terça-feira, outubro 24, 2006

SOBRE O TRISTE EMPREGO DO VENDEDOR


Dizem que devemos fazer um esforço por retirar proveito de todas as situações. Mas há circunstâncias embaraçosas das quais não se consegue extrair nada de enriquecedor. Se é verdade que o dinheiro não é um passaporte seguro para a Felicidade, ele ajuda muitíssimo.
E infelizmente acontece que para garantir um sustento mínimo há pessoas que são obrigadas a procederem como idiotas ou como bonecos manipulados. É preciso não possuir mesmo sensibilidade nenhuma para atravessar certos cenários e permanecer imperturbável.


Parecerá que desta vez escrevo uma crónica social. Talvez como discípulo de Frank Capra e não como fervoroso hitchcockiano. A riqueza sociológica de certos filmes de Capra como “Mr. Smith Goes To Washington"(1939), "Meet John Doe" (1941) ou “Do Céu Caiu Uma Estrela” (1946) ia além do debate sobre questões económicas e sociais. (Recordo-me também de um fabuloso "A Loja da Esquina" (1940) de Ernst Lubitsch.)

Eram filmes belos, puros, idealistas, que acentuavam o valor das capacidades humanas e da importância de cada um ser útil no seio da comunidade. Tudo isto registado sem hipocrisias nem lamechices.

Os filmes de Capra eram um hino à procura da Felicidade. À visão de uma sociedade que é mais do que a soma das pessoas que a compõem. E eram filmes que tomando temas sérios, os tratavam com ironia e humor.

É mediante uma perspectiva lúcida mas não demasiado dramática que desejo lidar com circunstâncias estranhas como as que vou narrar. Talvez como um filme de Capra. Mas talvez infelizmente sem o seu conteúdo construtivo e optimista.

Vejam bem: numa destas manhãs ia eu a descer uma das ruas da baixa lisboeta quando fui abordado por uma moça tímida que não deveria ter mais de trinta anos. Atirou-se para a minha frente e bloqueou-me o caminho não se apercebendo que balançava entre a atrapalhação, o desconcerto e a falta de segurança.

Fez-me várias perguntas pessoais em menos de meio minuto, anotou as minhas respostas na folha de uma pasta e implorou-me que a seguisse até ao escritório da empresa onde trabalhava. Não encontrei tempo para aceitar ou para recusar. Senti-me embaraçado. Quis voltar para trás mas pareceu-me ajuizado mostrar alguma solicitude.

Entrámos numa loja pequena, subimos umas escadas na parte traseira do edifício até ao primeiro andar e só parámos numa sala pequena com duas secretárias de atendimento. A cena evidenciava algum suspense e aqui a música de Herrmann até nos ajuda a desenhar o cenário.

Enquanto explorava com o olhar tudo o que por ali havia, a rapariga apresentou-me a uma colega de posto superior (mas não muito superior como veremos).
Pediram-me que me sentasse. Perguntaram-me se eu era do Benfica para cativar a minha simpatia. Depois fiquei sentado diante de uma das secretárias com desconforto e redobrado embaraço. Perguntava-me continuadamente porque motivo estava ali.


A funcionária mais velha (que já teria quarenta anos) bombardeou-me com um historial da empresa. Eu não estava interessado em saber como é que a empresa nascera e progredira. Bati nervosamente com os pés no chão e com as mãos nas pernas.

A senhora declarou com formalismo: «O senhor é um homem de sorte». Perguntei-lhe porquê. Ela sorriu e soltou uma resposta preparada e mecânica. Eu havia sido seleccionado na rua no dia do aniversário da empresa. E bastava-me aderir aos serviços da firma para ser beneficiado com inúmeros descontos e vantagens.

Sorri. Olhei para ela e constatei com tristeza que muitos milhares de desempregados gostariam de ter aquele emprego miserável. Não era fisicamente duro como o daqueles que trabalham nas obras. Nem tão incómodo e amargo como o dos que recolhem o lixo. Mas era quase sinónimo de amealhar clientes por caridade.

Bem ou mal, aquela senhora representava um papel e tinha as deixas bem decoradas e os gestos e maneirismos bem coordenados. Esforçava-se afincadamente e merecia algum prémio pelo seu esforço.

A dado momento, perguntou-me que habilitações literárias tinha. Disse-lhe que estudara vários anos na Faculdade e completara o curso de Antropologia. Ela não sabia o que isso era e para que servia. Como não sabia escrever a palavra «antropólogo», limitou-se a escrevinhar umas palavras apertadas em pouco espaço.

«Se esse curso não serve para arranjar emprego porque é que o tirou?» – questionou ela. Sim. Estava certa. Para que tirara eu um curso que é um veículo para a plataforma dos desempregados e dos inúteis? Respondi-lhe que procurava ansiosamente actividades que satisfizessem o meu ego profissional.

«É um homem de sorte» – Tornou ela a dizer.
«Porquê? Porque faço coisas no dia-a-dia que me dão prazer e entusiasmo?»
«Não. Porque foi escolhido no dia do nosso aniversário e vai poder beneficiar de inúmeras vantagens se se fizer sócio até ao fim do dia.»


Nesta altura, já eu estava cheio de calor. Ela voltou a bombardear-me com a listagem dos benefícios oferecidos aos sócios. Quis vir-me embora mas não pretendia honestamente entristecer aquela senhora tão aplicada na sua missão.

Olhei para ela fixamente. Apesar de tudo, ela não devia acreditar muito no discurso publicitário que declamava. Mas esforçava-se por acreditar e por me fazer acreditar também. Sem sucesso deve dizer-se…

Por fim, levantei-me da cadeira usando o comportamento gestual para fazê-la entender que queria sair e tinha pressa. Ela convidou-me a voltar no fim do dia e informou-me que estaria ali até às 20 horas. E esperaria por mim se necessário.

Sorri com delicadeza. E disse-lhe que talvez voltasse. Ela não deve ter acreditado em mim. «Eu» não acreditava em mim.

Saí, desci as escadas em direcção à loja e então já ninguém me acompanhou. Quando pisei o chão da rua manifestei-me aliviado. Que diabo! Há pessoas que têm cada emprego! Senti-me frustrado. Gostaria de ter ajudado aquelas senhoras mas elas mesmas me haviam deixado quando se renderam mediante o meu desinteresse.

E é este o mundo em que vivemos! Quem trabalha numa área profissional onde se sente feliz já tem uma boa dose de felicidade. E quem vive sem precisar de trabalhar também… (Já agora!)
E triste o nosso mundo desigual e injusto, onde há tantos pobres e desempregados e tanta falta de optimização dos recursos!


Deixei aquela empresa um pouco entristecido e cabisbaixo. Parei no meio da rua e contemplei as pessoas que por ali circulavam. Olhei para trás e então estremeci. Para a entrada da loja fôra arremessado o corpo de uma mulher. Não a conhecia. Aproximei-me e verifiquei com amargura que era o desgraçado cadáver de uma jovem que eu nunca havia visto antes. O que me intrigava é que segundos antes, quando atravessara a loja para sair, não reparara em corpo nenhum. E uma pessoa certamente repara num cadáver quando passa por ele…

Esperem lá, esperem lá. Esta é uma crónica de carácter mais sociológico e capriano. Não devem ter em conta o parágrafo anterior. Não se enquadra aqui. Além do mais, não é verdadeiro. Desculpem-me lá. Não consegui terminar à Capra e deixei avivar um espírito hitchcockiano que me parecia quase ausente destas linhas. Estou perdoado?

quinta-feira, outubro 12, 2006

HITCHCOCK E O SOBRENATURAL



As histórias de suspense proliferam no panorama cinematográfico das últimas décadas. Mas é cada vez mais difícil discernir as influências de cada realizador. Depois do Mestre (clássico) do Suspense, outros cineastas se têm afirmado, procurando agitar as emoções do espectador em cenários de expectativa e terror. Alguns deles na área do Sobrenatural ou do Fantástico…

John Carpenter por exemplo. Foi um notável cineasta de suspense. Fez “Halloween” (1978) numa linha de continuidade de “Psico” mas sem enveredar por plágios evidentes e descarados como os de Brian De Palma. “Assalto à 13ª Esquadra” (1976) é notável. O “Nevoeiro” (1980) é muito interessante. “The Thing” (1982) (que é uma remake de um clássico de ficção científica dos anos 50) apresenta um suspense que é caprichosamente tecido e desenvolvido ao longo da acção.

Carpenter sabia alimentar um suspense intenso, emocionante e pontualmente inesperado. Talvez hoje não saiba tão bem e se perca em pormenores um pouco grotescos. Veja-se o seu “Vampiros” (1998)

Nos filmes de Carpenter tudo é possível e as coordenadas da realidade podem ser subvertidas por fenómenos sem sentido ou por motivos que põem em causa a ordem natural e científica do mundo. Como acontece em “Halloween” cuja sequência final encerra um capítulo de terror sobre um arrepiante psicopata para dar origem a uma história enigmática sobre um monstro imortal, uma entidade maléfica que vive para além da Morte ou que nem passa por ela.

A ordem do Sobrenatural passou de forma marginal no Cinema de Hitchcock. Mas compreendemos hoje que ele poderia ter explorado essa área que depois Carpenter dominou com maestria.


O escritor de best-sellers de terror, Stephen King, concebeu muitos livros que foram depois convertidos em brilhantes filmes de Suspense e Terror. “The Shining” (1980) de Stanley Kubrick, “Misery” (1991) de Rob Reiner ou “A Zona Morta” (1983) de David Cronenberg… Seria insensato pensar que Hitchcock poderia ter gostado de usar alguma da literatura de King ou que ela lhe pudesse ter servido de inspiração? Tal como algumas das obras de Daphne Du Maurier o fascinaram…

“Os Pássaros” (1963) pode ter sido a manifestação extrema e mais ostensiva do anti-natural no Cinema de Hitchcock. Do anti-científico, do anti-lógico. Poderá o cinema assombrado e perturbado (ou perturbador) de David Lynch, David Cronenberg ou Nicholas Roeg ter nascido deste tipo de universo sem sentido onde o autor nem sequer procura encontrar explicação para os fenómenos mais inquietantes? (Não me refiro aqui a Roman Polanski porque já fiz referência ao seu trabalho num apontamento anterior e não devo tornar-me repetitivo.)

Nos últimos anos, um novo vulto do Cinema de Mistério se impôs: M. Night Shyamalan. Os seus “O Sexto Sentido” (1999), “Sinais” (2002) e “A Vila” (2004) reportam-nos de forma mágica para universos enigmáticos mas frequentemente para fazer o espectador encontrar paz no seio do assombro e do terror.

Hitchcock não filmava histórias de fantasmas nem de extraterrestres (ou ninfas).E pelo que vemos em "Rebecca" e em "Vertigo" tinha muito talento para isso. Hoje só podemos argumentar que o suspense de Shyamalan é brilhante como o de Hitchcock e gira em torno da sensação do Medo. Mas é diferente…

Já “Os Outros” (2001) de Alejandro Amenábar bem pode convocar a memória para “Rebecca” de Hitchcock. A Casa é uma entidade carismática e poderosa tanto em “Os Outros” como em “Psico” como em “Rebecca”. As portas fechadas, os enigmas, as sombras, a recriação do medo, as portas que rangem… E uma Nicole Kidman parecida com Grace Kelly (a loira favorita de Hitchcock).

Do mesmo modo “Viver de Novo” (1991) de Keneth Branagh. É uma história de amor eterno e com um argumento que parece funcionar em estrura de ciclo fechado. Em que o passado se repete no presente, em que vamos descobrindo o passado à medida que avançamos no presente. Hitchcock poderia ter pegado num projecto como este?

O romantismo bucólico de “Viver de Novo” traz-me à memória um clássico bem mais perfeito do cineasta William Dieterle: “Retrato de Jennie” (1948). Mas a dimensão aterrorizadora da sua história faz-me pensar em Hitchcock ou no “Segredo da Porta Fechada” (1948) de Fritz Lang.

Hitchcock não costumava filmar o Sobrenatural mas talvez ele não se tenha apercebido das potencialidades deste género de histórias. Nos anos 50 e anteriormente, os filmes de ficção científica e de terror eram muito desconsiderados, taxados como filmes B ou produções de segunda importância.

Depois do sucesso retumbante de “Psico” em 1960 onde a entidade maligna quase parece assumir um carácter sobrenatural ou fantasmagórico, Hitchcock procurou levar o suspense até onde nunca o tinha levado. Dá-se a criação de “Os Pássaros” a partir do conto de Daphne Du Maurier.

“Os Pássaros” é um filme de terror puro assente em premissas inconcebíveis: a revolta dos pássaros de todo o mundo contra a Humanidade. Este filme abriu a porta do universo de Hitchcock para o Fantástico. “Psico” abordara a temática dos fantasmas emocionais. “Os Pássaros” introduz um novo conceito de realidade na obra de Hitchcock.

Hitchcock bem poderia ter aproveitado a inspiração proveniente desse projecto incrível que foi também um desafio técnico e cinematográfico. Só que depois de “Os Pássaros”, ele limitou-se a repetir as suas temáticas caindo no erro de repetir fórmulas e conceitos.

“Marnie” (1964) reenvia e memória para o seu “Casa Encantada” (1945). “Cortina Rasgada” (1966) e “Topázio” (1969) voltam a fazer o cineasta debruçar-se sobre histórias de espionagem. “Frenzy” (1972) reaborda a temática do psicopata depois imitada e repetida centenas de vezes por outros realizadores de maior ou menor talento.

Hitchcock parecia estar num beco sem saída. Voltava a usar estratégias e tipos de argumento que já experimentara. Quando faleceu em 1980, deixou a meio o projecto de “The Short Night” que também era uma história de espionagem.

Com mais de 65 anos e até aos 80, Hitchcock perdeu a ousadia e a audácia próprias de quem gosta de experimentar desafios novos. Preferia continuar a jogar em terrenos próprios. E defendia-se argumentando que o auto-plágio define um estilo artístico.

Na década de 60, o cinema de terror assume uma dimensão mais respeitável. O cinema de ficção científica também. Acredito que algures no Sobrenatural Hitchcock poderia ter encontrado uma nova dimensão para o seu suspense.

Filmes brilhantes como “A Cidade dos Malditos” (1960) de Wolf Rilla, “A Semente do Diabo” (1968) de Roman Polanski ou “O Exorcista” (1973) de William Friedkin aproximaram o cinema de suspense de um cinema do Fantástico com qualidade. Terror e Suspense estão aqui irmanados e são conceitos inseparáveis e que se alimentam mutuamente.

Talvez Hitchcock se tenha perdido algures por aqui. Na década de 70, um projecto como “Aquele Inverno em Veneza” (1972) não lhe interessou. (É a adaptação de uma belíssima história de Daphne Du Maurier, um dos contos mais assombrosos que já li.)

Nesse mesmo ano de 72, Steven Spielberg que admirava Hitchcock à distância, realiza para televisão uma brilhante obra de suspense intitulada “Um Assassino Pelas Costas”. (É a história de um homem pacato perseguido diabolicamente por um camião sinistro.)
O mesmo Spielberg atingiu a fama mundial três anos depois com “Tubarão” – Um dos filmes de suspense mais lucrativos da História do Cinema.


Um novo cenário se desenvolvia em Hollywood, o suspense era fórmula certa para o sucesso mas Hitchcock começava a ser uma referência e não um agente activo.

Suspense é sempre expectativa, receio do que está para vir e neste sentido até “Alien – O Oitavo Passageiro” (1979) define um grau intenso de suspense. Este filme mostra sete seres humanos a viverem com um monstro alienígena. Num espaço restrito. Com corredores e zonas escuras. Com a ameaça de um terrível e brutal ataque a cada canto e em cada momento.

Isto é suspense puro e simples. Não se passa num cenário hitchcockiano mas contem a aplicação de algumas regras de elementar valor para Alfred Hitchcock. Muito em particular a gestão dos conhecimentos do espectador. A definição do que o público deve conhecer ou não. A recorrência a surpresas estratégicas e chocantes. E a longa gestão da espera: quando é que o monstro vai atacar e de onde vai ele atacar?

O legado de Hitchcock terá certamente inspirado muitos dos construtores actuais do suspense cinematográfico. Só é pena que muitas pessoas não reconheçam em que medida Hitchcock veio a contribuir com o seu trabalho para o entendimento de como se deve gerir o suspense e torná-lo eficaz.

Agora só podemos traçar um plano, verificar que passadas Hitchcock deu, que caminhos poderia ter escolhido (caindo no risco evidente de sermos especulativos). No entanto, é obrigatório que procuremos sempre compreender o cinema actual como o reflexo directo da sua contemporaneidade mas também como o produto de uma linha de evolução.