domingo, abril 27, 2008

A MORTE


«You know what I think? I think that we're all in our private traps, clamped in them, and none of us can ever get out. We scratch and we claw, but only at the air, only at each other, and for all of it, we never budge an inch. »
Norman Bates em “Psico” (1960)

«Com a morte, separação da alma e do corpo, o corpo cai na corrupção, enquanto a alma, que é imortal, vai ao encontro do Julgamento divino e espera reunir-se ao corpo quando este, transformado, ressuscitar no regresso do Senhor. Compreender como acontecerá a ressurreição supera as possibilidades da nossa imaginação e do nosso entendimento
In Catecismo da Igreja Católica (Resposta à questão “Com a morte, que sucede ao nosso corpo e à nossa alma?”)


Tão trágica como incontornável. Tão avassaladora como estranhamente natural à existência humana. Realidade que devora tudo aquilo em que toca. A Morte foi tema de inspiração para muitos filmes de Hitchcock.

Morte como drama da perda. Morte como o culminar do medo e perspectiva aterradora de quem sente esse medo. A Morte poderá representar o fim. Mas também pressupõe um começo para além de si.

Morte é separação. Distanciamento. É-nos difícil conceber um universo com limites físicos. Para lá de cada estrela, planeta ou galáxia, parece fazer sentido que haja espaço para mais. Se o universo tiver um termo, parece fácil conceber que haja qualquer coisa para além dele. Logo, se verificamos que é plausível a infinidade do espaço, também podemos admitir que a vida não termine com a morte terrena.

Mas se tudo não passa de um jogo de aparências e o mistério final da vida de tudo o que existe nos for mantido secreto, então seremos quase como ratos de laboratório. Talvez Deus exista e nos ame muito mas aparentemente Ele poderá ser tão verdadeiramente hitchcockiano como o próprio Hitchcock.

Sim. Seremos inegavelmente culpados de muitas das fatalidades que nos sucedem. Mas se somos impotentes e ineficazes na prática da benevolência com os outros e com nós próprios, Deus parece querer testar a nossa paciência. Parece querer avaliar a nossa bravura e santidade (seja lá o que isso for), confrontando-nos com adversidades que não compreendemos e que nos amargam a existência. A mais emblemática dessas adversidades poderá ser a Morte. Com tudo o que representa de doloroso e de insolúvel.

Deus tece laboriosamente as nossas vidas com redes de suspense, de expectativa e de mistério. Talvez Ele não possa mesmo fazer mais por nós. Não duvidando da Sua bondade e benevolência paternal, talvez existam obstáculos contrários à ordem Dele. E que impeçam a Sua boa vontade. Poderemos ser nós próprios esses obstáculos, ao tomarmos as opções erradas. O Catolicismo faz-nos crer que sendo dotados de um livre arbítrio, seremos livres para escolher. Mas nesse caso, o nosso destino dependerá das nossas escolhas. E seremos castigados pelo nosso egoísmo e imprudência.

Talvez muito simplesmente o nosso raciocínio lógico não faça sentido num quadro mais amplo. Seremos como as formigas que passam no chão junto aos nossos pés e que não nos preocupamos em preservar vivas.

Aparecemos neste mundo peculiar, de modo singelo. Não trazemos nada connosco. Depois vamos crescendo e vendo morrer pessoas que nos são preciosas – elas também deixando aqui tudo o que lhes pertencia. E partiremos desta vida um dia, deixando aqui o que durante algum tempo limitado ousámos pensar que era nosso. Mas o que é que é nosso? O que é que é verdadeiramente nossa propriedade?

Estranha forma de vida, a dos humanos! Os animais não têm consciência das suas limitações cognitivas. Mas nós sabemos bem o que é viver com meias soluções! Na verdade, uma chave ou abre uma fechadura ou não o faz de todo.

Quero acreditar que a morte terrena não é o fim. Dizem-me que tem mais mérito aquele que acredita sem ver. E toda a fé (qualquer tipo de fé) precisa de ser cuidada para se desenvolver e prosperar; precisa de mimos e sustento como uma planta ou uma criança pequena.

No entanto, não sei se a minha meia convicção não traduz uma incerteza – será como a chave que quase descerra uma porta mas não chega a fazê-lo.

Pessoalmente, aquilo que mais me parece penoso na morte terrena é a realidade da separação – a certeza de que enquanto formos como somos, nunca mais iremos ver uma determinada pessoa amada.

Fica a consolação da memória; a mágoa da saudade que às vezes se traduz em lágrimas, outras vezes está tão escondida dentro de nós que não recebe existência corpórea.

A Morte e a Vida estão no mesmo patamar, no mesmo segmento, na medida em que não existe uma sem a negação da outra. Encontramos dezenas de mortes na filmografia de Hitchcock. Crimes, quase sempre. Acidentes. Suicídios. Mortes por negligência. Desejo de matar ou de ver morto. Negação da realidade da morte que conduz à neurose e à psicopatia. Morte que corrói os sentimentos. Que deixa remorsos. Que cimenta obsessões.

Escrevo este comentário num momento particularmente amargo e confuso da minha vida. Tem servido este blog também como um mecanismo de expressão de confissões. Reflicto neste espaço sobre o Hitchcock e sobre o seu cinema. Mas parece-me honesto e pontualmente acertado escrever sobre mim. Como o antropólogo que escrevendo sobre uma realidade social, não se pode nunca despojar completamente da sua identidade própria e dos valores culturais com que foi ensinado a ver o mundo.

Parece-me compreensível que entenda melhor a minha percepção do cinema de Hitchcock, quem compreenda o nível emocional dos meus pensamentos. Em muitos aspectos, não serei tão diferente assim desse Alfred Joseph. Ele, como eu, era um homem tímido, receoso, desejoso da aceitação dos outros e pontualmente solitário. Pacato, reservado, habitualmente sereno. Amante dedicado da sua família e do seu lar.

Quando escrevo estas linhas, passaram escassos dias após a morte da minha mãe. Nunca pensei que ela viesse a estar no centro de uma página deste blog. No entanto, tenho andado tão detido a pensar no fenómeno humano da mortalidade que tudo parece convergir na mesma direcção.

Acho que, tal como muitos personagens do cinema de Hitchcock, vivo numa realidade em que a Morte ocupa demasiado espaço e é difícil fugir dela.

Reconheço que devemos aceitar as adversidades com serenidade. Procurando aprender com elas. Prossigo a minha vida. Confortado pela lembrança dos olhos da minha mãe. Pela recordação da sua inocência, ingenuidade e entrega maternal. E procuro ser digno de tudo o que recebi dela, da herança de valores sentimentais e culturais que ela me deixou. E do exemplo de vida que me mostrou: o de alguém que sempre aceitou repetidas e continuadas adversidades com um sorriso plácido. Alguém para quem o conceito de felicidade não passava por metas distantes nem por obstáculos difíceis de transpor. Para quem a alegria e o entusiasmo se concretizavam com pequenas conquistas: uma flor, uma chávena de leite numa esplanada ao Sol, o calor da família unida em redor de si.

Um filho sente-se sempre perdido sem a sua mãe. É assim desde o momento do parto quando se dá a primeira separação.

Considero que um dos grandes méritos da fotografia, do vídeo e do cinema é que eternizam as pessoas. Oferecem-lhes, de algum modo, vida eterna neste mundo. Vemo-las assim sempre belas e jovens, intocáveis e imutáveis. Os anos não passam para os personagens dos filmes. Nem para os nossos antepassados e contemporâneos que se deixaram fotografar.

Mas o Cinema não é a vida real. Aqui, no mundo real, onde não gostamos nem do medo nem da morte, somos confrontados forçosamente com eles. Sem fuga possível. Hitchcock dizia: «Num filme, o realizador é um deus. Na vida, Deus é o realizador.»

Aqui fico e prossigo a minha caminhada. Continuarei a ver alguns dos filmes de que a minha mãe gostava. E que me ensinou a apreciar também. E a escutar alguns dos discos que me deixou. Ela continuará viva no seio da nossa família. E nós nunca a esqueceremos.

Espero que estas palavras não saiam só do meu pensamento inquieto para o papel e para o universo on-line deste blog. Mas que algures a minha mãe as possa escutar ou sentir. Assim sei que em resposta a elas, se abrirá no seu rosto o tal sorriso plácido e sereno. Benevolente e pacífico. E tudo fará um pouco mais de sentido…