quarta-feira, julho 16, 2008

AS APARIÇÕES DE HITCHCOCK NOS SEUS FILMES





Falar dos filmes de Hitchcock implica fazer referência a um tipo específico de cinema: a soma de ingredientes peculiares doseados segundo uma fórmula única. Costumo dizer que Hitchcock usou a mesma receita para compor histórias de estilos muito diferentes. Filmes diferentes unidos por particularidades comuns. A aparição curta de Hitchcock nos seus filmes tornou-se, com o decorrer dos anos, uma regra emblemática que ele aprendeu a respeitar com zelo e ironia.

Num filme de Hitchcock, o rotundo Mestre do Suspense pode teoricamente aparecer em qualquer cena, vindo de qualquer zona do ecrã. E de facto, a imagem dele está impressa no celulóide da maioria das suas obras, embora nem sempre haja certezas concretas quanto a pormenores de filmes mais antigos. De modo corrente, Hitchcock só surge na imagem de um filme uma única vez.

A aparição do realizador provoca um estranho impacto. Gera-se o confronto entre o universo da ficção e o do mundo real, na medida em que Hitchcock é uma figura real inserida no filme. É uma figura que as pessoas conhecem e que tanto tem cabimento dentro do filme como fora dele.

Inicialmente, Hitch fazia aparições pontuais diante das câmaras para poupar trabalhos e despesas. Se havia necessidade de um figurante, ele mesmo se predispunha a ocupar o lugar.

Lentamente, este procedimento converteu-se numa brincadeira e quase num ritual. Às vezes, Hitchcock não tinha cabimento em nenhum contexto da história. Então, providenciavam-se soluções. O anuncio num jornal que aparece em cena. Um retrato ou um pormenor visual no cenário.

Na verdade, as pessoas começaram a dedicar tanta da sua atenção à busca da figura do realizador que algo indesejado tendia a ocorrer: elas afastavam o pensamento da intriga do filme. A trama central era a alma de cada filme e a razão de ser da sua existência. No processo de construção do suspense e da ansiedade, não convinha que pormenores secundários viessem a funcionar como factores contraproducentes. Hitchcock e os seus conselheiros sentiram isso. Então, começou a conceber-se a aparição de Hitchcock para a fase inicial dos filmes. Para que quando vissem Hitchcock, as audiências deixassem de o procurar. Em muitas obras, Hitchcock aparece logo nos primeiros minutos.

O chamado «cameo appearance» é definido no dicionário Michaelis como «descrição ou representação teatral curta que mostra de maneira inteligente uma situação ou a personalidade de uma pessoa». Este conceito parece adequar-se na perfeição ao modelo das aparições de Hitchcock. Ele nunca profere uma palavra em cena. O momento em que aparece não dura mais do que alguns segundos. A sua presença é muito irónica e quase jocosa (feita portanto à semelhança da imagem que temos dele).

As aparições de Hitch não são como as de outros realizadores. Nunca como as de Orson Welles ou Charles Chaplin que protagonizavam filmes seus, conferindo dramatismo e autenticidade aos seus papéis. Nunca como Jacques Tati que quase não falava diante das câmaras mas que tem no seu cinema um desempenho físico ou corporal absolutamente nuclear. Nunca como Woody Allen ou Clint Eastwood que são autores de primeiro plano e gostam de interpretar papéis importantes nas suas obras. Woody Allen é sempre irritantemente igual a si próprio e Eastwood tem sérias limitações interpretativas mas eles impõem sistematicamente as suas figuras nos filmes que fazem. Talvez só mesmo Shyamalan utilize uma fórmula semelhante, insistindo em aparecer em pequenos papéis que desempenha, satisfazendo um capricho próprio.

De resto, Martin Scorsese, Sidney Polack, David Lynch e muitos outros também surgem em imagens de filmes seus ou de outros realizadores. Mas nunca num intuito metodicamente definido e respeitado. Hitchcock era talvez o único realizador do seu tempo que as audiências reconheciam com facilidade. A sua imagem era propagada nas campanhas publicitárias dos filmes e tornou-se ainda mais difundida através das séries de televisão. Ele era famoso como um actor. Era uma estrela de cinema numa época em que só os actores eram estrelas.

A ironia de Hitchcock surgir misturado com os seus personagens pode ser lida de muitas formas. A mais interessante delas será conceber que Hitchcock se considerava ele mesmo uma vítima do medo e do suspense. Tal e qual como os heróis e as frágeis vítimas cujas histórias ele contava em filme. O rapazito que aprendera a ter medo do castigo e a angustiar-se com a espera desse castigo estava ali. E não seria tão diferente dos homens e mulheres que lutavam pelas suas vidas nos enredos das suas películas. Hitchcock sabia o que era o medo e a angústia. O universo dos seus filmes pertencia-lhe e ele não existia senão nele.

Mergulhando na filmografia de Hitchcock, verificamos que a sua imagem surge em quase todos os filmes. A seguinte lista mostra-nos um sumário dessas aparições. E o pequeno filme posto no YouTube propõe-nos uma montagem elucidativa.

«O INQUILINO SINISTRO» (1926): À secretária, numa sala de redacção; e mais tarde, no meio da multidão, a observar a detenção de uma pessoa.

«CHANTAGEM» (1929): Sendo incomodado por um rapaz pequeno, enquanto lê um livro no metro. Considero esta aparição uma das mais cómicas de todas.

«ASSASSÍNIO» (1930): Caminhando à frente da casa onde o crime foi cometido, já o filme tinha começado há cerca de uma hora.

«OS 39 DEGRAUS» (1935): Caminha também numa rua.

«JOVEM E INOCENTE» (1937): À saída do Tribunal, segurando uma câmara, de forma desajeitada.

«A DESAPARECIDA» (1938): Quase no termo do filme, passa na gare da estação de comboios de Londres, usando um casaco preto e fumando um cigarro.

«REBECCA» (1940): Caminhando próximo da cabine telefónica, na parte final do filme, quando George Sanders faz uma chamada.

«CORRESPONDENTE DE GUERRA» (1940): No início da história, depois de Joel McCrea deixar o seu hotel, usando um casaco e um chapéu e lendo um jornal.

«O SR. E A SRA. SMITH» (1941): A meio do filme, passa por Robert Montgomery em frente do seu prédio.

«SUSPEITA» (1941): Colocando uma carta no marco do correio, a 45 minutos do princípio do filme.

«SABOTAGEM» (1942): Numa rua, em Nova Iorque, assim que o carro do sabotador pára; a meio do filme.

«MENTIRA» (1943): No comboio para Santa Rosa, jogando às cartas. Curiosamente, tem as cartas todas do naipe de espadas.

«UM BARCO E NOVE DESTINOS» (1944): Num anúncio a uma dieta que é mostrado num jornal; vemos uma fotografia de Hitch muito gordo e outra dele, bastante menos pesado.

«CASA ENCANTADA» (1945): Saindo de um elevador no Hotel Empire, carregando uma caixa de violino e fumando um cigarro.

«DIFAMAÇÃO» (1946): Na grande festa em casa de Claude Rains, bebendo champanhe de modo muito descontraído (por oposição aos protagonistas que vivem um momento tenso) e depois afastando-se.

«O CASO PARADINE» (1947): Saindo do comboio e transportando um violoncelo.

«A CORDA» (1948): A sua imagem de marca (a silhueta que ele desenhou como auto-retrato) pode ser vista momentaneamente num placard de néon, a partir da janela do apartamento onde decorre toda a acção do filme. Há quem defenda que ele pode ser visto na cena inicial, a caminhar na rua, ao lado de uma mulher.

«SOB O SIGNO DO CAPRICÓRNIO» (1949): Na praça, durante uma parada, vestindo um casaco azul e um chapéu castanho, logo cinco minutos após o início do filme. Dez minutos depois, ele é um dos três homens nos degraus do Parlamento. A acção do filme decorre no século XIX e as roupas de Hitchcock parecem não só estranhas para ele, como para o contexto em que se encontra.

«PÂNICO NOS BASTIDORES» (1950): Volta-se para trás para olhar para Jane Wyman, quando ela vai na rua disfarçada. É o realizador a observar uma personagem a fazer-se passar por outra.

«O DESCONHECIDO DO NORTE-EXPRESSO» (1951): Entrando para um comboio com um contrabaixo, enquanto Farley Granger sai do comboio (na estação da sua terra); logo no início do filme.

«CONFESSO» (1952): Atravessando o topo das escadas, depois do genérico. Um sinal aponta para uma direcção e ele caminha exactamente na direcção oposta.

«CHAMADA PARA A MORTE» (1954): Na fotografia antiga que está na moldura; nela vemos uma reunião de antigos colegas da escola e Hitch está sentada à mesa, do lado esquerdo.

«JANELA INDISCRETA» (1954): Mexendo nos ponteiros do relógio, no apartamento do pianista; a meio do filme.

«LADRÃO DE CASACA» (1955): Aos dez minutos, sentado à esquerda de Cary Grant num autocarro.

«O TERCEIRO TIRO» (1955): Passando perto da limusina de um velho milionário que contempla os quadros expostos.

«O HOMEM QUE SABIA DEMAIS» (1956): Observando os acrobatas no mercado marroquino, de costas para a câmara e do lado esquerdo da imagem; logo antes do assassinato.

«O FALSO CULPADO» (1957): Fazendo o discurso de apresentação do filme, logo após o genérico.

«A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES» (1958): Cruza-se na rua com James Stewart, onze minutos após o genérico.

«INTRIGA INTERNACIONAL» (1959): Perdendo um autocarro, na conclusão do genérico.

«PSICO» (1960): Está à entrada do escritório onde Janet Leigh trabalha; vemo-lo através do vidro usando um chapéu de cowboy.

«OS PÁSSAROS» (1963): Deixando a loja de animais e levando dois cães pequenos consigo; cruza-se com Tippi Hedren que entra na loja. A cena ocorre imediatamente após o genérico.

«MARNIE» (1964): Surge na imagem, num corredor de Hotel, quando Tippi Hedren vai em direcção ao seu quarto.

«CORTINA RASGADA» (1966): Está sentado no átrio do Hotel d’Angleterre com um bebe loiro ao colo; o bebé urina-lhe numa perna; ele limpa-se discretamente.

«TOPÁZIO» (1969): Vai sentado numa cadeira de rodas e é empurrado por uma enfermeira. Ele levanta-se da cadeira, aperta a mão a um homem e caminha para a direita.

«PERIGO NA NOITE» (1972): No centro da multidão, com um chapéu. As pessoas estão a ouvir o discurso de um orador. Todas o aplaudem menos Hitchcock.

«INTRIGA EM FAMÍLIA» (1976): Vemos a silhueta dele através do vidro grosso e fosco de uma porta; a meio do filme.

sábado, julho 12, 2008

PATRICIA HITCHCOCK COMPLETOU 80 ANOS




Gostaria de ter sido actriz mas o seu pai nunca a encorajou determinantemente a seguir as passadas dessa vocação natural. Talvez fosse mesmo verdade que Hitchcock acreditasse na ironia com a qual gracejava: «Uma actriz não é uma mulher respeitável».
A perspectiva de ver a filha beijar inúmeros homens diante das câmaras e potencialmente a recriar comportamentos que o desagradassem não o deixaria entusiasmado nem feliz.
Deveria encontrar-se uma melhor forma de vida para Patricia. Ela brincou um pouco com a ideia de ser actriz. E parece que gostou. Mas não parecia particularmente talentosa nem era muito bonita.

Obteve uma graduação no Marymount High School em Los Angeles mas quis participar nos palcos americanos e ingleses. Podemos vê-la em «Pânico nos Bastidores» (1950) ao lado de Jane Wyman; em «Desconhecido do Norte Expresso» (1951) como a irmã da amante de Farley Granger – aquela que, com os seus óculos de lentes grossas, se parece de modo crasso com a vítima do assassino. E em «Psico» (1960) como a pitoresca colega de Janet Leigh.

Patricia Hitchcock participou numa dezena de episódios da série televisiva do pai, «Alfred Hitchcock Apresenta». Fez aparições fugazes e discretas em filmes como «The Mudlark» (1950) de Jean Negulesco ao lado de Alec Guiness e«Os Dez Mandamentos» (1956) de Cecil B. DeMille.

Hoje permanece a grande herdeira financeira do legado de Hitchcock. Ela e a sua família são detentoras de grande parte dos direitos dos filmes. E, como se sabe, eles são constantemente repostos nas televisões e reeditados no mercado.

Faz depoimentos em muitos dos documentários sobre Hitchcock, falando dele, da sua personalidade e dos seus filmes. Também escreve. É co-autora do livro «Alma: A Mulher por detrás do Homem», sobre a sua mãe, em parceria com Laurent Bouzereau.
Lê o que outros escrevem e sentencia palavras de promoção aos livros sobre Hitchcock de que gosta ou que considera que têm valor. Costuma dizer (já a ouvi referir em várias circunstâncias): «O segredo do sucesso do cinema do meu pai é que ele trabalhava sempre a pensar no prazer das audiências

Patricia não parece interessada em fazer grandes abordagens de contéudo crítico à obra de Hitchcock. Nem parece saber muito de Cinema ou de filmes. Aquilo que ela melhor poderá pronunciar é como foi ser filha desse homem tão peculiar – que se converteu num ícone do século XX.

Dos palcos da Broadway em produções como «Solitaire» (1942) e «Violet» (1944) até ao casamento com Joseph O’ Connel, em 1952, houve uma viragem na sua perspectiva de vida. Converteu-se numa ilustre dona de casa, mãe de três filhas e depois avó.

Patricia fez 80 anos no passado dia 7 de Julho. Nasceu em 1928 na Grã-Bretanha e mudou-se com os pais para Hollywood, em 1939 quando Hitchcock foi convidado por David O. Selznick para realizar «Rebecca». No percurso da sua carreira cinematográfica, os momentos em que trabalhou com o pai ainda serão os mais significativos.
Conta-se que no termo das gravações de um episódio da série televisiva de Hitch, ele terá gostado tanto da sua participação que terá sentenciado com um orgulho incontido: «Não foi mesmo bem esta jovem e talentosa actriz?»