segunda-feira, março 27, 2006

OS ACTORES SÃO COMO GADO - CONCLUSÃO





Os grandes actores de Hitchcock, aqueles que são mais associados ao seu cinema são Cary Grant, Ingrid Bergman, James Stewart e Grace Kelly. No entanto, teria sido profundamente desejável que Hitchcock tivesse aplicado o seu engenho pessoal no trabalho com todos os actores, mesmo com aqueles que o desagradavam.

É lamentável que ele enaltecesse actores medíocres como Robert Cummings que protagonizou “Sabotagem” (1942) e “Chamada para a Morte” (1954), o limitado John Forsythe de “O Terceiro Tiro” (1955) e “Topázio” (1969) ou um muito fraco Farley Granger em “A Corda” (1948) e “Desconhecido do Norte Expresso” (1951).

Em papéis secundários é diferente: encontramos grandes representações de actores em desempenhos característicos. Refiro-me a Judith Anderson em “Rebecca” (1940); Leo G. Carrol em “Intriga Internacional” (1959) e “Casa Encantada” (1945); Thelma Ritter em “Janela Indiscreta” (1954); Barbara Bel Geddes em “Vertigo” (1958); Jessica Tandy em “Os Pássaros” (1963); Louise Lathan em “Marnie” (1964); Lila Kedrova e Ludwig Donath em “Cortina Rasgada” (1966). E os exemplos ilustrativos não ficavam por aqui…

Não sei bem como conceber a proliferação de tantos papéis secundários interessantes no cinema de Hitchcock. Talvez a sua aptidão para dirigir bem os actores se tornasse mais evidente à margem dos protagonistas dos filmes.

Na verdade, Hitchcock submetia os actores à perspectiva da câmara. Interessava-lhe o modo como eles se movimentavam diante da câmara. E não tanto subverter e subjugar a acção da câmara ao propósito de fazer os actores brilharem na tela.

Se um actor deveria caminhar numa direcção ou sentar-se de um determinado modo, era essencial que o fizesse em atenção à câmara e não em atenção à sua arte de representar.

Hitchcock sempre enfatizou o valor da câmara mesmo sem ir, ele próprio, colocar-se junto às lentes da máquina de filmar. Bastava-lhe instintivamente conceber a imagem no seu espírito. E filmar de acordo com essa imagem. Impondo um modo de estar aos seus actores.

O facto de Hitchcock trabalhar o desempenho dos seus actores como se estivesse a manipular marionetas não o deveria levar a sentir-se maçado com o facto de alguns actores terem ideias próprias sobre a sua actuação.

Dever-se-ia ter requisitado a Hitchcock mais cordialidade e menos intransigência. Porque a genialidade de um realizador de cinema também deve passar por conseguir impor vontades sem inibir os outros de se sentirem bem…

Se os actores deveriam ser tratados como gado, talvez ele devesse serenamente escutar os seus mugidos e balidos. Ou seria pedir muito a Hitchcock?

terça-feira, março 21, 2006

OS ACTORES SÃO COMO GADO - PARTE I


Os actores irritavam Hitchcock. Especialmente aqueles que prezam a sua condição de estrelas. Um actor vaidoso, egocêntrico e que quer que a sua vontade prevaleça sobre a de todos os outros era, segundo Hitchcock, um sério inconveniente.

Hitchcock detestava o estatuto e o excesso de privilégios das grandes estrelas. Uma estrela atrai audiências, ele sabia-o. Mas ele não precisava de estrelas nem as procurava. Às vezes eram criaturas inconvenientes no cenário de realização de um filme.

Hitchcock terá escrito algures que os actores merecem ser tratados como gado. O comentário foi recebido com desagrado. Ele terá argumentado em sua defesa que não considerava que os actores fossem gado mas que apenas os encarava como tal.

A sua ironia gelava o ânimo de certas pessoas e nem todos simpatizavam com os seus comentários ácidos.

Na verdade, Hitchcock satisfazia-se com actores de medianas capacidades. Não precisava de grandes desempenhos. Talvez receasse que o nome das suas estrelas brilhasse mais do que o seu. Ou talvez entendesse honestamente que uma trama de suspense tem a ver com emoções, expectativas, surpresa, medo e apreensão. Para que queria ele grandes actores? Bastava-lhe pegar num argumento inteligente e filmar os actores da forma mais adequada e eficaz. Grandes desempenhos? Não precisava deles! Era-lhe suficiente que os actores se comportassem de forma credível e convincente.

Nos primeiros anos da sua carreira, Hitchcock encontrou na sua Inglaterra natal actores que serviam os seus interesses. Nos filmes que realizou entre 1925 e 1939, dirigiu actores de prestígio tais como Ivor Novello, Jessie Matthews, Peter Lorre, Robert Donat, Madeleine Carroll, John Gielgud, Sylvia Sidney, Margaret Lockwood, Michael Redgrave, Maureen O’ Hara e Charles Laughton.

Hoje à distância de mais de seis décadas, esses filmes parecem-me (quase todos) um pouco crus. Como um bolo que tem tudo para sair saboroso, tenro e rico mas que não está demasiado tempo no forno. (Penso que Hitchcock não se ofenderia nada se eu comparasse a arte cinematográfica com a arte gastronómica.)

As interpretações dos actores no cinema inglês de Hitchcock parecem-me similarmente cruas (e datadas).

Quando se mudou para Hollywood, Hitchcock precisou de suportar as imposições do produtor para quem trabalhou durante 7 anos: David O. Selznick que criara “E Tudo O Vento Levou” (1939) e era tido como um rei poderoso e influente.

Selznick impôs certos elencos a Hitchcock mas ele entendeu-se bem com muitos dos actores que com ele trabalharam nesses anos. Joan Fontaine foi a sua heroína em dois filmes importantes: “Rebecca” (1940) que permanece um clássico do Cinema adaptado de um clássico da Literatura. E “Suspeita” (1941) onde brilhou a tal ponto que arrecadou o Óscar para Melhor Actriz e convenceu críticos e público.

A parceria entre Hitchcock e Fontaine foi saudável. Outros encontros foram por então também felizes: Joseph Cotten, Teresa Wright e sobretudo Cary Grant e Ingrid Bergman.
Lawrence Olivier também brilhou em “Rebecca” mas aqui sempre me pareceu demasiado rígido, inexpressivo e teatral.


Em 1947, Selznick terá imposto a estrela Alida Valli para o filme “O Caso Paradine”. Hitchcock não gostava de imposições.

Ingrid Bergman deixou Hollywood e casou com o realizador italiano Roberto Rosselini. Hitchcock descobriu Grace Kelly e nomeou-a, directa ou indirectamente, como a sua loira de eleição.

O problema é que Hitchcock parecia não querer colaborar eficientemente com os actores que o desagradavam. Grace Kelly casou e abandonou o Cinema. Ele ter-se-à voltado para Vera Miles que filmou em “O Falso Culpado” (1957) ao lado de um excelente Henry Fonda.

James Stewart era o modelo do homem comum apanhado em circunstâncias estranhas e perigosas. Stewart aparece em 4 dos grandes filmes do Mestre.

Kim Novak não agradou a Hitchcock. Teria que trabalhar com ela e filmá-la enquanto estrela de “Vertigo” (1958), uma vez que Vera Miles engravidara e o projecto das filmagens não podia ser adiado.

A relação de Hitchcock com as suas actrizes era problemática. Kim Novak é soberba em “Vertigo” mas Hitchcock insistiu sempre em subvalorizar o seu contributo para o filme.
Curiosamente veio a gostar muito de uma outra loira elegante mas com metade do talento de Novak: Tippi Hedren. Filmou-a em “Os Pássaros” (1963) e em “Marnie” (1964). Hedren não era uma grande actriz. As suas limitações estão muito evidentes no segundo filme.
O homem que outrora dissera que as lindas actrizes sedutoramente vestidas não eram mais do que um adorno suplementar, acabaria certamente por mudar de ideias; Hedren foi escolhida meramente pelo seu aspecto.


Em 1966, Hitchcock sofreu novas imposições da Universal: As estrelas do seu novo filme de espionagem seriam irrevogavelmente Paul Newman e Julie Andrews (ambos no auge da sua popularidade). Novamente Hitchcock torceu o nariz e, desta vez, desprezava o talento de dois grandes actores.

“Cortina Rasgada” foi uma desilusão. Julgo que a relação de Hitchcock com os actores terá sido determinante na falta de entusiasmo com que todos encararam o projecto. Hitchcock terá mesmo dito no 1º dia de filmagens: “Vamos lá então começar esta maçada!

O talento de Paul Newman não servia a Hitchcock para nada; e se Doris Day tivera sido bem aceite por ele em “O Homem Que Sabia Demais” (1956), Julie Andrews não era a estrela que ele considerava ideal. Ela fizera “Mary Poppins” (1964) e “Música no Coração” (1965). Compreensivelmente ele declarou: “As pessoas vão esperar que ela cante!”
Se Doris Day, actriz e cantora, tivera sido bem aproveitada, Julie Andrews não o foi. Day canta “Que Será Será” no filme de Hitchcock e interpreta o seu papel com dramatismo e intensidade. A Julie Andrews mais não coube do que um papel vazio e pobre.


Depois disso, Hitchcock nunca mais voltou a reunir em torno de si um elenco de primeiro plano.
Em “Topázio” (1969) voltou a dirigir um actor medíocre (que também utilizara em “O Terceiro Tiro” (1955)): John Forsythe. Nos anos 70, filmou em Londres “Frenzy” (1972). Depois “Intriga em Família” (1976). Os novos heróis de Hitchcock já não eram charmosos e elegantes. As actrizes de “Frenzy” são feias. Os dois casais de “Intriga em Família” eram curiosos e peculiares. Burlescos mas não brilhantes.


A relação de Hitchcock com os seus actores bem pode ter sido um entrave ao sucesso de certos filmes. E hoje lamentamos que assim tenha sido...

quinta-feira, março 02, 2006

UM PEQUENO CONTO DE HITCHCOCK


Hoje vou deixar neste espaço, para os meus leitores, um pequeno conto escrito por Alfred Hitchcock nos anos que precederam o início da sua carreira cinematográfica.

O primeiro filme realizado inteiramente por Hitchcock data de 1925: é o “The Pleasure Garden”. Mas a primeira obra genuinamente associada ao espírito hitchcockiano (do suspense, do mistério e do crime) terá sido “The Lodger” (em Portugal, “O Inquilino Sinistro”). Neste segundo filme, já lá estão as grandes temáticas do Mestre do Suspense: o psicopata perigoso, a menina em perigo, o falso culpado acusado injustamente, a densidade do mistério expressa visualmente pelo nevoeiro e pelas sombras.

“O Inquilino Sinistro” é um filme mudo e data de 1926. Mas a sua expressividade visual é notável. Foi aqui que Hitchcock começou a cimentar o seu estilo pessoal. Estilo que se alimentava de histórias emocionantes e da recriação de estados de tensão. Aqui, como mais tarde em “Psico” e “Frenzy”, o psicopata é um animal à solta.

Sete anos antes, em Junho de 1919, foi publicado numa revista o impressivo conto que aqui vos deixo. É pequeno, literariamente simples mas muito elucidativo. Parece ser uma porta de entrada para o mundo de Hitchcock. Esse universo onde o perigo e a tensão são centrais e a realidade parece subvertida. Onde o sonho e a realidade se misturam (como mais tarde em “Vertigo” (1958), “Casa Encantada” (1945), “Marnie” (1964), Rebecca (1940)” ou “Intriga em Família” (1976)). Onde a conduta das pessoas é feita a partir de escolhas nem sempre acertadas; onde quando se envereda por um mau caminho, se está sujeito à perdição. (Veja-se o percurso errante de Janet Leigh em “Psico”.)

Leiam este conto curto. Tem apenas 3 parágrafos. E vejam como o jovem Hitchcock, com apenas 20 anos e muito influenciado pelo espírito dos livros de Edgar Allan Poe, mostrava aqui a verdadeira dimensão do terror. A oposição entre o sonho e a realidade. E uma dose de ironia sarcástica.


SUFOCO
(no original “Gás”)

Ela nunca estivera antes nesta parte de Paris – conhecia-a apenas pelos romances de Duvain, ou pelas peças do Grand Guignol. Então Montmartre era aquilo? Aquele horror onde o perigo se ocultava sob a coberta da noite; onde almas inocentes pereciam sem aviso – onde a perdição confrontava os incautos – onde o Apache reinava.
Movia-se cautelosamente pela sombra do alto muro, procurando furtivamente atrás de si a ameaça oculta que poderia estar a seguir os seus passos. De repente precipitou-se por uma alameda, pouco se importando aonde ia dar… tacteando o seu caminho, através da escuridão de breu, com uma única ideia fixa na mente: enganar o seu perseguidor… E lá foi ela… Oh! Quando é que aquilo ia acabar? Então uma soleira de porta de onde fluía uma luz mostrou-se à sua vista… Aqui… em qualquer lugar, pensou ela.
A porta ficava no topo de um lance de escadas… Seus degraus crepitavam de velhos enquanto ela procurava descer… Foi quando escutou o som de um riso bêbado e estremeceu – certamente era… Não, isso não. Tudo, menos isso! Chegou ao pé da escada e viu um bar cheirando a vinho ruim, com restos do que um dia foram homens e mulheres, numa orgia de bêbados… Então eles viram-na, uma visão de pureza assustada. Alguns homens correram ao seu encontro entre os gritos de encorajamento dos outros. Foi agarrada. Gritou de terror… Melhor seria ter sido apanhada pelo seu perseguidor, foi o seu pensamento fugaz enquanto a arrastavam rudemente através da sala. Os demónios não perderam tempo a decidir o seu destino. Partilhariam os seus pertences… e ela… Ora! Aquilo não era o coração de Montmartre? Ela tinha de ir – os ratos teriam um banquete. Então amarraram-na e carregaram-na pela passagem escura, subindo um lance de escadas em direcção ao rio. Os ratos da água teriam um banquete, disseram. E então… balanceando o seu corpo amarrado para a frente e para trás, atiraram-na para as águas escuras. Foi-se afundando, afundando, afundando. Consciente apenas da sensação de sufocação. Aquilo era a morte… Então… “Saiu, madame” – disse o dentista – “meia coroa, por favor.”

Alfred Hitchcock, em 1919