar que era nosso. Mas o que é que é nosso? O que é que é verdadeiramente nossa propriedade?

Estranha forma de vida, a dos humanos! Os animais não têm consciência das suas limitações cognitivas. Mas nós sabemos bem o que é viver com meias soluções! Na verdade, uma chave ou abre uma fechadura ou não o faz de todo.

Quero acreditar que a morte terrena não é o fim. Dizem-me que tem mais mérito aquele que acredita sem ver. E toda a fé (qualquer tipo de fé) precisa de ser cuidada para se desenvolver e prosperar; precisa de mimos e sustento como uma planta ou uma criança pequena.

No entanto, não sei se a minha meia convicção não traduz uma incerteza – será como a chave que quase descerra uma porta mas não chega a fazê-lo.

Pessoalmente, aquilo que mais me parece penoso na morte terrena é a realidade da separação – a certeza de que enquanto formos como somos, nunca mais iremos ver uma determinada pessoa amada.

Fica a consolação da memória; a mágoa da saudade que às vezes se traduz em lágrimas, outras vezes está tão escondida dentro de nós que não recebe existência corpórea.

A Morte e a Vida estão no mesmo patamar, no mesmo segmento, na medida em que não existe uma sem a negação da outra. Encontramos dezenas de mortes na filmografia de Hitchcock. Crimes, quase sempre. Acidentes. Suicídios. Mortes por negligência. Desejo de matar ou de ver morto. Negação da realidade da morte que conduz à neurose e à psicopatia. Morte que corrói os sentimentos. Que deixa remorsos. Que cimenta obsessões.

Escrevo este comentário num momento particularmente amargo e confuso da minha vida. Tem servido este blog também como um mecanismo de expressão de confissões. Reflicto neste espaço sobre o Hitchcock e sobre o seu cinema. Mas parece-me honesto e pontualmente acertado escrever sobre mim. Como o antropólogo que escrevendo sobre uma realidade social, não se pode nunca despojar completamente da sua identidade própria e dos valores culturais com que foi ensinado a ver o mundo.

Parece-me compreensível que entenda melhor a minha percepção do cinema de Hitchcock, quem compreenda o nível emocional dos meus pensamentos. Em muitos aspectos, não serei tão diferente assim desse Alfred Joseph. Ele, como eu, era um homem tímido, receoso, desejoso da aceitação dos outros e pontualmente solitário. Pacato, reservado, habitualmente sereno. Amante dedicado da sua família e do seu lar.

Quando escrevo estas linhas, passaram escassos dias após a morte da minha mãe. Nunca pensei que ela viesse a estar no centro de uma página deste blog. No entanto, tenho andado tão detido a pensar no fenómeno humano da mortalidade que tudo parece convergir na mesma direcção.

Acho que, tal como muitos personagens do cinema de Hitchcock, vivo numa realidade em que a Morte ocupa demasiado espaço e é difícil fugir dela.

Reconheço que devemos aceitar as adversidades com serenidade. Procurando aprender com elas. Prossigo a minha vida. Confortado pela lembrança dos olhos da minha mãe. Pela recordação da sua inocência, ingenuidade e entrega maternal. E procuro ser digno de tudo o que recebi dela, da herança de valores sentimentais e culturais que ela me deixou. E do exemplo de vida que me mostrou: o de alguém que sempre aceitou repetidas e continuadas adversidades com um sorriso plácido. Alguém para quem o conceito de felicidade não passava por metas distantes nem por obstáculos difíceis de transpor. Para quem a alegria e o entusiasmo se concretizavam com pequenas conquistas: uma flor, uma chávena de leite numa esplanada ao Sol, o calor da família unida em redor de si.

Um filho sente-se sempre perdido sem a sua mãe. É assim desde o momento do parto quando se dá a primeira separação.

Considero que um dos grandes méritos da fotografia, do vídeo e do cinema é que eternizam as pessoas. Oferecem-lhes, de algum modo, vida eterna neste mundo. Vemo-las assim sempre belas e jovens, intocáveis e imutáveis. Os anos não passam para os personagens dos filmes. Nem para os nossos antepassados e contemporâneos que se deixaram fotografar.

Mas o Cinema não é a vida real. Aqui, no mundo real, onde não gostamos nem do medo nem da morte, somos confrontados forçosamente com eles. Sem fuga possível. Hitchcock dizia: «Num filme, o realizador é um deus. Na vida, Deus é o realizador.»

Aqui fico e prossigo a minha caminhada. Continuarei a ver alguns dos filmes de que a minha mãe gostava. E que me ensinou a apreciar também. E a escutar alguns dos discos que me deixou. Ela continuará viva no seio da nossa família. E nós nunca a esqueceremos.

Espero que estas palavras não saiam só do meu pensamento inquieto para o papel e para o universo on-line deste blog. Mas que algures a minha mãe as possa escutar ou sentir. Assim sei que em resposta a elas, se abrirá no seu rosto o tal sorriso plácido e sereno. Benevolente e pacífico. E tudo fará um pouco mais de sentido…

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

ALFRED HITCHCOCK APRESENTA «VANITY FAIR»





















Num blog que é essencialmente feito de palavras, não resisto perante a ideia de colocar aqui uma pequena galeria de fotografias interessantes. Esta colecção foi publicada na mais recente edição da revista «Vanity Fair». Pode-se gostar mais ou menos solidamente do trabalho dos fotógrafos mas é inegável que esta revisitação do universo do Hitchcock manifesta rigor e minuciosidade.

Estes são retratos de cenas emblemáticas. Feitos a partir de imagens que verdadeiramente nunca morreram – imagens que permanecem vivas na memória de cinéfilos do mundo inteiro. Pode-se no entanto argumentar que aqui essas imagens ganharam uma nova forma física. Para a criação deste trabalho fotográfico, foi imperativo dirigir os actores como se estivessem interpretando emotivamente os seus papéis.

E, de facto, a «Vanity Fair» não seleccionou uns actores quaisquer. Ainda que para fins estéticos, quaisquer modelos servissem. Na verdade, esta é uma celebração do Cinema feita pela nova geração de estrelas o que reforça a ideia de que o universo cinematográfico se regenera e potencia a si mesmo. Este é um ritual de memória a um cineasta especial mas é também um veículo de observação do passado histórico pelos olhos da contemporaneidade. Vemos actores dos nossos dias dando vida a personagens e a cenários que nunca morrem.

O trabalho final dos fotógrafos é a galeria que aqui se apresenta. Mas é muito interessante ver o vídeo que está no site da «Vanity Fair» para nos apercebermos do esforço de recriação das cenas, esforço levado a uma estranha preocupação com todos os pormenores. Porque para imitar Hitchcock, parece incontornável ser exageradamente meticuloso. E numa revista como a «Vanity Fair» o cuidado com o guarda-roupa é um padrão.

Afinal este trabalho é mais uma prova viva de como o cinema de Hitch continua a influenciar e a inspirar autores das mais variadas áreas artísticas. Vimos já neste blog influências de Hitchcock noutro cinema; em artes gráficas e audiovisuais; em argumentistas, escritores e outros agentes da indústria cinematográfica; e também no patamar da publicidade e do marketing. Este exemplo específico centra-se no papel da Fotografia como forma de captar um momento; de recriá-lo de modo perpétuo; e de extrair o seu significado simbólico e o ambiente psicológico que lhe está associado.

Como dizia Hitchcock, o seu cinema é puramente visual. Por isso, a Fotografia surge como um veículo privilegiado de eternização de uma cena. Cada fotografia representa um momento eternizado para sempre. Assim parece-me muitíssimo pertinente que o vídeo de promoção não tenha música mas sons pontuais que funcionam como chaves de identificação das narrativas. Um trovão, um grito, o soprar do vento, o estalido de uma máquina fotográfica...

Podemos ver aqui 21 actores encarnando papéis do universo de Hitch. Charlize Theron (substituindo Grace Kelly em “Chamada para a Morte”), Renée Zelwegger (no papel de Kim Novak em “Vertigo”), Scarlett Johansson e Javier Bardem ( nos espaços de Grace Kelly e James Stewart em “Janela Indiscreta”); vemos Naomi Watts encarnando Marnie e Marion Cotillard (que representou recentemente Edith Piaf em “La Vie en Rose”) ser massacrada no chuveiro de “Psico”. Encontramos Gwyneth Paltrow e Robert Downey Jr. no ambiente de romance de “Ladrão de Casaca”. E encontramos duas actrizes mais velhas numa recriação de “Um Barco e Nove Destinos”: Eva Marie Saint, a estrela de “Intriga Internacional” e Julie Christie – que está na corrida para os Óscares deste ano.

Já agora, acrescento: os fotógrafos que aqui trabalharam são: Julian Broad, Norman Jean Roy, Mark Seliger e Art Streiber. Aconselho a leitura da crónica sobre a feitura deste trabalho. Na própria revista ou no site.
Um presente simpático da «Vanity Fair» que este hitchcokiano agradece. Só não compreendo muito bem porque é que a fotografia de “Rebecca” tem uma cor tão intensa. O filme foi filmado a preto e branco e vive de imagens sombrias.

terça-feira, janeiro 15, 2008

CHAMPANHE À HITCHCOCK PARA ACLAMAR O NOVO ANO



É uma tradição que se revisita com prazer. Para saudar o ano que começa, brinda-se com uma taça de champanhe ou então com um mais modesto vinho espumante. A indústria, o comércio e as campanhas de publicidade e de marketing que lhes estão associadas incentivam este ritual de celebração.

No contexto, surge uma obra um pouco inesperada. Foi criada por Martin Scorsese e é uma curta-metragem de tributo a Alfred Hitchcock. Trata-se de um pequeno exercício de revisitação nostálgica do universo de Hitch. Um esboço fílmico feito por quem sabe fazer cinema, conhecendo solidamente a História da Arte Cinematográfica. Mas convenhamos: nasceu como filme publicitário de uma marca de champanhe e de modo essencial só nos permite verificar a destreza de Scorsese como realizador e a forma como Hitchcock parece ainda vender o que lhe está associado.

"The Key to Reserva" é um anúncio encomendado pela Freixenet – marca de champanhe espanhola – a Martin Scorsese. E, na verdade, trata-se de uma encenação que tem tanto de cineasta como de cinéfila. É declarada a intensa paixão de Scorsese pelo universo dos filmes, acerca do qual ele tem escrito e dirigido documentários.

O objectivo desta iniciativa é promover o champanhe da marca Freixenet – à semelhança de outros projectos publicitários da firma catalã, lançados em anos anteriores, durante o Natal, com celebridades mundiais. Mas aqui o champanhe é verdadeiramente o «mac-guffin», aquilo que está no centro de toda a narrativa, de toda a intriga, mas que não interessa verdadeiramente ao espectador.

"The Key to Reserva" consegue revelar-se como uma graciosa combinação de elementos do cinema de Hitch: a criação do suspense, a movimentação da câmara pelos espaços, os grandes planos e a importância dos pormenores, a relevância de uma chave ou da corda de um instrumento; a desenvoltura do herói elegante e a sedução da loira glacial – vestida e penteada segundo o modelo de Eva Marie Saint em "Intriga Internacional". E «last but not least», a genial e expressiva música de Bernard Herrmann revisitada naquilo que é um conjunto de excertos do seu "North by Northwest".

"The Key to Reserva" é um cuidado projecto visual e sonoro. É apresentado como o trabalho feito a partir de três páginas de um guião que não chegou a ser filmado por Hitchcock. Um guião sobre o qual ele iria fazer incidir o seu talento mas que não chegou à fase das rodagens.

A questão é tal e qual como Scorsese a coloca numa entrevista que lhe é feita durante o filme: «Trata-se de preservar qualquer coisa que nunca foi feita.» Não é o mesmo que pegar num filme danificado e restaurá-lo. A missão de Scorsese é fazer o filme tal como se fosse feito por Hitchcock, ele mesmo. Com genuinidade.

Scorsese não é declaradamente a estrela do filme. Ele coloca os holofotes a incidir sobre a memória de Hitchcock. O Mestre do Suspense nunca é mostrado em todo o filme mas está presente em todos os fragmentos dele.

Há pormenores particularmente cuidados. Repare-se na perfeita coloração das imagens bem de acordo com as produções de Hitch relativas aos anos 50 e 60 (os seus melhores anos). E veja-se a decoração dos ambientes.

Interessante e quase incontornável numa apreciação a este filme (de quase dez minutos) é a encenação de uma cena de suspense declarado no contexto de uma sala de espectáculos. Como em "O Homem Que Sabia Demasiado" (1934) e na sua remake de 1956, como em "Cortina Rasgada" (1966), "Sabotagem" (1941), "39 Degraus" (1935) ou "À 1 e 45" (1936).

Scorsese filmou "The Key to Reserva" no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Com actores pouco famosos. O resultado é simpático e não creio (como já li num comentário na net) que Hitchcock ficasse indignado com o filme – ou como foi declarado de modo explícito, que ele se agitaria no túmulo. Trata-se de uma homenagem que revela muito «know how» e competência. E é interessante dar prosseguimento à arte de um criador que já morreu.

Seria evidente o misticismo que envolveria três páginas de um guião de Hitchcock se ele fosse encontrado. Por isso, no filme (perfeita ficção), Scorsese quase não deixará ninguém tocar nelas. Scorsese – o homem que antes de realizar com maestria, parece respeitar o Cinema quase como se de uma religião se tratasse.

Todos os depoimentos de Scorsese não são mais do que uma jocosa ironia. Mas passa através dela o seu desejo de conceber cada filme de acordo com a sua natureza. Aqui, a ambição de conceber um filme de Hitchcock como se fosse feito por Hitchcock e não meramente como uma adaptação das suas ideias. O desejo de preservar a arte sem deturpações.

A história do filme é inconsequente. O argumento é pouco complexo. Mas está embutido de referências. Até à imagem final em que se associa o voyeurismo ao insólito. Com sobreposição de espectáculos – o filme a passar por detrás das pessoas que conversam, as múltiplas janelas e o ajuntamento de pássaros no edifício.

Se o Cinema é uma religião para Scorsese, então Hitchcock será um dos seus grandes profetas.

"The Key to Reserva" estreou directamente na Internet e foi visto num mês por dezenas de milhares de pessoas. Encontramo-lo no Youtube ou no site oficial da Freixenet (em língua inglesa ou espanhola).