terça-feira, janeiro 15, 2008

CHAMPANHE À HITCHCOCK PARA ACLAMAR O NOVO ANO



É uma tradição que se revisita com prazer. Para saudar o ano que começa, brinda-se com uma taça de champanhe ou então com um mais modesto vinho espumante. A indústria, o comércio e as campanhas de publicidade e de marketing que lhes estão associadas incentivam este ritual de celebração.

No contexto, surge uma obra um pouco inesperada. Foi criada por Martin Scorsese e é uma curta-metragem de tributo a Alfred Hitchcock. Trata-se de um pequeno exercício de revisitação nostálgica do universo de Hitch. Um esboço fílmico feito por quem sabe fazer cinema, conhecendo solidamente a História da Arte Cinematográfica. Mas convenhamos: nasceu como filme publicitário de uma marca de champanhe e de modo essencial só nos permite verificar a destreza de Scorsese como realizador e a forma como Hitchcock parece ainda vender o que lhe está associado.

"The Key to Reserva" é um anúncio encomendado pela Freixenet – marca de champanhe espanhola – a Martin Scorsese. E, na verdade, trata-se de uma encenação que tem tanto de cineasta como de cinéfila. É declarada a intensa paixão de Scorsese pelo universo dos filmes, acerca do qual ele tem escrito e dirigido documentários.

O objectivo desta iniciativa é promover o champanhe da marca Freixenet – à semelhança de outros projectos publicitários da firma catalã, lançados em anos anteriores, durante o Natal, com celebridades mundiais. Mas aqui o champanhe é verdadeiramente o «mac-guffin», aquilo que está no centro de toda a narrativa, de toda a intriga, mas que não interessa verdadeiramente ao espectador.

"The Key to Reserva" consegue revelar-se como uma graciosa combinação de elementos do cinema de Hitch: a criação do suspense, a movimentação da câmara pelos espaços, os grandes planos e a importância dos pormenores, a relevância de uma chave ou da corda de um instrumento; a desenvoltura do herói elegante e a sedução da loira glacial – vestida e penteada segundo o modelo de Eva Marie Saint em "Intriga Internacional". E «last but not least», a genial e expressiva música de Bernard Herrmann revisitada naquilo que é um conjunto de excertos do seu "North by Northwest".

"The Key to Reserva" é um cuidado projecto visual e sonoro. É apresentado como o trabalho feito a partir de três páginas de um guião que não chegou a ser filmado por Hitchcock. Um guião sobre o qual ele iria fazer incidir o seu talento mas que não chegou à fase das rodagens.

A questão é tal e qual como Scorsese a coloca numa entrevista que lhe é feita durante o filme: «Trata-se de preservar qualquer coisa que nunca foi feita.» Não é o mesmo que pegar num filme danificado e restaurá-lo. A missão de Scorsese é fazer o filme tal como se fosse feito por Hitchcock, ele mesmo. Com genuinidade.

Scorsese não é declaradamente a estrela do filme. Ele coloca os holofotes a incidir sobre a memória de Hitchcock. O Mestre do Suspense nunca é mostrado em todo o filme mas está presente em todos os fragmentos dele.

Há pormenores particularmente cuidados. Repare-se na perfeita coloração das imagens bem de acordo com as produções de Hitch relativas aos anos 50 e 60 (os seus melhores anos). E veja-se a decoração dos ambientes.

Interessante e quase incontornável numa apreciação a este filme (de quase dez minutos) é a encenação de uma cena de suspense declarado no contexto de uma sala de espectáculos. Como em "O Homem Que Sabia Demasiado" (1934) e na sua remake de 1956, como em "Cortina Rasgada" (1966), "Sabotagem" (1941), "39 Degraus" (1935) ou "À 1 e 45" (1936).

Scorsese filmou "The Key to Reserva" no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Com actores pouco famosos. O resultado é simpático e não creio (como já li num comentário na net) que Hitchcock ficasse indignado com o filme – ou como foi declarado de modo explícito, que ele se agitaria no túmulo. Trata-se de uma homenagem que revela muito «know how» e competência. E é interessante dar prosseguimento à arte de um criador que já morreu.

Seria evidente o misticismo que envolveria três páginas de um guião de Hitchcock se ele fosse encontrado. Por isso, no filme (perfeita ficção), Scorsese quase não deixará ninguém tocar nelas. Scorsese – o homem que antes de realizar com maestria, parece respeitar o Cinema quase como se de uma religião se tratasse.

Todos os depoimentos de Scorsese não são mais do que uma jocosa ironia. Mas passa através dela o seu desejo de conceber cada filme de acordo com a sua natureza. Aqui, a ambição de conceber um filme de Hitchcock como se fosse feito por Hitchcock e não meramente como uma adaptação das suas ideias. O desejo de preservar a arte sem deturpações.

A história do filme é inconsequente. O argumento é pouco complexo. Mas está embutido de referências. Até à imagem final em que se associa o voyeurismo ao insólito. Com sobreposição de espectáculos – o filme a passar por detrás das pessoas que conversam, as múltiplas janelas e o ajuntamento de pássaros no edifício.

Se o Cinema é uma religião para Scorsese, então Hitchcock será um dos seus grandes profetas.

"The Key to Reserva" estreou directamente na Internet e foi visto num mês por dezenas de milhares de pessoas. Encontramo-lo no Youtube ou no site oficial da Freixenet (em língua inglesa ou espanhola).