terça-feira, setembro 25, 2007

UMA EXPERIÊNCIA CHAMADA «UNDER HITCHCOCK» - CONCLUSÃO


As curtas-metragens do «UNDER HITCHCOCK» propõem aproximações de diversos estilos ao cinema do cineasta. Enquanto apreciador de uma arte cinematográfica que conta histórias, penso fui particularmente sensível ao filme alemão de Birgit Lehman que foi também aquele que mais me divertiu. Embora até possa ser considerado o que é artisticamente menos arrojado e tecnicamente menos inventivo.

O filme intitula-se “Quando Hitchcock se encontrou com Else Eiermann em Auerstedt”. É uma curta-metragem concebida como um registo documental e que reconstrói uma verdade histórica ignorada. Claro que todo o filme é uma invenção inspirada e graciosa. Com muito do típico humor hitchcockiano.

Segundo a voz-off que interliga os acontecimentos num tom jornalístico apurado, Alfred Hitchcock terá visitado a pequena comunidade de Auerstedt, na Alemanha de Leste, em 1956. Aí terá conhecido uma mulher sinistra que o terá inspirado a conceber as ideias para o seu grande sucesso de 1960, “Psico”.

São exibidos no documentário testemunhos de muitos habitantes da terra que explanam como a mulher era estranha, que se referem ao modo insólito como se vestia, que explanam como tinha costumes bizarros; e que comentam o facto de ela dizer que tinha um grande amigo inglês – sem que ninguém acreditasse nela.
A descoberta de uma fotografia antiga foi fulcral para a revelação de um mistério mantido oculto. Nela vemos um cenário inóspito da terra com várias pessoas na perspectiva da câmara. E nela encontramos alho de extraordinário: Else Eiermann a conversar amenamente com Alfred Hitchcock. (Claro que se trata de uma divertida montagem.)

Else Eiermann seria uma mulher idêntica a Hitchcock sob muitos aspectos. Era uma solitária e gostaria de ter tido marido. (O testemunho de uma senhora é lacónico: «Claro que ela procurava um marido e Alfred Hitchcock servia-lhe mas quem poderia gostar de casar com alguém tão feio como ele?»)

A personalidade de Hitchcock (aqui não inventada à toa) é equiparada à da mulher na medida em que ambos tinham propensão para o isolamento e fascínio pelo universo do Sinistro e do Macabro. E ambos tinham sido educados de modo severo e inibitivo.

A mãe de Else terá morrido de modo estranho. A filha colocou o seu cadáver sobre uma cadeira, à janela da casa e preparou a postura do corpo para que parecesse que ela estava a tricotar. Durante dois dias, os habitantes locais terão visto o corpo da mulher à janela, presumindo que ela estava viva. No terceiro dia, visitas terão entrado na casa e detectado com horror que o cadáver estava em decomposição e cheirava muito mal.

O apego à mãe que era fulcral para uma mulher solitária e marginalizada como Else, tê-la-ia levado a fazer-se acreditar que não estava sozinha e que a mãe continuava viva. E tê-la-ia conduzido a cuidar preciosamente do cadáver enquanto o manteve em casa.

Else conversaria espontaneamente com o seu amigo inglês que ficou fascinado com a figura da mulher e com a obsessão dela pelo corpo morto da mãe. A imagem da mãe de Norman Bates, para o filme “Psico”, terá nascido como resultado deste encontro mantido secreto durante décadas.

A voz-off vai mais além nas suas revelações. Não só Else inspirou Hitchcock mas toda a terra onde ela viveu, Auerstedt. Os campos agrícolas de cultivo de “Intriga Internacional” (1959) e de “Cortina Rasgada” (1966) são em tudo semelhantes aos que ele viu em Auerstedt. O estilo arquitectónico de uma igreja local com os seus claustros foi uma inspiração para a concepção visual de certas imagens de “Vertigo” (1958).

O fascínio de Auerstedt que é uma comunidade ignorada pelo mundo só foi assim descoberto por Hitchcock. E terá servido para perpetuar o seu sucesso e cimentar ideias para as suas obras mais emblemáticas.

Depois de ter passado por Auerstedt em 1956, o espírito de Hitchcock foi iluminado por ideias e por imagens inspiradoras. O testemunho de um habitante local é expressivo: «Não me admiro que Hitchcock gostasse de Else Eiermann. Vi uma vez um trailer de um filme dele e achei-o tão estranho como aquela mulher.»

O tom irónico mas circunspecto do filme de 15 minutos torna-se cómico e divertido. E é servido por boas fotografias de Hitchcock, por imagens dos seus filmes e por uma música original muito adequada. Quem ouse defender que é uma curta-metragem artisticamente pouco criativa, não poderá argumentar que é pouco apelativa ou aborrecida. Este não é um trabalho de artes plásticas. Mas uma aplicação contemporânea do tema ao domínio do audiovisual. Feita com humor e profissionalismo.

A jóia da coroa das curtas-metragens da exposição «UNDER HITCHCOCK» seria “Phoenix Tapes” – trabalho encomendado no ano do centenário do nascimento do Hitchcock (1999) pelo Museu de Arte Moderna de Oxford. A tarefa foi confiada a dois grandes conhecedores da filmografia do Mestre do Suspense: Matthias Muller e Christoph Girardet.

O filme revelou-se-me menos imaginativo e genial do que esperava. Os autores trabalharam cenas da filmografia de Hitchcock e montaram-nas segundo temáticas: seis capítulos autónomos. Aqui, o trabalho de montagem é importante. E aquela associação de ideias entre cenas distintas de distintos filmes só poderia vir de quem conhece bem o universo fílmico de Hitchcock.

Chaves, provas de culpabilidade mostradas em grande plano, posturas físicas, beijos carregados de paixão, facas, pistolas, pessoas em suspensão nas alturas… As grandes temáticas de Hitchcock são concisamente mostradas num filme de 45 minutos com imagens de 40 filmes.

O capítulo de entrada mostra cenas em que o poder do som é relevante. Passos, estalidos, ruídos no silêncio. É bastante notável o arranjo sequencial das imagens. Mas é forçada a repetição de imagens. (Como a de Paul Newman percorrendo o Museu em “Cortina Rasgada”)

Noutro capítulo, usa-se um encadeamento de imagens para encenar uma espécie de sonho no domínio das linhas do caminho-de-ferro. O poder hipnótico da viagem embala o espectador numa viagem alucinante. São usadas cenas que decorrem em comboios. (Proliferam comboios na filmografia de Hitchcock.) O som é trabalhado para que se sinta o movimento das carruagens sobre os carris – de modo repetido e continuado. Vive-se numa atmosfera sonhada ou num sonho com contornos de realidade. Às tantas, questionamo-nos: o comboio em que viajamos segue os carris ou já saiu deles? Daí o nome do capítulo ser «Descarrilado».

Penso que o melhor capítulo é aquele que se intitula «Why don’t you love me?». Aqui debatem-se os problemas de personalidade decorrentes da relação de uma pessoa com a sua mãe. Há imensas mães dominadoras ou poderosamente influentes no cinema de Hitchcock. (A mãe do cineasta era, a seu modo, particularmente decisiva no pensamento dele.)

Parece-me engenhoso ir capturar a cantilena das crianças em “Marnie” (1964). Aquela em que se canta repetidas vezes «Mother, mother, I am sick…» Neste contexto, vemos imagens de Difamação (1946) – algumas em repetição – “Suspeita” (1941), “Desconhecido do Norte-Expresso” (1951), “Intriga Internacional” (1959), “Marnie”, “Os Pássaros” (1963) e obviamente “Psico”.

Há um momento desconcertante. Aquele em que vemos Norman Bates na cela, olhando morbidamente para o vazio, enquanto ouvimos cantar o tema clássico de “O Homem Que Sabia Demais” (1956), “Que Será, Será”. As palavras cantadas numa melodia radiosa encaixam de modo macabro sobre o drama do filho da Sra. Bates: «Quando eu era pequeno, perguntava à minha mãe o que viria a ser.» Irónico e sarcástico.

O capítulo final do filme mostra-nos uma imagem decomposta de Ingrid Bergman em “Sob o Signo do Capricórnio” (1949). É uma imagem com um movimento muito lento que traduz uma certa necrofilia. Bergman está de olhos entreabertos, abre-os e fecha-os como se estivesse a meio caminho da Morte e, mesmo assim, revelasse uma estranha e desperta beleza. No rosto dela, estão uns olhos vidrados que contemplam o nada; ou uns olhos carregados de melancolia e cujo aparente brilho só vem das lágrimas. O mistério está em tentar decifrar aquela tristeza quase apatia ou aquela apatia quase morte.

O resultado parece-me rebuscado e inconsequente. Num trabalho como “Phoenix Tapes”, toda a deturpação e repetição de imagens me parece abusiva. A condução do filme não é brilhante nem carregada de emoção como seria de esperar numa obra de condensação de imagens e sons do universo hitchcockiano.

“Phoenix Tapes” tem um ritmo incerto e um final pouco arrebatador. Os seus autores conduzem inutilmente o espectador a um final que é frio e apático como a Morte. Com o fim da projecção, sem música nem qualquer tipo de som, a pequena plateia da Cinemateca foi transportada a um desconcertante beco sem saída. A Morte é um tema central no cinema de Hitchcock. Mas mais importante do que a morte, são os sentimentos bem vivos da paixão e do desejo. “Phoenix Tapes” deveria terminar em apoteose. Não em apatia.

«UNDER HITCHCOCK» é uma proposta louvável que permite cruzar a obra de um cineasta clássico e emblemático com o universo das artes modernas.
Estes oito filmes que são apresentados diariamente em Vila do Conde (nos monitores da exposição) são reflexos de uma arte aberta a novos conceitos.
O que interessa verdadeiramente nestas iniciativas é a estimulação dos nossos sentidos; e a reavaliação constante da Vida e dos nossos valores fundamentais. Toda a experiência artística causa um efeito. Hitchcock costumava dizer que os seus filmes funcionam como choques benéficos para as audiências, como estímulos emocionais e sensoriais.

Lamento que a exposição «UNDER HITCHCOCK» não seja trazida até Lisboa. Pois envolve muito mais material do que este conjunto de oito curtas-metragens. Saudações para a Solar – Galeria de Arte Cinemática de Vila do Conde. As congratulações de um hitchcockiano sincero.

segunda-feira, setembro 17, 2007

UMA EXPERIÊNCIA CHAMADA «UNDER HITCHCOCK» - PARTE I


Toda a arte é susceptível de inspirar outra arte. Dito de outra forma, qualquer forma artística é potencialmente condicionadora de outras criações. De modo directo e transparente. Ou por meio de mecanismos subliminares e pouco evidentes.

O cinema de Hitchcock, por exemplo, tem alimentado a imaginação de muitos realizadores e produtores da indústria dos filmes e também a forma estética e emocional de muitas obras cinematográficas. Mas o Cinema também condiciona e inspira outras artes.

A Solar – Galeria de Arte Cinemática (em Vila do Conde) propõe aos seus visitantes uma interligação entre a arte contemporânea e o Cinema. Tem estado patente no espaço, desde dia 7 de Julho, uma exposição de arte inspirada em Hitchcock. Muito em particular, pela mostra contextualizada (em cenários adequados) de trabalhos fotográficos, vídeos e criações no domínio das artes plásticas. Trata-se de uma revisitação do universo hitchcockiano feita por artistas que recorrem às tecnologias do século XXI e que reflectem sobre a imagem simbólica de Hitchcock e sobre a sua obra cinematográfica.

O nome da exposição é «UNDER HITCHCOCK». E trata-se de uma iniciativa sem precedentes em Portugal. Até porque foi feita em associação com o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde.

Na programação do Festival deste ano, foram delineadas duas sessões distintas com dez curtas-metragens americanas e europeias inspiradas em Hitchcock. Oito desses pequenos filmes foram trazidos a Lisboa para serem exibidos no dia 11 de Setembro, na Cinemateca Portuguesa, sala mais pequena.

Claro que uma sessão com filmes que extravasam o domínio pleno do Cinema não é necessariamente apelativa para qualquer cinéfilo. A Sala Luís de Pina com cerca de 50 lugares estava cheia mas, pelo menos, quatro pessoas saíram antes da conclusão das projecções.

Várias das obras mostradas numa sessão com cerca de 98 minutos se caracterizam por mostrar um arranjo (ou desarranjo) das imagens dos filmes de Hitchcock. Os filmes de Les Leveque são sintomáticos desse propósito. O autor pegou em “Casa Encantada” (1945) e em “Vertigo” (1958) e decompôs as imagens dos filmes desde a primeira à última cena. Em apresentações com um ritmo frenético e alucinante.

Em “2 Spellbound” (que podemos ler “Para Casa Encantada”) é utilizado como instrumento de trabalho um filme a preto e branco, com imagens expressivas e carregadas de símbolos psicológicos – ou não fosse a Psicanálise uma temática central no filme.

“4 Vertigo” (que também podemos ler “Para Vertigo”) parte de uma obra cinematográfica com imagens de grande beleza e imbuídas de onirismo e melancolia.

Estes são trabalhos de um artista plástico que trabalha a imagem no seu sentido estético. O som dos filmes é uma distorção repetitiva das suas bandas sonoras. Não há neles propósitos narrativos, uma história com princípio, meio e fim. A menos que conheçamos bem os filmes de Hitchcock. Mas as histórias não são essenciais e o conteúdo narrativo das imagens aqui é irrelevante. Os trabalhos de Leveque funcionam como caleidoscópios em que vemos as imagens reflectidas – num filme a dobrar, noutro a quadruplicar.

O propósito de experiências destas é interessante. Quase todas as criações artísticas têm o seu valor próprio que lhes está inerente. Mas um amante do Cinema não está necessariamente preparado para ver películas clássicas com uma estrutura tradicional tratadas de um modo irreverente. Daí que eu ouse concluir que o esforço decorrente de um tipo de arte como este é meritório mas um pouco ineficaz.

Ver passar o “Vertigo” inteiro em 9 minutos e com a imagem decomposta e multiplicada por quatro é curioso. O problema é que se torna cansativo o ritmo mecânico e pouco emocional do trabalho. O mesmo se aplica ao filme que desenrola a fita inteira de “Casa Encantada” em 7 minutos. Embora o número 2 seja muito significativo no cinema de Hitchcock com toda a carga da duplicidade que lhe está inerente. E em “2 Spellbound” o que vemos são imagens de Hitchcock duplicadas e reflectidas sobre si mesmas.

Afinal, no filme original, Gregory Peck está em busca da sua identidade. Ele tanto pode ser um homem inocente como um criminoso. Assim como o amor de Ingrid Bergman por ele tanto pode ser entendido como sendo uma loucura inconsequente e ilógica; ou uma dádiva preciosa que lhe é oferecida pela sua intuição especial. Daí que ver “Casa Encantada” em duplicado possa ser uma forma diferente de viver e de apreender o espírito do filme.

“Spherical Coordinates” de Gregg Biermann é um trabalho do mesmo estilo. Decompõe a cena da fuga de Janet Leigh perseguida pelo carro da Polícia em “Psico” (1960). É uma obra visualmente engenhosa, que causa algum assombro porque distorce a imagem original segundo coordenadas esféricas, circulares. É alucinante o ousado. E aplica o modelo visual à própria narrativa, na medida em que desenrola coerentemente a cena até dado momento e depois começa a passá-la no sentido inverso. (Com os carros a andarem para trás.)

Diria que Saul Bass fez qualquer coisa de idêntico para o genérico do filme “Seconds” (1966) de John Frankenheimer. E atrever-me-ia a acrescentar que David Lynch poderia gostar de um artista como Gregg Biermann para trabalhar algumas imagens dos seus filmes alucinados. Penso em cenas do seu “Eraserhead” (1977) e nos primeiros minutos do “Homem-Elefante” (1980).

O sueco Tobias Anderson concebeu um écran com 9 rectângulos e colocou em cada um deles uma imagem em movimento de “A Corda” (1948). O trabalho parece-me relativamente oco. Com um som de pessoas em burburinho, num diálogo contido e distorcido. Este “Nine Piece Rope” trabalha sobre uma película em que o cenário de pessoas em diálogo é o objecto central – ou não fosse uma espécie de peça de Teatro laboriosamente arquitectada em termos cinematográficos.

Em cada rectângulo, as imagens vão mudando. No resultado final, as nove peças nunca se encontram. As diferentes peças do puzzle nunca encaixam no espaço e no tempo. O filme tem 2 minutos, tempo escasso para ser detectado com facilidade algum tipo de alinhamento intencional nas imagens. O olhar do espectador perde-se em 9 écrans dentro da mesma imagem, dispersa-se, procura orientações. Não creio que esta criação tenha mais do que um valor estético (e mecânico) como nos filmes americanos de Les Leveque.

O mesmo autor mostra-se mais engenhoso no domínio da animação. Em “879 Colour”, ele propõe uma revisitação a “Intriga Internacional” (1959) feita num minuto. A base da animação é um conjunto de 879 desenhos (concebidos originalmente a preto e branco e que depois foram coloridos).

Os desenhos são decalques apurados de imagens do filme e são apresentados numa sucessão rápida. Trata-se de um exercício engraçado, com uma música jocosa e pontualmente típica de cartoons animados.

“Bodega Bay School” também de Anderson é outra animação rigorosamente preparada a partir da sequência do ataque aterrorizante à escola em “Os Pássaros” (1963). Aqui, como no grande cinema de Hitchcock, o essencial não é visto mas subentendido, subliminar. E o terror não nasce do que se mostra mas da antecipação do que está para vir.

Nesta animação que deve ter um tempo absolutamente concordante com o da cena original (5 minutos), é imprescindível conhecer a narrativa tal como foi concebida e mostrada por Hitchcock. Porque os desenhos decalcam as imagens do filme até ínfimos pormenores e plano a plano mas excluem do cenário todas as pessoas e todos os pássaros.

A música perturbadora do filme não é um tema orquestral sombrio mas a lenga-lenga que as crianças cantam na escola. De modo obsessivo e enervante. Tal como no original de Hitchcock. Poder-se-ia pensar que o som da animação é o som inalterado do filme. Mas não existe o menor diálogo. Nem mesmo quando a Professora declara: «Meninos, vamos fazer uma saída ordeira da escola.» As palavras também foram extraídas. O filme acaba quando o terror atinge o clímax. A imagem afasta-se da escola e ouvimos o som ensurdecedor e estridente dos pássaros em fúria.
(continua)

quinta-feira, setembro 06, 2007

HITCHCOCK NO BIOGRAPHY CHANNEL




O Canal Biography exibe e repete por estes dias um documentário interessante sobre Hitchcock. Digamos que não se trata de um programa exemplar ou imprescindível. Mas é um trabalho que condensa em cerca de 90 minutos (2 partes de tempo semelhante) os principais aspectos da vida e da personalidade do cineasta e transmite sucintamente uma imagem da sua carreira.

O principal trunfo do documentário integrado na série “True Hollywood Stories” é o contributo de muitas pessoas que trabalharam com Hitchcock e o conheceram e que oferecem depoimentos muito relevantes: desde a sua filha Patrícia (que participa em muitas destas iniciativas) às suas netas; desde actores (como Farley Granger, Janet Leigh, Tippi Hedren, Hume Cronyn ou Bruce Dern) até argumentistas (como Joseph Stefano de “Psico” ou Evan Hunter de “Os Pássaros”); desde estudiosos da obra de Hitchcock como Camille Paglia, Dan Auiler (autor de um livro sobre “Vertigo”) e Stephen Rebello (ensaísta de um trabalho sobre “Psico”) até ao biógrafo de Hitchcock, John Russel Taylor.

Este parece ser mais um trabalho sobre a personalidade de Hitchcock e sobre o desenvolvimento factual dos acontecimentos ao longo da sua vida do que acerca da arte do cineasta. O documentário quase não apresenta imagens dos filmes nem quaisquer excertos das suas bandas sonoras.

Os instrumentos narrativos que completam os testemunhos das pessoas entrevistadas são usados estrategicamente mas de modo simples: uma imensidão de fotografias, algumas delas raras e muito interessantes; partes significativas de alguns trailers; e filmes amadores rodados por Hitchcock (ou por personalidades próximas dele) no quotidiano da sua família ou em ambiente de filmagens. Algumas imagens de época são integradas nos momentos certos para enquadrar a carreira de Hitchcock no seu contexto histórico.

Este documentário mostra Hitchcock mais do que qualquer outra pessoa. As imagens que o mostram nos anos 20 e 30 revelam-nos um homem muito mais brincalhão e menos soturno do que é habitual. Brincando com os amigos, pedalando de bicicleta e levantando a saia a uma actriz. Um excerto de uma conversa com Anny Ondra (protagonista de “Pobre Pete” (“The Manxman”) e “Chantagem” (“Blackmail”), filmes de 1929) é particularmente exemplificativo de como ele gostava de gracejar e de como o fazia com aparente naturalidade.

Por outro lado, as imagens de Hitch com a sua esposa Alma e com a filha Patrícia são sintomáticas do seu carinho e devoção à família.

Nos primeiros minutos do programa é declarada a intenção do trabalho: divulgar uma investigação minuciosa em torno da vida e da obra de Hitchcock. Verifica-se que o percurso biográfico do Mestre do Suspense é razoavelmente explanado. Assim como as particularidades da sua complexa personalidade. Mas fica-se com a ideia de que aqui não se debate de modo aceso o conceito de Cinema segundo Hitchcock, os seus métodos, as suas opções técnicas e os seus ideais cinematográficos.

Neste aspecto, quase só se mencionam e comentam procedimentos técnicos no domínio de “A Corda” (1948) e de “Psico” (1960) que foram dois dos projectos metodologicamente mais arrojados da filmografia de Hitch.

O trabalho documental, na sua globalidade, compõe um retrato sucinto da personalidade de Hitchcock com as suas contradições. Camille Paglia define Hitch como uma pessoa puritana que quase poderia ter vindo a abraçar a vida monástica ou clerical mas que também era um cineasta que tinha apreço por aquilo que era violento, chocante ou escandaloso. Facetas que parecem inconciliáveis.

Do mesmo modo, era ambígua a relação dele com o universo feminino. Por um lado, segundo Paglia, ele parecia desconfiar das mulheres. Por outro, parecia reverencià-las, idolatrà-las muito possivelmente na medida em que elas lhe pareciam distantes de si. A sua obesidade, a sua imagem rotunda e pesada, retirava-lhe a ideia de que uma mulher pudesse gostar naturalmente de si. Logo, privava-o de uma vivência sexual descomplexada e desinibida.

Hitch foi o homem que reverenciou Ingrid Bergman e depois Grace Kelly, a ponto de ficar ressentido com os compromissos matrimoniais delas. E foi aquele que terá tentado manipular a vida profissional (e pessoal) de Vera Miles e de Tippi Hedren. Quase da forma estranha e obsessiva com que James Stewart o fez com Kim Novak em “Vertigo”. Ou Sean Connery o fez com Tippi Hedren em “Marnie”. Neste contexto, o documentário apresenta pertinentemente uma cena de “Marnie”: aquela em que Connery profere que apanhou um belo animal selvagem na sua armadilha e que não o deixará fugir.

O documentário do Biography mostra Hitchcock como um homem tímido mas que apreciava o reconhecimento e o calor do público. Numa prateleira especial, ele guardava todos os prémios de uma vida de sucesso. Mas lá não constava um Óscar, embora ele tenha sido nomeado cinco vezes para o prémio. Um amigo dele confessa perante a câmara que ele olhava para aquela exposição de galardões e declarava com tristeza: «Sempre dama-de-honor, nunca noiva.»

Hitchcock era um homem obcecado com os seus medos pessoais. Curiosamente era alguém que conseguia exorcizar muita da sua angústia trabalhando sobre ela e sobre as temáticas que dela derivavam. Segundo Stephen Rebello, ele acreditava mesmo que o mundo era um sítio assustador em que o caos espreitava a cada esquina.

Parece que o cineasta mostrava mais e mais de si à medida que envelhecia. Mas é preciso não ignorar que os modelos da Censura evoluíram e que nos anos 70 havia mais liberdade para filmar a violência – e para fazê-lo de modo personalizado e não em associação a um estúdio. Vejam-se “Laranja Mecânica” (1971) de Stanley Kubrick, “Cães de Palha” (1971) de Sam Peckinpah e “Deliverance” (1972) de John Boorman.

Depois de “Cortina Rasgada” (1966), Hitchcock quis filmar “Kaleidoscope Frenzy”. Era um projecto impressionante sobre um psicopata homossexual que detestava mulheres e as matava sadicamente. Um filme que mostraria muito sexo, morte e nudez. Era algo que os produtores da Universal rejeitaram laconicamente, que era impensável, desconcertante e abominável em termos do que se fazia na época e que, segundo alguns diziam, nem fazia jus à imagem instituída de Hitchcock.

Afinal quem era verdadeiramente Hitchcock? Em 1966, parecia alguém que começava a sentir-se vencido por novos conceitos cinematográficos e por uma geração de novos realizadores. Penso em “The Graduate” (1967) de Mike Nichols, “Cowboy da Meia-Noite” (1969) de John Schlesinger, “Easy Rider” (1969) de Dennis Hopper e “Klute” (1971) de Alan J. Pakula. Que sentiria necessidade de mostrar o universo do terror e do macabro em termos mais modernos, realistas ou radicais. Mesmo que escandalizassem a opinião pública.

Desencantado com Hollywood, Hitchcock procurava inspiração nos filmes realistas de cineastas italianos e franceses. Estava disposto a filmar com uma câmara na mão – o que era diferente de tudo o que fizera até então e demonstrava arrojo, espírito aventureiro e desejo de inovação. Rejeitado o projecto “Kaleidoscope Frenzy”, Hitchcock foi conduzido a realizar “Topázio”. Um filme desinteressante, feito sem alento nem vivacidade. A sua criatividade natural foi desviada. E isso levanta-nos uma questão pertinente de resposta especulativa: como seria o cinema de Hitchcock se ele trabalhasse nos nossos dias?

O documentário do Biography Channel põe-nos em confronto directo com a imagem de Hitchcock. Derivada daquilo que ele foi e daquilo que poderia ter sido. Mas de todas as visões do cineasta, prevalece a do homem irónico e sarcástico que apresenta histórias de crime e mistério para uma série de televisão da CBS.

Era desnecessária a repetição da sequência introdutória de cerca de três minutos que inicia cada uma das partes. E não é exibido qualquer genérico final ou listagem das pessoas que fizeram o documentário, o que me parece uma lacuna grave. A obra está catalogada como sendo de 2004. Mas não sabemos quem a concebeu e dirigiu.

Na locução, há gralhas. O filme “The Lodger” (1926) foi divulgado em Portugal como “O Inquilino Sinistro” e não como “O Pensionista”. O filme “Sabotage” (1936) tem o título português de “À 1 e 45” e não de “Sabotagem” (que corresponde a um filme de Hitchcock datado de 1942).

Sem criticismos severos, a iniciativa do Biography Channel é mais do que louvável. Para um melhor conhecimento daquele que Camille Paglia define como um dos grandes artistas do século XX. E sendo como que uma janela aberta às várias facetas da sua personalidade. Incluindo uma que lhe desconhecíamos e que ele desvenda mediante a câmara do “Alfred Hitchcock Apresenta”: «Resolvi apresentar este programa depois de me ter cansado de ser um “sex-symbol”. E de ter sido fotografado sem roupa para as páginas centrais da tal revista que vocês sabem. Hoje, como vêem, estou vestido. Neste programa não gostamos de torturas nem de violências excepto quando tem mesmo de ser