quinta-feira, dezembro 13, 2007

HITCHCOCK: O MELHOR REALIZADOR DE TODOS OS TEMPOS?


É recorrente os meus amigos lembrarem-se de mim quando ouvem menções ao Hitchcock. Na verdade, o hitchcockianismo que começou sendo para mim o cultivo do fascínio por uma cinematografia, desenvolveu-se como fonte de descoberta do Cinema em geral e até como estrutura sólida para alguma da minha escrita de ficção. E converteu-se num «hobby» simpático e prazenteiro traduzido em reflexões ponderadas na esplanada de um café. Em escritas descontraídas num banco de jardim ou num local soalheiro.

O hitchcockianismo é tudo isso. Ver o Cinema de Hitchcock. Pensar nos filmes a partir das lentes da câmara de filmar de Hitchcock. Escrever e divagar, contar factos verdadeiros e ficcionados, sempre com a herança de uma cultura cinematográfica e literária já recebida.

E o hitchcockianismo manifesta-se também quando os nossos amigos se lembram de nós perante uma imagem ou fotografia, um livro ou uma revista.

Há algumas semanas, fui beber um café com dois amigos cinéfilos. Não costumo precisar de companhia dentro da sala de cinema. Como se o filme que vou ver fosse sempre um assunto particular entre mim e o cineasta que o fez. Vejo melhor os filmes num estado de isolamento moderado (pelo menos se nunca os vi antes). Mas gosto muito de conversar com quem tenha alguma cultura cinematográfica. E um dos mais interessantes ingredientes da cinefilia é a fonte de conversas que gera entre pessoas que gostam de filmes. O convívio, a comunicação, a troca de percepções e de factos concretos…

Naquela noite, um dos meus companheiros de cinefilia entregou-me um jornal. Havia-o guardado para mim. Era um exemplar (de uma edição de Setembro passado) do jornal gratuito «Metro». Na primeira página, estava uma imagem de Hitchcock. E no interior, um pequeno artigo de conteúdo polémico e pouco notável.

Em letras não muito pequenas ali estava destacado: «Hitchcock bate a concorrência e é eleito o melhor realizador de todos os tempos.» Li o artigo e depois fui à Internet tentar perceber os moldes da estatística publicada na popular revista britânica «Total Film». Tratava-se de um inquérito feito aos críticos e leitores da publicação. Alfred Hitchcock terá sido o realizador mais vezes nomeado para melhor cineasta de sempre.

Por momentos, pareceu-me pertinente reflectir sobre a possibilidade do Mestre do Suspense ser percepcionado dessa forma majestosa. Mas a ideia não bate certo. Porque nenhum realizador pode receber tal estatuto sem que muita subjectividade esteja anexa à ideia.

Não é comum encontrar Hitchcock no topo da lista dos melhores cineastas da História dos filmes. Mas é costume deparar com o seu nome na lista dos 5 ou 10 realizadores mais relevantes. A razão parece-me clara: Hitchcock está rigidamente ligado a um tipo específico de histórias – narrativas de crime e de suspense. É difícil especular se ele seria um bom realizador no âmbito de filmes de outros géneros. Ele dirigia bem os actores (quando se sentia bem com eles). Tinha vocação natural para a comédia e para o esboço de traços de humor negro. Sabia retratar o Amor e os sentimentos românticos. Mas invariavelmente os seus filmes são arrumados numa prateleira determinada.

Os filmes que fazia eram os que lhe ofereciam prazer. Não se esperava dele o “Há Lodo no Cais” (1954), “O Apartamento” (1960), “O Padrinho” (1973), “Música no Coração” (1965), “Cleópatra” (1963) ou "Easy Rider" (1969). Nem ele procurava histórias diferentes das do seu padrão habitual, nem as pessoas esperavam isso dele. Essa força com um poder duplamente incisivo delineou Hitchcock como o Mestre num estilo específico de histórias.

Um processo semelhante não ocorreu com John Ford ou com Orson Welles. Estes realizadores maiores da História do Cinema debateram temáticas sociologicamente relevantes nas suas obras. Repare-se que Ford é o cineasta-mestre dos westerns. Mas algumas das suas melhores obras como “O Informador”, “As Vinhas da Ira” ou “O Vale era Verde” nem se enquadravam de modo algum no Oeste dos cowboys.

Hitchcock, o melhor cineasta de todos os tempos? Não gosto desse tipo de apreciações relativas. No concurso (incrivelmente subjectivo), “Os 100 Melhores Britânicos de Todos os Tempos”, Hitchcock não consta na lista final – ao contrário de Charlie Chaplin. A dúvida que esta iniciativa me suscita é: o que é que faz uma personalidade ser nomeada? A sua popularidade, o seu impacto ou o seu talento e carisma?

Estas questões são sempre subjectivas e nunca unânimes. O Cinema é uma arte. Os Óscares, os Emmys e os Globos de Ouro nunca podem ter um valor absoluto. Mas Hitchcock permanece um dos cineastas mais populares do mundo. Porque os filmes dele continuam a divertir as pessoas e o público procura sempre entretenimento. Hitchcock retratou o crime e o medo de um modo particular. E ao fazê-lo, retratou-se a si mesmo, às suas obsessões e interesses.

De resto, cada pessoa revela o talento próprio no contexto da sua época e por relação com a sociedade em que vive. É impossível definir o melhor cineasta de sempre. O mais conveniente seria um homem (dificilmente uma mulher) que tivesse abordado temáticas preponderantes para a compreensão do Homem e para o progresso da Civilização; valores sociais relevantes, não histórias de espionagem e de intriga policial. Mas é impossível traduzir a complexidade da arte cinematográfica em termos tão simplistas e redutores.

sábado, novembro 10, 2007

UM BRINDE À AMIZADE


Aprendi nos meus estudos de Antropologia que o ser humano é naturalmente gregário e que vive fácil e espontaneamente em grupos ou em tribos. É um tipo de criatura que vive bem em sociedade, tomando benefício das associações que estabelece. Nos nossos dias e com a controversa mas inevitável globalização, os homens e as mulheres do mundo inteiro tendem a viver no contexto de uma mesma unidade.

Como terá afirmado Kofi Annan numa explicação sua acerca da pertinência da Organização das Nações Unidas, mais do que nunca na história humana, partilhamos todos um destino comum. Só poderemos perspectivar um futuro risonho se enfrentarmos juntos as dificuldades de todos e de cada um. Neste contexto, as artes em geral e o Cinema em particular não pertencerão a um povo ou a um país mas ao Mundo.

A união entre as pessoas é inteiramente reforçada quando nasce uma amizade ou um amor ou um qualquer tipo de dedicação. Um amigo escuta, aconselha e existe. Os amigos funcionam como redes de contactos e podem influenciar-nos de modo particular e personalizado. Cada pessoa com a sua identidade própria tem o poder e a capacidade de mobilizar recursos e mecanismos. Às vezes, um amigo não faz absolutamente nada e ajuda. Só porque existe. Só porque sabemos que está presente e que faz parte integrante da nossa vida.

Num mundo de injustiças, de desigualdades e de realidades cruéis, um amigo pode ser um contraponto à nossa tristeza e desalento. Claro que faço menção a amigos verdadeiros – não existem, na realidade, amigos falsos. Só amigos e não amigos. Já dizia Aristóteles que o infortúnio tem a capacidade de nos mostrar aqueles que são realmente amigos. Pois aqueles que se afastam quando temos problemas, não serão amigos – de modo algum.

Vejo certas personalidades do Cinema, da Música e da Literatura como uma espécie particular de amigos. Na verdade, elas não me ouvem nem aconselham. Mas existem. Estão sempre onde eu as procuro. E oferecem-me alegria, bem-estar e inspiração. Não é exactamente isso que um amigo faz? Não é exactamente esse tipo de efeitos que um amigo opera em nós?

O velho Hitchcock não me pode emprestar dinheiro se eu tiver a carteira vazia e andar esfomeado. Também não me consegue conduzir a um emprego fabulosamente bem pago e maravilhosamente recompensador e significativo. (Muito menos, sendo eu um antropólogo de formação.)

Se estiver sozinho e mal de amores, o bom Hitch não me consola por meio de palavras dirigidas assumidamente para mim. Mas ele existe nos filmes que posso sempre ver e rever. Embora nunca me tenha conhecido. Embora possa até ter trabalhado exclusivamente para si mesmo, para a sua família e para a sua consagração – e não para um antropólogo pensativo que escreveria sobre ele muitos anos depois da sua morte.

Hoje faço um brinde à Amizade e aos amigos. Procuro firmemente não parecer lamechas numa crónica com estes contornos. Haverá pessoas que vivem bem sozinhas, isoladas. Um pouco de misantropismo até é pontualmente conveniente. Todos precisamos de momentos de privacidade. Mas eu não vivo bem sem os meus amigos.

Eles sabem quem são. E à sua maneira, entre eles, estão pessoas cujo talento e cujo desempenho no passado ainda hoje contribuem para o meu bem-estar. Gershwin, Bach, Ella Fitzgerald e Amália, Julie Andrews e Nat King Cole. Os Madredeus e Rodrigo Leão. David Lynch com as suas bizarrias. Iñárritu com as suas histórias habilmente cruzadas entre si. Frank Capra com as suas inspiradas lições de Vida. Fritz Lang com os seus pesadelos fílmicos. Jacques Tati com os seus sorridentes retratos do nosso mundo. Bernard Herrmann cuja música casa em perfeição com as imagens de cineastas como Hitchcock, Truffaut e Scorsese. Ou Henry Mancini, compositor, cujos trabalhos tanto agradam no contexto dos filmes como em CD.

O ser humano vive da Lógica e da Emoção. Do Raciocínio e dos Sentimentos. É quase imperativo tomarmos consciência da alegria que os nossos amigos nos despertam. Hoje brindo à Amizade. Aos amigos. Aos meus amigos e aos dos outros. À Amizade. A todos os tipos de Amizade verdadeira.

ALGUNS AMIGOS NA CINEMATOGRAFIA DE HITCHCOCK:

- Em "Vertigo", Tom Helmore é o pior amigo que se pode imaginar.

- Em "Desconhecido do Norte-Expresso", Robert Walker é um amigo estranhamente dedicado que só oferece amizade ou morte.

- Em "A Corda", os dois amigos que matam não são unidos por amizade mas antes por um amor proibido.

- Em "Mentira", Hume Cronyn é o perfeito amigo que nos visita rotineiramente e conversa connosco sobre as trivialidades que nos divertem.

- Em "Frenzy", Clive Smith é o amigo que ajuda até certos limites, nomeadamente enquanto a sua mulher tolerar isso.

- Em "Difamação", os amigos de Claude Rains, aqueles que frequentam a sua casa, aqueles com quem comunica directamente, são os seus carrascos.

- Em "Janela Indiscreta", Wendell Corey é o amigo que não ajuda muito, que solta graçolas a nosso respeito mas cujo número de telefone temos na nossa agenda.

- Em "Casa Encantada", Michael Chekhov é o velho amigo, conselheiro e protector, sapiente e vivido, a quem recorremos em busca de orientação e de conselhos.

- Em "O Homem Que Sabia Demais", os amigos parecem vir depois da família.

- Em "O Terceiro Tiro", os amigos funcionam como uma rede de solidariedade que combate as irónicas adversidades.

terça-feira, outubro 23, 2007

«ALFRED HITCHCOCK APRESENTA» EM PORTUGAL


Chegou finalmente ao mercado português do DVD a série televisiva a que Hitchcock emprestou o seu nome. Como ele costumava proclamar com ironia, por meio daqueles episódios semanais de meia hora, o crime chegava verdadeiramente ao seu local legítimo: o lar das famílias.

Embora nos anos 50, a indústria cinematográfica temesse as potencialidades da Televisão e Hitchcock não fosse um fã declarado das produções televisivas, esta série histórica ajudou a popularizar a imagem dele junto de variadíssimas audiências à escala mundial.

Hitchcock procedia invariavelmente à apresentação de cada história com uma ironia retorcida e sarcástica. Fazia-o num tom fleumático e jocoso. Falava pausada e arrastadamente (como lhe era natural) em cenários minimalistas ou que caracterizavam realidades particulares.Frequentemente, o contexto de onde falava remetia para a narrativa do episódio.

Nunca como desde o início da série, em 1955, o seu rosto, a sua figura, os seus traços típicos e as suas idiossincrasias foram tão popularizados e difundidos. Era esse o poder da Televisão.

A primeira temporada teve início a 2 de Outubro de 1955 com um episódio directamente realizado por ele: “Revenge” com Vera Miles. A transmissão foi feita no horário nobre (21.30) de um domingo, pelo canal CBS.

Até Junho de 1962, ao longo de sete temporadas, foram emitidos 268 episódios. Eram narrativas que frequentemente terminavam com um triunfo do Mal ou com uma máxima contrária à moral de que o crime não compensa. A seu modo, eram propostas destabilizadoras porque representavam uma violação dos códigos de ética dos programas da época.

A televisão americana sempre foi muito severa quanto ao conteúdo das obras a transmitir. No domínio das séries de ficção, a divulgação de costumes eticamente reprováveis, a nudez e a má linguagem são por norma reprovados. Ainda hoje assim sucede. E é compreensível que se preserve algum zelo em relação a um meio de comunicação que pode chegar a todas as pessoas de todas as idades.

Nos nossos dias, o desempenho dos canais por cabo como a HBO tem sido decisivo para aniquilar ou atenuar inúmeras restrições instituídas. Séries como “Os Sopranos”, “Sete Palmos de Terra” ou “Roma” só conheceram a luz do dia no contexto de uma televisão que funciona segundo normas mais liberais.

Quando nos anos 50, nos episódios de “Alfred Hitchcock Presents”, os espectadores liam uma perversão dos princípios éticos – o criminoso mata e sai impune da situação – obviamente daí decorria uma irónica vibração dos valores do Bem e do Mal.

Alfred Hitchcock falava para a audiência depois do anúncio comercial do fim e costumava sentenciar que o criminoso (vilão ou não) iria ser apanhado desta ou daquela forma porque cometera este ou aquele erro. Deste modo, ele calava alguns espíritos inquietos e forçava a aceitação do episódio. No entanto, o que todos haviam visto com os seus próprios olhos fôra a prática de um crime e não a condenação declarada de um criminoso.

O universo de “Alfred Hitchcock Presents” contém histórias muito diferentes e de qualidade variável. Habitualmente, o espectador sentia empatia com o criminoso porque este era uma vítima das circunstâncias e o crime era a melhor (e mais merecida) resolução dos seus problemas.

Chantagistas, maridos violentos e insensíveis, mulheres infiéis e sem escrúpulos, ladrões e corruptos que destroem friamente a vida dos outros merecem uma punição. Hitchcock mostrava a sua própria moral. Em termos irónicos, ele quase subvertia a ordem da justiça porque nos deixava aceitar uma vilania ou um crime.

Muitos actores célebres (na época ou em fases posteriores) participaram na série. Nomeando somente alguns, lá encontramos Charles Bronson, Robert Redford, Steve McQueen, Peter Lorre, Robert Duvall, Vera Miles e Joseph Cotten.

De entre os escritores cujo trabalho foi adaptado para a série contam-se nomes distintos como os de Alexander Woolcot, John Wyndham, Ray Bradbury, H. G. Wells e Robert Bloch.

Hitchcock sugeria actores para o elenco assim como histórias e argumentistas com potencialidades evidentes. Ele visionava cada episódio antes de este ir para o ar. E gravava a mencionada apresentação feita por si que era adequada a cada história. Fazia discursos sintéticos e irónicos, parodiando a própria Televisão e a incursão incómoda dos filmes publicitários.

Mas por muito que ele desprezasse a Televisão, ela foi para ele um veículo fundamental de promoção do seu nome e da obra que lhe está associada. E por muito que detestasse os anúncios, o apoio financeiro das empresas patrocinadoras era quase indispensável.

As sete temporadas de “Alfred Hitchcock Presents” antecederam o “The Alfred Hitchcock Hour” que se compõe de 93 episódios de 45 minutos (originalmente transmitidos entre Setembro de 1962 e Maio de 1965). No total, podemos contabilizar 361 episódios que pronunciaram a fama do Mestre do Suspense durante uma década.

Na realidade, o papel de Hitchcock em todo este projecto não era senão essencialmente promocional. Das três centenas de episódios, ele só terá realizado pouco mais do que uma vintena.

A primeira e a segunda temporadas que podemos encontrar à venda em DVD no mercado nacional reúnem 78 episódios. Das 39 histórias da Série 1, só três delas são inteiramente assinadas por ele. A saber: “Revenge” (2 de Outubro 1955), “Breakdown” (13 de Novembro 1955) e “The Case of Mr. Pelham” (4 de Dezembro 1955).
Do pacote da segunda temporada, Hitchcock realizou três episódios também: “Wet Saturday” (30 Setembro 1956) , “Mr. Blanchard’s secret” (23 Dezembro 1956) e o aclamado “One More Mile To Go” (7 de Abril 1957).

Poderá parecer que a supervisão dos scripts e os pontuais aconselhamentos e sugestões do cineasta não farão desta série uma obra genuína de Hitchcock. E será verdadeira essa percepção. A partir de dado momento, até os textos lidos por ele nas apresentações eram concebidos e estruturados por especialistas do discurso e da comunicação.

Ainda assim, a obra cinematográfica de Hitchcock era muitíssimo relevante e a série funcionou com um importante apêndice. Quem gostava dos episódios da série, era alimentado por uma crescente curiosidade em relação ao cinema do Mestre do Suspense.

O filme “Psico” (1960) foi o ponto de contacto perfeito entre os dois universos: o da Televisão e o do Cinema. A equipa técnica do filme incluiu quase só pessoal que trabalhava na série. “Psico” nasceu como um projecto experimental e de baixo orçamento. (Mas continha nas suas raízes enormes potencialidades.)

“Alfred Hitchcock Apresenta” é um importante documento histórico. A melodia do genérico – «Funeral March of the Marionette» de Charles Gounod – permanece o mais directo símbolo de identificação sonora de Hitchcock. Nos nossos dias, há quem guarde os acordes da melodia no seu telemóvel. Ninguém reconhece aquele trecho como sendo de Gounod mas antes num processo de associação a Hitchcock.

O tema de Gounod adaptado para a série foi inclusivamente usado em “Cortina Rasgada” (1966). A banda sonora daquele filme desvia-se da sua orientação natural no momento da aparição de Hitchcock. Ele está sentado no átrio de um hotel e uma criança que tem ao colo urina-lhe sobre a perna. Trata-se de uma piscadela de olho aos hitchcockianos. E só dura alguns segundos.

Aplaudo a edição portuguesa das séries 1 e 2. Nos EUA, foi recentemente lançada a terceira temporada. Para um hitchcockiano que vive de um salário pequeno e de uma formação académica na área da Antropologia, o investimento financeiro parece ser mais pertinente na compra de filmes do cineasta. Defendo indubitavelmente que é no universo cinematográfico de Hitchcock que se revela a sua grandeza artística e intelectual. E se precisarmos de escolher, eu não hesito.

No entanto, já me imagino a ver episódios desta série em tardes chuvosas de domingo. Naqueles dias e noites em que nos sentimos aconchegados em casa a ver no pequeno écran a aflição e o desespero das vítimas de Hitchcock. Estes crimes são feitos para o lar. E devem-se ver e rever com agrado no sofá da sala ou no calor dos lençóis da cama.

O reencontro com cada episódio nesta impecável edição em DVD (embora sem extras) pode facultar ao espectador um contacto mais consciente com cada produção. E uma identificação mais transparente das virtudes e defeitos de cada programa.

Recentemente, a revista Time colocou “Alfred Hitchcock Presents” na lista dos 100 melhores shows televisivos de todos os tempos. A série foi galardoada com emmys, globos de ouro e outras distinções. Agora, 50 anos depois de ter estreado, ela pode ser vista em DVD. Com outros olhos.

quarta-feira, outubro 03, 2007

ANTHONY HOPKINS SERÁ ALFRED HITCHCOCK


É oficial e já foi divulgado por vários órgãos de comunicação. Anthony Hopkins vai representar o papel de Alfred Hitchcock num filme que contextualiza a vida do cineasta no período da realização de "Psico".

Há vários meses que o projecto é discutido mas sempre com muito secretismo. Comenta-se, desde o início, que a nova película irá mostrar as dificuldades inerentes à rodagem daquele clássico do suspense, numa época em que os limites impostos pela censura eram muito severos.

"Psico" surgiu em 1960 como um projecto irreverente, chocante e contrário aos modelos cinematográficos tradicionais. A ideia de filmar a morte bárbara de uma (bela) rapariga nua era impressionante e quase inconcebível, naqueles dias. E Hitchcock terá necessitado de contornar habilidosamente os preconceitos generalizados.

No mesmo ano, o cineasta Michael Powell apresentaria em Inglaterra uma obra perturbante sobre um psicopata que gosta de filmar a morte das suas vítimas – "A Vítima do Medo" ("Peeping Tom"). Mas a realidade no cinema europeu era diferente daquela que caracterizava Hollywood.

O novo filme procurará mostrar pormenores acerca da rodagem de um filme polémico. Uma película que hoje nos poderá parecer um pouco inofensiva (mas nunca menor). De Hitchcock, Walt Disney terá proferido um dia: «Não quero Alfred Hitchcock a filmar no meu parque de diversões; não alguém capaz de conceber uma obra tão asquerosa como "Psico".»

O filme será realizado por Ryan Murphy (que está muito relacionado com a criação da série televisiva "Nip Tuck"). O argumento está nas mãos de John McLaughlin.

"Alfred Hitchcock and the making of Psycho" contará com a preciosa participação da actriz Helen Mirren no papel de Alma Reville (a esposa do cineasta). As filmagens terão início em Janeiro. O título com que é actualmente apresentado parece-me desinspirado e talvez não seja definitivo.

Será expectável que uma boa camada do público não consiga ver Hitchcock no rosto de Hopkins, por muito apurado que seja o trabalho de caracterização do actor. É bem sabido que Anthony Hopkins é um actor de primeiro nível. (Vejam-se “O Homem-Elefante” (1980) , “O Silêncio dos Inocentes” (1991) e “Os Despojos do Dia” (1993) mas também a composição que faz de figuras históricas como Pablo Picasso e Richard Nixon).

Observaremos se conseguirá ser profundamente credível na recriação de uma figura tão singular como a de Hitchcock. Não sou adepto de filmes biográficos. Mas o exemplo de que, às vezes, a fórmula funciona está em Helen Mirren e na sua brilhante composição da Rainha Isabel II de Inglaterra. Veremos como o nobre actor Sir A.H. irá recriar a imagem do mítico cineasta Sir A.H. A proposta é, à partida, interessante mas não marcadamente entusiástica.

O filme só será estreado no final de 2008. No mesmo ano, uma outra obra potencialmente mais interessante será apresentada. "Número 13" será uma comédia negra em que veremos um Alfred Hitchcock muito jovem dirigindo o seu primeiro filme (que não chegou a ser concluído e cujo guião e imagens registadas se perderam no tempo.

Sobre “Number Thierteen” de 1923, não se sabe muito. A falta de conhecimentos tem sempre alimentado alguma especulação. O que neste novo filme se vai mostrar é uma mistura divertida de factos reais com peripécias inventadas segundo um argumento imbuído de ironia e humor negro.

Dan Folger encarnará o jovem Hitch nesse momento preciso em que terá assumido o seu primeiro trabalho de realização: uma comédia. Hitch ver-se-à envolvido, durante as filmagens, no drama emocional de um triângulo amoroso.

O desaparecimento do actor principal, Ernest Thesiger (Ben Kingsley) proporcionará a Hitchcock modificar o argumento e transformá-lo numa história policial. Esta viragem no espírito do filme que é manipulada por Hitchcock vem a reafirmar o seu apreço pelos policiais e pelas intrigas com crimes. O que o colocará a meio caminho de se tornar um realizador de filmes do género. E no futuro Mestre do Suspense.

Converter uma comédia num filme de mistério parece mais do que agradável e oportuno para o jovem Hitchcock de 23 anos. O problema é que se suspeita que Thesiger foi morto, sendo que o editor do filme (Ewan McGregor) começa a desconfiar que Hitch pode ter sido o autor do crime.

Chase Palmer estreia-se na realização conduzindo um cast brilhant. Para além de Kingsley e McGregor, também estará presente no filme a actriz Emily Mortimer que vimos em “Match Point” (2002) de Woody Allen.

Esta história irónica parodia os acontecimentos reais em torno da rodagem de "Number Thirteen" em 1923 e coloca o próprio Hitchcock no papel de falso culpado, vítima das circunstâncias que o dão responsável por algo que não fez. Tudo parece indicar que o guião tem potencialidades. O tempo trará certezas.

Hitchcock continua a inspirar argumentistas e realizadores. Agora, ele surge-nos como personagem nas próprias histórias, em momentos distintos da sua carreira. E possivelmente segundo diferentes tipos de abordagem. Cá estaremos para ver.

terça-feira, setembro 25, 2007

UMA EXPERIÊNCIA CHAMADA «UNDER HITCHCOCK» - CONCLUSÃO


As curtas-metragens do «UNDER HITCHCOCK» propõem aproximações de diversos estilos ao cinema do cineasta. Enquanto apreciador de uma arte cinematográfica que conta histórias, penso fui particularmente sensível ao filme alemão de Birgit Lehman que foi também aquele que mais me divertiu. Embora até possa ser considerado o que é artisticamente menos arrojado e tecnicamente menos inventivo.

O filme intitula-se “Quando Hitchcock se encontrou com Else Eiermann em Auerstedt”. É uma curta-metragem concebida como um registo documental e que reconstrói uma verdade histórica ignorada. Claro que todo o filme é uma invenção inspirada e graciosa. Com muito do típico humor hitchcockiano.

Segundo a voz-off que interliga os acontecimentos num tom jornalístico apurado, Alfred Hitchcock terá visitado a pequena comunidade de Auerstedt, na Alemanha de Leste, em 1956. Aí terá conhecido uma mulher sinistra que o terá inspirado a conceber as ideias para o seu grande sucesso de 1960, “Psico”.

São exibidos no documentário testemunhos de muitos habitantes da terra que explanam como a mulher era estranha, que se referem ao modo insólito como se vestia, que explanam como tinha costumes bizarros; e que comentam o facto de ela dizer que tinha um grande amigo inglês – sem que ninguém acreditasse nela.
A descoberta de uma fotografia antiga foi fulcral para a revelação de um mistério mantido oculto. Nela vemos um cenário inóspito da terra com várias pessoas na perspectiva da câmara. E nela encontramos alho de extraordinário: Else Eiermann a conversar amenamente com Alfred Hitchcock. (Claro que se trata de uma divertida montagem.)

Else Eiermann seria uma mulher idêntica a Hitchcock sob muitos aspectos. Era uma solitária e gostaria de ter tido marido. (O testemunho de uma senhora é lacónico: «Claro que ela procurava um marido e Alfred Hitchcock servia-lhe mas quem poderia gostar de casar com alguém tão feio como ele?»)

A personalidade de Hitchcock (aqui não inventada à toa) é equiparada à da mulher na medida em que ambos tinham propensão para o isolamento e fascínio pelo universo do Sinistro e do Macabro. E ambos tinham sido educados de modo severo e inibitivo.

A mãe de Else terá morrido de modo estranho. A filha colocou o seu cadáver sobre uma cadeira, à janela da casa e preparou a postura do corpo para que parecesse que ela estava a tricotar. Durante dois dias, os habitantes locais terão visto o corpo da mulher à janela, presumindo que ela estava viva. No terceiro dia, visitas terão entrado na casa e detectado com horror que o cadáver estava em decomposição e cheirava muito mal.

O apego à mãe que era fulcral para uma mulher solitária e marginalizada como Else, tê-la-ia levado a fazer-se acreditar que não estava sozinha e que a mãe continuava viva. E tê-la-ia conduzido a cuidar preciosamente do cadáver enquanto o manteve em casa.

Else conversaria espontaneamente com o seu amigo inglês que ficou fascinado com a figura da mulher e com a obsessão dela pelo corpo morto da mãe. A imagem da mãe de Norman Bates, para o filme “Psico”, terá nascido como resultado deste encontro mantido secreto durante décadas.

A voz-off vai mais além nas suas revelações. Não só Else inspirou Hitchcock mas toda a terra onde ela viveu, Auerstedt. Os campos agrícolas de cultivo de “Intriga Internacional” (1959) e de “Cortina Rasgada” (1966) são em tudo semelhantes aos que ele viu em Auerstedt. O estilo arquitectónico de uma igreja local com os seus claustros foi uma inspiração para a concepção visual de certas imagens de “Vertigo” (1958).

O fascínio de Auerstedt que é uma comunidade ignorada pelo mundo só foi assim descoberto por Hitchcock. E terá servido para perpetuar o seu sucesso e cimentar ideias para as suas obras mais emblemáticas.

Depois de ter passado por Auerstedt em 1956, o espírito de Hitchcock foi iluminado por ideias e por imagens inspiradoras. O testemunho de um habitante local é expressivo: «Não me admiro que Hitchcock gostasse de Else Eiermann. Vi uma vez um trailer de um filme dele e achei-o tão estranho como aquela mulher.»

O tom irónico mas circunspecto do filme de 15 minutos torna-se cómico e divertido. E é servido por boas fotografias de Hitchcock, por imagens dos seus filmes e por uma música original muito adequada. Quem ouse defender que é uma curta-metragem artisticamente pouco criativa, não poderá argumentar que é pouco apelativa ou aborrecida. Este não é um trabalho de artes plásticas. Mas uma aplicação contemporânea do tema ao domínio do audiovisual. Feita com humor e profissionalismo.

A jóia da coroa das curtas-metragens da exposição «UNDER HITCHCOCK» seria “Phoenix Tapes” – trabalho encomendado no ano do centenário do nascimento do Hitchcock (1999) pelo Museu de Arte Moderna de Oxford. A tarefa foi confiada a dois grandes conhecedores da filmografia do Mestre do Suspense: Matthias Muller e Christoph Girardet.

O filme revelou-se-me menos imaginativo e genial do que esperava. Os autores trabalharam cenas da filmografia de Hitchcock e montaram-nas segundo temáticas: seis capítulos autónomos. Aqui, o trabalho de montagem é importante. E aquela associação de ideias entre cenas distintas de distintos filmes só poderia vir de quem conhece bem o universo fílmico de Hitchcock.

Chaves, provas de culpabilidade mostradas em grande plano, posturas físicas, beijos carregados de paixão, facas, pistolas, pessoas em suspensão nas alturas… As grandes temáticas de Hitchcock são concisamente mostradas num filme de 45 minutos com imagens de 40 filmes.

O capítulo de entrada mostra cenas em que o poder do som é relevante. Passos, estalidos, ruídos no silêncio. É bastante notável o arranjo sequencial das imagens. Mas é forçada a repetição de imagens. (Como a de Paul Newman percorrendo o Museu em “Cortina Rasgada”)

Noutro capítulo, usa-se um encadeamento de imagens para encenar uma espécie de sonho no domínio das linhas do caminho-de-ferro. O poder hipnótico da viagem embala o espectador numa viagem alucinante. São usadas cenas que decorrem em comboios. (Proliferam comboios na filmografia de Hitchcock.) O som é trabalhado para que se sinta o movimento das carruagens sobre os carris – de modo repetido e continuado. Vive-se numa atmosfera sonhada ou num sonho com contornos de realidade. Às tantas, questionamo-nos: o comboio em que viajamos segue os carris ou já saiu deles? Daí o nome do capítulo ser «Descarrilado».

Penso que o melhor capítulo é aquele que se intitula «Why don’t you love me?». Aqui debatem-se os problemas de personalidade decorrentes da relação de uma pessoa com a sua mãe. Há imensas mães dominadoras ou poderosamente influentes no cinema de Hitchcock. (A mãe do cineasta era, a seu modo, particularmente decisiva no pensamento dele.)

Parece-me engenhoso ir capturar a cantilena das crianças em “Marnie” (1964). Aquela em que se canta repetidas vezes «Mother, mother, I am sick…» Neste contexto, vemos imagens de Difamação (1946) – algumas em repetição – “Suspeita” (1941), “Desconhecido do Norte-Expresso” (1951), “Intriga Internacional” (1959), “Marnie”, “Os Pássaros” (1963) e obviamente “Psico”.

Há um momento desconcertante. Aquele em que vemos Norman Bates na cela, olhando morbidamente para o vazio, enquanto ouvimos cantar o tema clássico de “O Homem Que Sabia Demais” (1956), “Que Será, Será”. As palavras cantadas numa melodia radiosa encaixam de modo macabro sobre o drama do filho da Sra. Bates: «Quando eu era pequeno, perguntava à minha mãe o que viria a ser.» Irónico e sarcástico.

O capítulo final do filme mostra-nos uma imagem decomposta de Ingrid Bergman em “Sob o Signo do Capricórnio” (1949). É uma imagem com um movimento muito lento que traduz uma certa necrofilia. Bergman está de olhos entreabertos, abre-os e fecha-os como se estivesse a meio caminho da Morte e, mesmo assim, revelasse uma estranha e desperta beleza. No rosto dela, estão uns olhos vidrados que contemplam o nada; ou uns olhos carregados de melancolia e cujo aparente brilho só vem das lágrimas. O mistério está em tentar decifrar aquela tristeza quase apatia ou aquela apatia quase morte.

O resultado parece-me rebuscado e inconsequente. Num trabalho como “Phoenix Tapes”, toda a deturpação e repetição de imagens me parece abusiva. A condução do filme não é brilhante nem carregada de emoção como seria de esperar numa obra de condensação de imagens e sons do universo hitchcockiano.

“Phoenix Tapes” tem um ritmo incerto e um final pouco arrebatador. Os seus autores conduzem inutilmente o espectador a um final que é frio e apático como a Morte. Com o fim da projecção, sem música nem qualquer tipo de som, a pequena plateia da Cinemateca foi transportada a um desconcertante beco sem saída. A Morte é um tema central no cinema de Hitchcock. Mas mais importante do que a morte, são os sentimentos bem vivos da paixão e do desejo. “Phoenix Tapes” deveria terminar em apoteose. Não em apatia.

«UNDER HITCHCOCK» é uma proposta louvável que permite cruzar a obra de um cineasta clássico e emblemático com o universo das artes modernas.
Estes oito filmes que são apresentados diariamente em Vila do Conde (nos monitores da exposição) são reflexos de uma arte aberta a novos conceitos.
O que interessa verdadeiramente nestas iniciativas é a estimulação dos nossos sentidos; e a reavaliação constante da Vida e dos nossos valores fundamentais. Toda a experiência artística causa um efeito. Hitchcock costumava dizer que os seus filmes funcionam como choques benéficos para as audiências, como estímulos emocionais e sensoriais.

Lamento que a exposição «UNDER HITCHCOCK» não seja trazida até Lisboa. Pois envolve muito mais material do que este conjunto de oito curtas-metragens. Saudações para a Solar – Galeria de Arte Cinemática de Vila do Conde. As congratulações de um hitchcockiano sincero.

segunda-feira, setembro 17, 2007

UMA EXPERIÊNCIA CHAMADA «UNDER HITCHCOCK» - PARTE I


Toda a arte é susceptível de inspirar outra arte. Dito de outra forma, qualquer forma artística é potencialmente condicionadora de outras criações. De modo directo e transparente. Ou por meio de mecanismos subliminares e pouco evidentes.

O cinema de Hitchcock, por exemplo, tem alimentado a imaginação de muitos realizadores e produtores da indústria dos filmes e também a forma estética e emocional de muitas obras cinematográficas. Mas o Cinema também condiciona e inspira outras artes.

A Solar – Galeria de Arte Cinemática (em Vila do Conde) propõe aos seus visitantes uma interligação entre a arte contemporânea e o Cinema. Tem estado patente no espaço, desde dia 7 de Julho, uma exposição de arte inspirada em Hitchcock. Muito em particular, pela mostra contextualizada (em cenários adequados) de trabalhos fotográficos, vídeos e criações no domínio das artes plásticas. Trata-se de uma revisitação do universo hitchcockiano feita por artistas que recorrem às tecnologias do século XXI e que reflectem sobre a imagem simbólica de Hitchcock e sobre a sua obra cinematográfica.

O nome da exposição é «UNDER HITCHCOCK». E trata-se de uma iniciativa sem precedentes em Portugal. Até porque foi feita em associação com o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde.

Na programação do Festival deste ano, foram delineadas duas sessões distintas com dez curtas-metragens americanas e europeias inspiradas em Hitchcock. Oito desses pequenos filmes foram trazidos a Lisboa para serem exibidos no dia 11 de Setembro, na Cinemateca Portuguesa, sala mais pequena.

Claro que uma sessão com filmes que extravasam o domínio pleno do Cinema não é necessariamente apelativa para qualquer cinéfilo. A Sala Luís de Pina com cerca de 50 lugares estava cheia mas, pelo menos, quatro pessoas saíram antes da conclusão das projecções.

Várias das obras mostradas numa sessão com cerca de 98 minutos se caracterizam por mostrar um arranjo (ou desarranjo) das imagens dos filmes de Hitchcock. Os filmes de Les Leveque são sintomáticos desse propósito. O autor pegou em “Casa Encantada” (1945) e em “Vertigo” (1958) e decompôs as imagens dos filmes desde a primeira à última cena. Em apresentações com um ritmo frenético e alucinante.

Em “2 Spellbound” (que podemos ler “Para Casa Encantada”) é utilizado como instrumento de trabalho um filme a preto e branco, com imagens expressivas e carregadas de símbolos psicológicos – ou não fosse a Psicanálise uma temática central no filme.

“4 Vertigo” (que também podemos ler “Para Vertigo”) parte de uma obra cinematográfica com imagens de grande beleza e imbuídas de onirismo e melancolia.

Estes são trabalhos de um artista plástico que trabalha a imagem no seu sentido estético. O som dos filmes é uma distorção repetitiva das suas bandas sonoras. Não há neles propósitos narrativos, uma história com princípio, meio e fim. A menos que conheçamos bem os filmes de Hitchcock. Mas as histórias não são essenciais e o conteúdo narrativo das imagens aqui é irrelevante. Os trabalhos de Leveque funcionam como caleidoscópios em que vemos as imagens reflectidas – num filme a dobrar, noutro a quadruplicar.

O propósito de experiências destas é interessante. Quase todas as criações artísticas têm o seu valor próprio que lhes está inerente. Mas um amante do Cinema não está necessariamente preparado para ver películas clássicas com uma estrutura tradicional tratadas de um modo irreverente. Daí que eu ouse concluir que o esforço decorrente de um tipo de arte como este é meritório mas um pouco ineficaz.

Ver passar o “Vertigo” inteiro em 9 minutos e com a imagem decomposta e multiplicada por quatro é curioso. O problema é que se torna cansativo o ritmo mecânico e pouco emocional do trabalho. O mesmo se aplica ao filme que desenrola a fita inteira de “Casa Encantada” em 7 minutos. Embora o número 2 seja muito significativo no cinema de Hitchcock com toda a carga da duplicidade que lhe está inerente. E em “2 Spellbound” o que vemos são imagens de Hitchcock duplicadas e reflectidas sobre si mesmas.

Afinal, no filme original, Gregory Peck está em busca da sua identidade. Ele tanto pode ser um homem inocente como um criminoso. Assim como o amor de Ingrid Bergman por ele tanto pode ser entendido como sendo uma loucura inconsequente e ilógica; ou uma dádiva preciosa que lhe é oferecida pela sua intuição especial. Daí que ver “Casa Encantada” em duplicado possa ser uma forma diferente de viver e de apreender o espírito do filme.

“Spherical Coordinates” de Gregg Biermann é um trabalho do mesmo estilo. Decompõe a cena da fuga de Janet Leigh perseguida pelo carro da Polícia em “Psico” (1960). É uma obra visualmente engenhosa, que causa algum assombro porque distorce a imagem original segundo coordenadas esféricas, circulares. É alucinante o ousado. E aplica o modelo visual à própria narrativa, na medida em que desenrola coerentemente a cena até dado momento e depois começa a passá-la no sentido inverso. (Com os carros a andarem para trás.)

Diria que Saul Bass fez qualquer coisa de idêntico para o genérico do filme “Seconds” (1966) de John Frankenheimer. E atrever-me-ia a acrescentar que David Lynch poderia gostar de um artista como Gregg Biermann para trabalhar algumas imagens dos seus filmes alucinados. Penso em cenas do seu “Eraserhead” (1977) e nos primeiros minutos do “Homem-Elefante” (1980).

O sueco Tobias Anderson concebeu um écran com 9 rectângulos e colocou em cada um deles uma imagem em movimento de “A Corda” (1948). O trabalho parece-me relativamente oco. Com um som de pessoas em burburinho, num diálogo contido e distorcido. Este “Nine Piece Rope” trabalha sobre uma película em que o cenário de pessoas em diálogo é o objecto central – ou não fosse uma espécie de peça de Teatro laboriosamente arquitectada em termos cinematográficos.

Em cada rectângulo, as imagens vão mudando. No resultado final, as nove peças nunca se encontram. As diferentes peças do puzzle nunca encaixam no espaço e no tempo. O filme tem 2 minutos, tempo escasso para ser detectado com facilidade algum tipo de alinhamento intencional nas imagens. O olhar do espectador perde-se em 9 écrans dentro da mesma imagem, dispersa-se, procura orientações. Não creio que esta criação tenha mais do que um valor estético (e mecânico) como nos filmes americanos de Les Leveque.

O mesmo autor mostra-se mais engenhoso no domínio da animação. Em “879 Colour”, ele propõe uma revisitação a “Intriga Internacional” (1959) feita num minuto. A base da animação é um conjunto de 879 desenhos (concebidos originalmente a preto e branco e que depois foram coloridos).

Os desenhos são decalques apurados de imagens do filme e são apresentados numa sucessão rápida. Trata-se de um exercício engraçado, com uma música jocosa e pontualmente típica de cartoons animados.

“Bodega Bay School” também de Anderson é outra animação rigorosamente preparada a partir da sequência do ataque aterrorizante à escola em “Os Pássaros” (1963). Aqui, como no grande cinema de Hitchcock, o essencial não é visto mas subentendido, subliminar. E o terror não nasce do que se mostra mas da antecipação do que está para vir.

Nesta animação que deve ter um tempo absolutamente concordante com o da cena original (5 minutos), é imprescindível conhecer a narrativa tal como foi concebida e mostrada por Hitchcock. Porque os desenhos decalcam as imagens do filme até ínfimos pormenores e plano a plano mas excluem do cenário todas as pessoas e todos os pássaros.

A música perturbadora do filme não é um tema orquestral sombrio mas a lenga-lenga que as crianças cantam na escola. De modo obsessivo e enervante. Tal como no original de Hitchcock. Poder-se-ia pensar que o som da animação é o som inalterado do filme. Mas não existe o menor diálogo. Nem mesmo quando a Professora declara: «Meninos, vamos fazer uma saída ordeira da escola.» As palavras também foram extraídas. O filme acaba quando o terror atinge o clímax. A imagem afasta-se da escola e ouvimos o som ensurdecedor e estridente dos pássaros em fúria.
(continua)

quinta-feira, setembro 06, 2007

HITCHCOCK NO BIOGRAPHY CHANNEL




O Canal Biography exibe e repete por estes dias um documentário interessante sobre Hitchcock. Digamos que não se trata de um programa exemplar ou imprescindível. Mas é um trabalho que condensa em cerca de 90 minutos (2 partes de tempo semelhante) os principais aspectos da vida e da personalidade do cineasta e transmite sucintamente uma imagem da sua carreira.

O principal trunfo do documentário integrado na série “True Hollywood Stories” é o contributo de muitas pessoas que trabalharam com Hitchcock e o conheceram e que oferecem depoimentos muito relevantes: desde a sua filha Patrícia (que participa em muitas destas iniciativas) às suas netas; desde actores (como Farley Granger, Janet Leigh, Tippi Hedren, Hume Cronyn ou Bruce Dern) até argumentistas (como Joseph Stefano de “Psico” ou Evan Hunter de “Os Pássaros”); desde estudiosos da obra de Hitchcock como Camille Paglia, Dan Auiler (autor de um livro sobre “Vertigo”) e Stephen Rebello (ensaísta de um trabalho sobre “Psico”) até ao biógrafo de Hitchcock, John Russel Taylor.

Este parece ser mais um trabalho sobre a personalidade de Hitchcock e sobre o desenvolvimento factual dos acontecimentos ao longo da sua vida do que acerca da arte do cineasta. O documentário quase não apresenta imagens dos filmes nem quaisquer excertos das suas bandas sonoras.

Os instrumentos narrativos que completam os testemunhos das pessoas entrevistadas são usados estrategicamente mas de modo simples: uma imensidão de fotografias, algumas delas raras e muito interessantes; partes significativas de alguns trailers; e filmes amadores rodados por Hitchcock (ou por personalidades próximas dele) no quotidiano da sua família ou em ambiente de filmagens. Algumas imagens de época são integradas nos momentos certos para enquadrar a carreira de Hitchcock no seu contexto histórico.

Este documentário mostra Hitchcock mais do que qualquer outra pessoa. As imagens que o mostram nos anos 20 e 30 revelam-nos um homem muito mais brincalhão e menos soturno do que é habitual. Brincando com os amigos, pedalando de bicicleta e levantando a saia a uma actriz. Um excerto de uma conversa com Anny Ondra (protagonista de “Pobre Pete” (“The Manxman”) e “Chantagem” (“Blackmail”), filmes de 1929) é particularmente exemplificativo de como ele gostava de gracejar e de como o fazia com aparente naturalidade.

Por outro lado, as imagens de Hitch com a sua esposa Alma e com a filha Patrícia são sintomáticas do seu carinho e devoção à família.

Nos primeiros minutos do programa é declarada a intenção do trabalho: divulgar uma investigação minuciosa em torno da vida e da obra de Hitchcock. Verifica-se que o percurso biográfico do Mestre do Suspense é razoavelmente explanado. Assim como as particularidades da sua complexa personalidade. Mas fica-se com a ideia de que aqui não se debate de modo aceso o conceito de Cinema segundo Hitchcock, os seus métodos, as suas opções técnicas e os seus ideais cinematográficos.

Neste aspecto, quase só se mencionam e comentam procedimentos técnicos no domínio de “A Corda” (1948) e de “Psico” (1960) que foram dois dos projectos metodologicamente mais arrojados da filmografia de Hitch.

O trabalho documental, na sua globalidade, compõe um retrato sucinto da personalidade de Hitchcock com as suas contradições. Camille Paglia define Hitch como uma pessoa puritana que quase poderia ter vindo a abraçar a vida monástica ou clerical mas que também era um cineasta que tinha apreço por aquilo que era violento, chocante ou escandaloso. Facetas que parecem inconciliáveis.

Do mesmo modo, era ambígua a relação dele com o universo feminino. Por um lado, segundo Paglia, ele parecia desconfiar das mulheres. Por outro, parecia reverencià-las, idolatrà-las muito possivelmente na medida em que elas lhe pareciam distantes de si. A sua obesidade, a sua imagem rotunda e pesada, retirava-lhe a ideia de que uma mulher pudesse gostar naturalmente de si. Logo, privava-o de uma vivência sexual descomplexada e desinibida.

Hitch foi o homem que reverenciou Ingrid Bergman e depois Grace Kelly, a ponto de ficar ressentido com os compromissos matrimoniais delas. E foi aquele que terá tentado manipular a vida profissional (e pessoal) de Vera Miles e de Tippi Hedren. Quase da forma estranha e obsessiva com que James Stewart o fez com Kim Novak em “Vertigo”. Ou Sean Connery o fez com Tippi Hedren em “Marnie”. Neste contexto, o documentário apresenta pertinentemente uma cena de “Marnie”: aquela em que Connery profere que apanhou um belo animal selvagem na sua armadilha e que não o deixará fugir.

O documentário do Biography mostra Hitchcock como um homem tímido mas que apreciava o reconhecimento e o calor do público. Numa prateleira especial, ele guardava todos os prémios de uma vida de sucesso. Mas lá não constava um Óscar, embora ele tenha sido nomeado cinco vezes para o prémio. Um amigo dele confessa perante a câmara que ele olhava para aquela exposição de galardões e declarava com tristeza: «Sempre dama-de-honor, nunca noiva.»

Hitchcock era um homem obcecado com os seus medos pessoais. Curiosamente era alguém que conseguia exorcizar muita da sua angústia trabalhando sobre ela e sobre as temáticas que dela derivavam. Segundo Stephen Rebello, ele acreditava mesmo que o mundo era um sítio assustador em que o caos espreitava a cada esquina.

Parece que o cineasta mostrava mais e mais de si à medida que envelhecia. Mas é preciso não ignorar que os modelos da Censura evoluíram e que nos anos 70 havia mais liberdade para filmar a violência – e para fazê-lo de modo personalizado e não em associação a um estúdio. Vejam-se “Laranja Mecânica” (1971) de Stanley Kubrick, “Cães de Palha” (1971) de Sam Peckinpah e “Deliverance” (1972) de John Boorman.

Depois de “Cortina Rasgada” (1966), Hitchcock quis filmar “Kaleidoscope Frenzy”. Era um projecto impressionante sobre um psicopata homossexual que detestava mulheres e as matava sadicamente. Um filme que mostraria muito sexo, morte e nudez. Era algo que os produtores da Universal rejeitaram laconicamente, que era impensável, desconcertante e abominável em termos do que se fazia na época e que, segundo alguns diziam, nem fazia jus à imagem instituída de Hitchcock.

Afinal quem era verdadeiramente Hitchcock? Em 1966, parecia alguém que começava a sentir-se vencido por novos conceitos cinematográficos e por uma geração de novos realizadores. Penso em “The Graduate” (1967) de Mike Nichols, “Cowboy da Meia-Noite” (1969) de John Schlesinger, “Easy Rider” (1969) de Dennis Hopper e “Klute” (1971) de Alan J. Pakula. Que sentiria necessidade de mostrar o universo do terror e do macabro em termos mais modernos, realistas ou radicais. Mesmo que escandalizassem a opinião pública.

Desencantado com Hollywood, Hitchcock procurava inspiração nos filmes realistas de cineastas italianos e franceses. Estava disposto a filmar com uma câmara na mão – o que era diferente de tudo o que fizera até então e demonstrava arrojo, espírito aventureiro e desejo de inovação. Rejeitado o projecto “Kaleidoscope Frenzy”, Hitchcock foi conduzido a realizar “Topázio”. Um filme desinteressante, feito sem alento nem vivacidade. A sua criatividade natural foi desviada. E isso levanta-nos uma questão pertinente de resposta especulativa: como seria o cinema de Hitchcock se ele trabalhasse nos nossos dias?

O documentário do Biography Channel põe-nos em confronto directo com a imagem de Hitchcock. Derivada daquilo que ele foi e daquilo que poderia ter sido. Mas de todas as visões do cineasta, prevalece a do homem irónico e sarcástico que apresenta histórias de crime e mistério para uma série de televisão da CBS.

Era desnecessária a repetição da sequência introdutória de cerca de três minutos que inicia cada uma das partes. E não é exibido qualquer genérico final ou listagem das pessoas que fizeram o documentário, o que me parece uma lacuna grave. A obra está catalogada como sendo de 2004. Mas não sabemos quem a concebeu e dirigiu.

Na locução, há gralhas. O filme “The Lodger” (1926) foi divulgado em Portugal como “O Inquilino Sinistro” e não como “O Pensionista”. O filme “Sabotage” (1936) tem o título português de “À 1 e 45” e não de “Sabotagem” (que corresponde a um filme de Hitchcock datado de 1942).

Sem criticismos severos, a iniciativa do Biography Channel é mais do que louvável. Para um melhor conhecimento daquele que Camille Paglia define como um dos grandes artistas do século XX. E sendo como que uma janela aberta às várias facetas da sua personalidade. Incluindo uma que lhe desconhecíamos e que ele desvenda mediante a câmara do “Alfred Hitchcock Apresenta”: «Resolvi apresentar este programa depois de me ter cansado de ser um “sex-symbol”. E de ter sido fotografado sem roupa para as páginas centrais da tal revista que vocês sabem. Hoje, como vêem, estou vestido. Neste programa não gostamos de torturas nem de violências excepto quando tem mesmo de ser

segunda-feira, agosto 13, 2007

HITCHCOCK NO ESTÁDIO




Minutos antes do início da sessão, a grande tela branca estava agitada com o vento. Estremecia e remexia-se ruidosamente. A noite não estava quente mas o aspecto tenebroso dos ramos das árvores em movimento frenético até era bem adequado ao ambiente de um filme de Hitchcock.

Nas bancadas, ter-se-ão juntado cerca de duzentas pessoas (estimativa minha) para verem o “Psico” num écran de grandes dimensões. O clássico do Hitchcock estava no programa de um ciclo de cinema de Verão que decorreu no Estádio do INATEL, em Lisboa. E foi apresentado como um histórico filme de culto entre outras doze produções – todas elas recentes.

Estávamos no serão do passado dia 7. O ambiente no estádio era agradável. Antes da projecção, bebi o meu indispensável café no bar. Olhei em redor na perspectiva de detectar sinais de cinefilia. O poster do filme mostrava uma imagem promocional bizarra e irónica. Uma jovem desconhecida com um penteado estranho – dir-se-ia que havia visto um fantasma. Hitchcock por detrás dela numa postura de quem quer assustar. E ao fundo, inconfundível, a casa de Norman Bates tal como hoje ainda está preservada nos estúdios da Universal. Uma frase tormentosa servia o lema do filme: «Grita o teu último Suspiro.”

Pude observar no bar e nos espaços abertos circundantes sinceras manifestações de boa disposição entre os espectadores mais jovens, aqueles que não teriam mais de 18, 20 anos e que iam em grupos. Avistei muitos casais de namorados trintões. E uma ou outra família. Considerando que, em 1960, o filme foi classificado para maiores de 17 anos, Hitchcock ficaria admirado com a admissão de crianças numa exibição do seu “Psico”.

Na verdade, nos dias de hoje, o amor ilícito de Janet Leigh e John Gavin já não escandaliza ninguém. E as imagens d’ “O Labirinto do Fauno” que foram mostradas em antevisão – o filme de Guillermo Del Toro ia passar ali daí a duas noites – talvez tenham impressionado mais os espíritos vulneráveis do que os ataques violentos e estridentes da Sra. Bates.

A anteceder o filme, foram exibidos depoimentos de algumas pessoas que trabalharam em “Psico”, entre elas a actriz Janet Leigh pouco tempo antes da sua morte – imagens muito possivelmente retiradas do documentário incluído no DVD do filme. As legendas de apresentação das personalidades estavam trocadas mas ouso admitir que esse terá sido um mal menor – embora fosse correcto que as pessoas compreendessem o discurso de Joseph Stefano como vindo do argumentista do filme e não de Hilton Green, o assistente de direcção.

A cena do chuveiro foi abordada e discutida nas declarações mostradas. Partes da mesma cena foram mostradas numa antevisão que não agradaria a Hitchcock. Mas, às tantas, dei comigo a perguntar-me: haveria alguém naquele estádio que não soubesse a identidade do terrível monstro assassino da casa dos Bates? Presumo que não.

A ideia do psicopata perigoso e com várias personalidades tem sido copiada e usurpada centenas de vezes. Em prejuízo de filmes mais antigos e que foram originais no seu tempo. Ali, naquele estádio, todas as pessoas pareciam conhecer Norman Bates. Aquela exibição era, mais do que tudo, uma revisão nostálgica do filme. Ou a ocasião soberana para jovens espectadores verem o produto original depois de terem conhecido a sua desinteressante remake de 1998, conduzida por Gus Van Sant.

O crítico e comentador de Cinema, Mário Augusto, falou para o público do Estádio do INATEL. Não directamente e ao vivo mas através de uma filmagem a preto e branco – com riscos e traços que a faziam parecer tão antiga como o filme de Hitchcock. Ele citou algumas daquelas curiosidades que são do agrado generalizado de quem gosta de saber como um filme histórico foi feito. E apontou o impacto pioneiro da morte da protagonista aos 40 minutos de filme.

Nos depoimentos mostrados, constatei que foi feita referência ao contributo do designer Saul Bass para a concepção da sequência do chuveiro. Mas o nome do compositor Bernard Herrmann não foi referido. E nunca é demasiado salientar a importância da música em toda a encenação fílmica de “Psico”. No momento dos assassinatos, também. Eu diria que aqueles acordes dissonantes tanto parecem soar a golpes desferidos como a convulsões de violinos em pura agonia.

Depois da cena derradeira, logo assim que o carro de Janet Leigh foi puxado do pântano, senti a ausência de um genérico final que facilitasse uma melhor ponderação do impacto do filme. Com as palavras da expressão «THE END» e com as barras paralelas a fecharem a imagem do filme, o estádio ficou momentaneamente numa meia escuridão. Algumas pessoas aclamaram a sessão, batendo palmas. Depois, as luzes foram ligadas e o sistema de som começou a difundir o anúncio do filme do dia seguinte: “Filme da Treta” com António Feio e José Pedro Gomes.

Saí do estádio, ouvindo os comentários à minha volta. E procurando discernir se “Psico” ainda é um filme convincente nos nossos dias. Acredito que é essencialmente uma brilhante encenação cinematográfica. E constato que recebeu uma respeitabilidade importante. É um filme apreciado por audiências distintas. Pelo amante do cinema de terror barato e pelo cinéfilo susceptível a notoriedades históricas.

A solução final do enigma de “Psico” sempre me pareceu simplista. Num dado momento, o argumento podia ter sido desenvolvido de forma mais complexa e laboriosa. Refiro-me ao momento em que o Xerife se pergunta: «Se a mulher que está na casa de Norman Bates é a mãe dele, quem foi a mulher que foi a enterrar no cemitério?» – Questão que introduziria novas inquietações e incertezas.

Como costumo afirmar, criar um enigma interessante é uma conquista mas oferecer uma solução inteligente a esse enigma é ainda uma conquista maior. Por isso, o cinema de David Lynch com todos os seus becos sem saída me parece repetidamente descabido e despropositado.

O fascínio de “Psico” reside no engenho com que a história é narrada e no trabalho oferecido a detalhes enganosos. Alguém comparou o percurso de Marion Crane estrada fora com o do Capuchinho Vermelho que enveredou desobedientemente pelo bosque e foi dar com o lobo mau.

“Psico” é afinal, como todos os filmes de Hitchcock, uma obra sobre a culpa e sobre o castigo. Se o Cinema é trabalho de encenação e de ilusão, “Psico” em particular e a obra de Hitchcock em geral são, neste aspecto, criações emblemáticas.

Acrescento que considerei interessante a iniciativa do INATEL de promover jantares temáticos. O menu de cada jantar estava associado ao filme da noite e era servido no topo das bancadas, na zona dos camarotes, por um preço adicional. Confesso que a ideia me assustou inicialmente porque já estava a imaginar o som original do filme massacrado com a batida dos talheres e dos pratos. Mas não se registaram problemas dessa ordem.

Foi servida como entrada a Salada Hitchcock e como complemento final da refeição a sobremesa ideal para o Mestre: Gelado em essência de Brandy. O prato principal foi Rosbife à Hitchcock. Hitchcock consumia intensamente carne, nomeadamente ao almoço quando lhe era servido um bife de proporções consideráveis – sem ovo a cavalo, que os ovos não lhe agradavam.

Considerando que sofria de problemas cardíacos e que era muito pesado, a dieta de Hitchcock não deveria passar por essas suculentas refeições de carne. Quem sabe se tivesse comido mais prudentemente, Hitchcock teria tido tempo de vida suficiente para realizar mais filmes… Mas, segundo dizem, só se vive uma vez. E a Vida também é enriquecida por pequenos prazeres gastronómicos. Como aqueles que o INATEL propôs para os cinéfilos, em noite de Verão.

RESUMO DO JOGO
No Estádio do INATEL, naquela noite, o jogo foi diferente. Houve emoção, inteligência táctica e estratégica e arte. Mas não houve derrotas. Nem empates. Todos ficaram a ganhar qualquer coisa. Hitchcock treinou bem a sua equipa. Norman Bates marcou dois golos soberbos. O primeiro, mais aparatoso e espectacular, aos 40 minutos. O segundo, aos 70 minutos.
A 5 minutos do termo do jogo, sentiu-se um calafrio geral. Lila Crane avançou para a grande área do adversário mas foi assustadoramente confrontada com um guarda-redes inesperado: o esqueleto da Sra. Bates. Norman tomou conta da bola e tentou o seu terceiro golo da noite. Sam Loomis defendeu a sua baliza heroicamente e impediu o pior. A bola foi embater na trave. O goleador estava implacável, movia-se com uma força diabólica e mostrava instintos perigosos. Um cartão vermelho veio colocá-lo definitivamente fora do jogo. Foi para os balneários, alegando que não fazia mal a uma mosca. Mas não era verdade.
A audiência aplaudiu o desempenho dos jogadores. Hitchcock continua a ser um campeão. Um campeão histórico e um campeão para o futuro.

terça-feira, julho 31, 2007

O PRIMEIRO (GRANDE) FILME DE HITCHCOCK - CONCLUSÃO




O Cinema Mudo conta histórias quase sem recurso a palavras. Nos primeiros minutos d’ “O Inquilino Sinistro”, as palavras escritas numa máquina de escrever ou nas páginas dos jornais também servem de instrumentos narrativos.

O título de um espectáculo a passar num teatro cumpre a função de um entretítulo. De modo enigmático e indirecto, «TONIGHT, GOLDEN CURLS» («ESTA NOITE, CARACÓIS DOURADOS») remete para a realidade temida: é terça-feira, noite predestinada para a morte de uma rapariga loira nas mãos do psicopata. Hitchcock fixa o letreiro com letras de néon, tornando a sua mensagem um pouco obsessiva. (TO-NIGHT-GOLDEN-CURLS; TO-NIGHT-GOLDEN-CURLS).

De modo equivalente, Hitchcock deseja apresentar a sua protagonista, enfatizando que ela vai ser relevante, apresentando e voltando a apresentar o seu nome: Daisy. Daisy é o centro afectivo dos que a rodeiam. A menina querida da sua família. Os entretítulos pronunciam a identidade de Daisy.

Para contornar a dificuldade de expressar sonoridades e de pôr em evidência as palavras importantes – proferidas em diálogo ou subliminares ao contexto da acção – Hitchcock usa aqui diversos truques e malabarismos técnicos.
Talvez a cena mais recordada por muitos cinéfilos quando pensam neste brilhante “The Lodger” seja aquela em que os personagens olham para o tecto, estranhando os passos do inquilino sinistro no andar de cima. Vemos esse tecto, com um candeeiro oscilante, e distinguimos a figura do homem caminhando num sentido e depois no outro. Como se, do andar de baixo, conseguíssemos ver através do tecto o primeiro andar. Hitchcock utilizou um vidro grosso sobre o qual o actor se passeou e debaixo do qual posicionou a câmara e o filmou. O resultado é visualmente brilhante. É como se «víssemos» o barulho dos passos dele.

“The Lodger” é um filme fantasmagórico, sem fantasmas. Os fantasmas são o Medo, a Suspeita e a Inquietação expressos no impacto sombrio das imagens.

Uma família feliz (como a de “Mentira” (1943)) aceita um estranho inquilino em sua casa, arrendando-lhe um quarto. A acção decorre nos dias perturbadores em que um psicopata enigmático, cuja identidade ninguém conhece e que se auto-intitula Vingador, mata sadicamente uma rapariga loira todas as semanas. Invariavelmente às terças-feiras.

O filme conjuga habilmente o tema da suspeita inquietante com o do homem injustamente acusado.

A primeira aparição do inquilino é visualmente impressiva. Ele surge à entrada da casa, coberto por uma capa escura e do rosto quase só se lhe vêem os olhos. É uma figura medonha. A mãe de Daisy abre-lhe a porta a assusta-se. O estranho inquilino em tudo se identifica com o perfil publicamente traçado do Vingador. O espectador sente-o em cada pormenor. No quarto onde vai ficar alojado, inúmeros quadros com imagens de meninas loiras de cabelos encaracolados parecem afrontá-lo e fazer-lhe mal.

Como em “Rebecca” (1940), as aparências não correspondem exactamente às realidades. O sofrimento do inquilino é diferente do que o espectador (e a família de Daisy) julga. Nem a estranha mala que ele transporta e esconde nem o mapa com o traçado geográfico dos assassinatos o vêm a revelar como o perigoso assassino que todos temem.

Hitchcock pontua a história com momentos de humor discretos e com traços descritivos de uma população londrina amedrontada pelo espírito de suspeição permanente. Com alguma ironia, o vendedor de jornais declara: “Terça-feira é o meu dia de sorte.

A casa da família de Daisy é enigmática e, de algum modo, assustadora. Quase parece trazer uma associação à casa de Norman Bates tal como Hitchcock a viria a conceber 35 anos depois. As escadas que giram em espiral sobre si mesmas, as portas antigas, as mobílias de aspecto decrépito. É uma casa de cidade e tem o número 13 afixado na porta.

Nos primeiros minutos do filme, vemos o desenrolar dos acontecimentos numa sequência de planos: o grito de uma jovem loira num encontro com a morte; a expansão da notícia através dos jornais e de boca em boca. O aparecimento do corpo parece-me uma antevisão do início de “Frenzy” (1972). Uma pequena multidão junta-se em redor do cadáver.

Depois de apresentar Daisy e a sua família, Hitchcock introduz o estranho inquilino na casa. O actor Ivor Novello dá corpo à figura sinistra e confere uma enorme duplicidade ao seu papel. Não só aquele homem parece perigoso mas frágil também.

Depois há insinuações dúbias junto de Daisy: como quando pega enigmaticamente no ferro da lareira ou quando contempla uma faca. Ou na cena em que observa os cabelos loiros dela parecendo que aqueles caracóis o mantêm cativo de uma realidade terrível.

Enquanto jogam ao xadrez, o inquilino e Daisy contemplam-se mutuamente mas fogem de olhar um para o outro em simultâneo. O espectador verifica, com apreensão, que ela está a desenvolver confiança nele mas, mais do que isso, uma afeição de contornos imprevisíveis.

O homem profere umas palavras. O entretítulo dá-as a conhecer: «Cuidado! Olhe que ainda a apanho!» Claro que ele se refere ao desenrolar do jogo mas não há certezas quanto a isso…

O inquilino age de forma dúbia. Tomara Cary Grant tivesse sido alimentado com tamanha ambiguidade em “Suspeita” (1941) …

A mãe de Daisy está atenta aos movimentos dentro de casa no serão da terça-feira seguinte. O homem sai, procurando que ninguém dê pela sua ausência. A sequência em que ele abandona o quarto sob a escuta da velha senhora evidencia um bom trabalho de montagem das imagens. Hitchcock filma planos gerais e pormenores. E a casa, com as suas silhuetas, parece também sombria.

A ousadia de Hitchcock leva-o a filmar Daisy, tomando banho e mergulhando bem os pés na água quente. Vemos o vapor de água. E a evidente descontracção dela dentro de água quase nos faz pensar também no repouso de Janet Leigh na banheira do seu quarto no Motel Bates. Daisy está tranquila mas, à porta, o inquilino escuta os seus movimentos.

“The Lodger” parece um embrião do cinema que Hitchcock viria a conceber durante 50 anos. A duplicidade e a suspeita remetem para múltiplos filmes seus. O cenário de uma Londres perturbada por um serial-killer viria a ser refeito em “Frenzy”. A ideia do homem falsamente acusado também é um fantasma recorrente no pensamento e na obra do Mestre do Suspense.

O polícia é um personagem inconveniente. Seduz Daisy e impõe-se como seu noivo. Vê perigo na presença do inquilino por quem Daisy desenvolve uma estranha proximidade emocional. E logo se apressa (cegamente ou não) a conduzir um processo de investigação sobre o homem que ameaça tomar o seu lugar.

Os polícias nunca ajudam preponderantemente os heróis de Hitchcock. Hitchcock temia de modo (mais ou menos) subconsciente a ideia da força judicial – da polícia, das leis, dos tribunais e das cadeias.

Aqui o polícia não é um amigo (como acontece em “Mentira” embora o polícia de “Mentira” também não ajude muito) mas um pretendente de Daisy que acaba por conduzir uma acusação formal sobre o inquilino. A população em fúria persegue o homem inocente e ameaça linchá-lo.

Ivor Novello compõe um herói débil, frágil. Ele não tem destreza nem força física. Parece terrivelmente traumatizado (como Gregory Peck em “Casa Encantada” (1945), James Stewart em “Vertigo” (1958) ou até Lawrence Olivier em “Rebecca”. Parece sucumbir ao seu sofrimento atroz ou perder-se na imensidão da sua angústia e dos seus fantasmas pessoais.

“The Lodger” é uma brilhante antevisão, realizada em 1926, de todo o universo tipicamente hitchcockiano. Filme enigmático mas expressivo. Como é enigmático mas expressivo o baloiçar do candeeiro do rés-do-chão sempre que o inquilino se movimenta no primeiro andar.

Como em “Rebecca”, o nome do personagem principal nunca é revelado. Como se, por detrás da aura nebulosa que esconde a identidade do inquilino, estivesse alguém que não interessa saber quem é. Por oposição a Daisy que é bem real, cujo nome é bem familiar, o inquilino é uma figura abstracta e difusa. O primeiro brilhante Hitchcock fascinou audiências e chegou ser considerado o melhor filme mudo britânico. Hoje, nos nossos dias, permanece impressionante e envolvente.

domingo, julho 22, 2007

O PRIMEIRO (GRANDE) FILME DE HITCHCOCK - PARTE I




O ano de 1926 marcou o início da actividade plena de Alfred Hitchcock enquanto realizador de cinema. Antes de assumir a direcção de “O Jardim do Prazer” (1926), o jovem Hitch já se movimentava nos meios da indústria cinematográfica, desenhando entretítulos e trabalhando como assistente de realização ou argumentista.

Diz-se que o punho característico de Hitchcock já se encontra na escrita fílmica desse seu “The Pleasure Garden”. E inclusivamente nas temáticas nele desenvolvidas. O argumento do filme evidencia um jogo de ilusões e de traições amorosas que conduzem ao crime e à formação de um suspense com princípios bem definidos.

Enquanto história de amor, infidelidade, crime e morte, “The Pleasure Garden” bem pode ser já um «hitchcock movie». Mas não é uma obra brilhante.

Os historiadores de Cinema não costumam considerar o filme “The Mountain Eagle” (1926) do qual Hitchcock não gostava rigorosamente nada e do qual não se consegue encontrar uma única cópia completa – Hitchcock terá proferido algo do tipo «Ainda bem que o filme desapareceu porque não se perdeu nada de relevante

Logo, “O Inquilino Sinistro” (1926) bem pode ser definido como o primeiro grande filme de Hitchcock, aquele em que, com desenvoltura, engenho, criatividade e desejo de inovação, ele terá recriado o ambiente de um cenário terrífico onde macabros crimes se vêm a repetir.

Pegando numa história que bem poderia ser a de Jack, o Estripador, Hitchcock situa-nos numa Londres sombria e obscura. Recorre à composição de uma fotografia cheia de jogos de sombras e reflexos, fumos e nevoeiro. É sabido que ele admirava muito o poder visual do cinema expressionista alemão da época e que terá encontrado nele a inspiração adequada para compor as imagens de “O Inquilino Sinistro”.

Costumo identificar este “The Lodger” como sendo o primeiro marco importante da carreira de Hitchcock. Revejo-o numa cassete VHS da Lusomundo (sem qualquer tipo de som adicionado). E é um prazer revê-lo a horas tardias da noite quando todas as pessoas do meu mundo parecem estar a dormir e não há qualquer tipo de ruído em redor de mim. No sossego da noite, quando o poder de introspecção é maior. E os fantasmas parecem mais reais e impressivos.

Quando a Imagem é tudo, o Cinema tende a tornar-se particularmente expressivo. Na ausência do recurso ao som, desenvolvem-se outras aptidões e capacidades. Como o povo diz, «a necessidade aguça o engenho». O cinema puramente visual é inteligente e Hitchcock nunca deixou de conceber a linguagem cinematográfica senão como um encadeamento de imagens criteriosamente montadas. Nos seus filmes, muito regularmente, as imagens revelam mais do que as palavras proferidas.

Hitchcock era peremptório quando defendia que quanto menos entretítulos tivesse que usar, melhor estaria o filme. Idealmente, um filme mudo não precisaria de uma única legenda de apoio.

Quando hoje, em pleno século XXI, vemos filmes da época do Mudo, é coerente que nos pareçam estranhas certas opções técnicas de um cinema que não tendo som, precisava recrià-lo em termos visuais.

Há dois pormenores que usualmente causam desconforto nas audiências modernas: o excesso de expressões faciais e de linguagem corporal manifestadas no desempenho típico dos intérpretes; e a densa maquilhagem usada pelos actores (homens incluídos).

Na verdade, tanto um aspecto como o outro eram quase inevitáveis numa época em que cinematograficamente a imagem do actor precisava de ser vitalmente expressiva e em que o excesso de luzes de iluminação tornava os rostos dos actores muito brancos, quase fantasmagóricos.

Segundo Hitchcock, o cinema sonoro, generalizadamente difundido depois de 1929, permitia facilidades – demasiadas facilidades. O resultado é que pondo os actores a falar, a necessidade de engenho era menor. O diálogo passou a ter um papel preponderante e muitos filmes tendiam a ser concebidos como peças de teatro filmadas.

Desvalorizando o impacto e a importância dos aspectos visuais em favor de diálogos que explicavam tudo, no cinema sonoro tendia a perder-se qualquer coisa de fundamental. Como Hitchcock proferiu algures: «O Cinema morreu um pouco.»
Na verdade, Hitchcock nem sempre reagia de imediato aos progressos tecnológicos. Estava muito apegado às regras do cinema mudo. Tal como estava apegado à imagem a preto e branco. (Só em 1948, realizou o seu primeiro filme a cores) Mas, como grande cineasta que era, ele veio mais tarde a converter-se num verdadeiro perito na idealização e no manuseamento do material sonoro. E também num realizador sensível à composição das cores na fotografia de um filme. (continua)

sábado, julho 14, 2007

O QUE É UM FILME MAU? - CONCLUSÃO




Imaginemos um quadro com uma mancha de tinta vermelha no centro. Todos deverão constatar que se trata de uma tela branca marcada com uma mácula vermelha (a menos que algum dos observadores seja daltónico).

O quadro pode causar diferentes impactos em diferentes pessoas. Uma opinião só poderá ter um valor acrescido se fizer uma avaliação fundamentada da obra, inserindo-a no contexto em que foi criada; referenciando quem a produziu, em que local e em que data; com que objectivos e mediante que mentalidade foi concebida e ganhou existência física.

Interessa entender cada obra de arte no contexto em que foi criada. Ainda assim, é incontornável que, sem rodeios, um mesmo quadro desperte diferentes reacções. Mesmo se se tratar de uma tela branca assinalada com uma mancha vermelha.

Se eu considerar o patamar dos filmes menos interessantes de Hitchcock, estarei a escrever como o advogado do Diabo e numa posição desconfortável.
Considero “Pavor nos Bastidores” (1950) um filme pouco convincente e onde o suspense não é desenvolvido de modo inspirado e cativante. Não aprecio a presença de Marlene Dietrich e constato que Jane Wyman não se empenhou no seu papel de rapariga modesta e pouco vistosa.

“O Caso Paradine” (1947) tem um elenco interessante e cenas visualmente cuidadas – o trabalho de câmara é pontualmente importante. Mas é um filme que revela não ter tanto conteúdo emocional e cinematográfico como promete até certa fase da narrativa.

De resto, vivi duas decepções pessoais com “Os Quatro Espiões” (1936) e “Jovem e Inocente” (1937) porque me parecem obras demasiado rudimentares, sem nenhuma centelha de brilhantismo.

O mesmo não se pode aplicar a “Sob o Signo de Capricórnio” (1949) que é um belo filme dramático passado na Austrália do século XIX – filme nada típico de Hitchcock mas que é filmado com alguma desenvoltura técnica e abrilhantado pela presença magnética de Ingrid Bergman. Diversos aspectos da sua intriga talvez tragam à memória o enredo de “Rebecca” (1940) mas se procurarmos suspense e situações de crime em “Under Capricorn”, não os encontraremos aqui do modo mais comum. Nesse aspecto, o filme pode desiludir o hitchcockiano médio.

O conteúdo melodramático e romanesco do cinema de Hitchcock também está presente no seu “Pousada da Jamaica” (1939). A acção desta obra decorre no final do século XVIII na costa da Cornualha. Filme com personagens misteriosos num ambiente agreste, “Jamaica Inn” foi a primeira adaptação de Hitchcock feita a partir de um livro de Daphne Du Maurier. Mas é uma película aborrecida.

Acredito que o sucesso de um filme decorre da forma como é publicitado. Se as audiências se deslocam a uma sala de cinema e não encontram o que procuram, poderão muito provavelmente sentir-se defraudadas.

De resto, há obras que no seu tempo são aclamadas e depois são esquecidas e menosprezadas. E há aquelas (como “Vertigo” (1958), por exemplo) que só com o tempo recebem o estatuto de criações de grande interesse cinematográfico.

Quem pode verdadeiramente ditar o que é um filme mau ou definir critérios estabelecidos de qualidade? Talvez ninguém. O crítico de cinema pode oferecer a sua perspectiva sobre os filmes. Mas, mais importante do que isso, é a sua missão de informar o público acerca das circunstâncias de produção de cada filme, acerca dos propósitos do cineasta e do produtor e no que respeita a pormenores e factos que podem fugir à percepção do espectador comum.

«Filme Mau?» Não costumo usar essa expressão. Posso defender que não gosto deste filme ou daquele porque não me divertem nem me emocionam nem me sensibilizam. Ou porque estão conotados com o «meu» sentido de «mau gosto». Mas é ajuizado considerar que os piores filmes que concebemos podem apresentar riquezas que nos passam despercebidas ou que não compreendemos no seu verdadeiro sentido.

O estranho encanto (por muitos encontrado) de “A Lojinha dos Horrores” (1960) de Roger Corman pode estar no facto de ter sido incrivelmente mal feito. E já repararam os meus leitores que os filmes de Ed Wood – considerado em tempos o pior cineasta de todos os tempos – estão a receber uma reavaliação?

Foi feita uma remake de “Little Shop of Horrors” em 1986. E Tim Burton criou um filme muito interessante sobre a figura de Ed Wood e sobre as suas obras aberrantes. Até o «mau cinema» é inspirador. E cria impacto.

«Filme Mau»? Não gosto da expressão. Por muito que o cinema possa funcionar como uma indústria, é talvez acima de tudo uma manifestação de arte. E a arte não funciona segundo leis científicas rigidamente estabelecidas.

Os piores filmes de Hitchcock? Não sei bem quais serão. Apenas pude fazer menção àqueles que mais me desiludiram. Mas eu sou apenas um hitchcockiano. Apenas um. Como tantos outros. Porque motivo o meu conceito próprio de «desilusão» servirá mais do que o de outras pessoas?

Apetece-me escrever: “O prémio para o pior filme realizado por Alfred Hitchcock vai para: Sabe Deus…” Mas será que Deus é mais hitchcockiano do que eu?