quinta-feira, junho 30, 2005

COM QUE LINHAS SE TECE O SUSPENSE...



O cinema de Hitchcock leva-nos a ponderar se não existirá dentro de nós mesmos uma atracção insólita pelo desconhecido. Quase que nos conduz a aceitar que toleramos a angústia e o medo. Afinal, procuramos esses ingredientes num filme de suspense. E se não os encontrámos, ficaremos desiludidos e com todas as nossas expectativas defraudadas. Procuramos emoção numa sala de cinema. E também da angústia podemos fazer um divertimento. (Como refere José Vaz Pereira no jornal “A Capital” de 4/7/1988, a propósito de Vertigo (1958): “Hitchcock faz da angústia [uma] obra-prima.")
O futuro… O nosso futuro… Existirá desconhecido mais enigmático e evidente? Gostaríamos nós de possuir uma apreensão cognitiva das realidades que vamos viver? Gostaríamos nós de conhecer a data da nossa morte ou o dia em que seremos violentamente atropelados por um camião?
O senso comum diz-nos que o melhor é não sabermos o nosso futuro. É menos perturbador que assim seja. E mais emocionante também. Vida sem emoções equivale a um estado vegetativo. Por isso, é saudável que sintamos medo e ansiedade ante uma realidade que não sabemos como vai ser moldada. Isso é suspense. Existe desde os primórdios dos tempos.

Algures Alfred Hitchcock escreveu que o cinema poderia ser um eficaz meio artificial de estimulação dos nossos sentimentos e emoções. É preciso não esquecer que o afirmou num contexto temporal em que o cinema evoluía aceleradamente de década para década. Sob o ponto de vista técnico e artístico. Não parece portanto descabida a ideia de Hitchcock. Nem que, ainda hoje, fujamos dos nossos problemas para viver as angústias dos personagens de um filme.
Num enredo narrativo tipicamente hitchcockiano, há sempre pormenores a manter secretos. No entanto, o espectador precisa perceber que há perigo para verdadeiramente o sentir. Caso contrário, não há ansiedade nem medo nem expectativa. Por isso, é preciso oferecer informações ao público.
A ideia é simples. Uma bomba vai rebentar dentro de dois minutos e um grupo de pessoas que conversam amenamente está na proximidade do engenho exclusivo. O espectador precisa saber que existe uma bomba e que ela está na iminência de rebentar e de matar todos os que estão em redor dela. Se assim não for, não há suspense.
Exemplos de situações destas pululam no universo da filmografia de Hitchcock. Ele argumentava frequentemente que pode ser muito mais emocionante saber quem é o assassino (para que o temamos e temamos as suas acções) do que desconhecer a sua identidade. Por isso, os romances de Agatha Christie não lhe ofereciam o tipo de suspense que ele mais apreciava e com o qual é mais identificado. Quando se sabe onde está o perigo e em quem, é mais fácil criar situações de suspense. As dissertações de Hercule Poirot e de Miss Marple e a monótona investigação em torno do crime não são emocionantes. Revelam inteligência e brilhantismo. Mas não criam emoções. Funcionam na esfera do raciocínio e da lógica. O espectador acaba pensando: “O Poirot que descubra o criminoso por mim!” Não há uma identificação tão directa com as vítimas nem um horror tão explícito em relação ao perigo.

Assim compreendemos que o assassinato de Grace Kelly seja premeditado e preparado no decurso da primeira metade de “Chamada para a Morte” (1954). Ante o nosso olhar. Ou que uma criança transporte uma bomba dentro de um autocarro em “Sabotage” (1936). Ante o nosso olhar e angústia. Que vejamos os pássaros juntarem-se à sucapa por detrás do banco onde Tippi Hedren está sentada e fuma com nervosismo em “Os Pássaros” (1963). Que saibamos em que momento preciso da música é que o assassino vai disparar a arma durante o concerto no Royal Albert Hall em “O Homem que Sabia Demasiado” (1934);ou na sua remake de 1956. Que conheçamos a identidade sórdida do serial killer em “Frenzy” (1972) quase no começo do filme. Etc. Etc.

A questão do bom senso e da eficácia na criação do enredo narrativo está, na minha opinião, em saber nivelar sabiamente duas áreas:
- A área do que conhecemos e que denuncia situações de perigo; e
- A área do que desconhecemos ou não compreendemos e que remete para situações misteriosas ou psicologicamente perturbadoras.

Em relação a nós mesmos e ao nosso futuro, apenas poderemos alimentar suposições a partir dos sinais evidentes e palpáveis. Como escreve Hitchcock: “Quando Deus mantém o futuro oculto, está a dizer que as coisas seriam muito tediosas sem suspense.” E também defende: “Creio que o futuro oculto é uma das dádivas mais misericordiosas de Deus”. (in “Would You Like to Know Your Future?”, texto publicado no Guideposts, Magazine 14, nº8 – Outubro de 1959)
Se muitas pessoas morreram já atropeladas por camiões, poderei eu perguntar a mim mesmo de cada vez que atravesso a estrada: “Será agora que vou morrer?” – Preocupação neurótica se levada demasiadamente a sério mas que me pode levar a reflectir: “Se não morrer na estrada, como e quando morrerei?” Isso é suspense! E Deus é o cineasta do filme das nossas vidas! Já agora: Não será Deus um verdadeiro hitchcockiano? Senão porque são a Vida e a Morte mistérios tão enigmáticos e insolúveis? Os adeptos brasileiros de futebol costumam gritar com entusiasmo que Deus é brasileiro. Eu direi: Deus sabe criar suspense. É hitchcockiano, portanto...

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