quinta-feira, outubro 13, 2005

A ARTE CINEMATOGRÁFICA E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA





Um dos aspectos a que sou particularmente sensível enquanto cinéfilo e observador de filmes é procurar manter presente que cada filme é um produto do seu tempo. Interessa ver cada obra dentro do contexto que a viu nascer senão não teremos uma verdadeira percepção das qualidades e dos defeitos que a definem.

Nunca poderemos tomar consciência absoluta da inovação técnica apresentada por Orson Welles em “Citizen Kane” (1941) sem conhecermos os padrões cinematográficos da época. Sim. É um filme que ainda hoje seduz pelo encadeamento narrativo e pelas imagens tão enigmáticas, densas e impressivas. O trabalho de montagem em “Kane” é diferente de todos aqueles que Hollywood conhecia… Mas hoje, no ano 2005, depois de um jovem de 25 anos ter visto “Laranja Mecânica” (1971) de Kubrick, “Taxi Driver” (1975) de Scorsese, “Eraserhead” (1977) de Lynch, “Irmãos Inseparáveis”(1988) de Cronenberg ou “21 Gramas” (2003) de Alejandro Gonzalez Inarritu… Poderá ele ser sensível ao talento que vem de uma obra como a de Welles ou para o sentimentalismo de um “Casablanca” (1943) ou, se quisérmos falar de cinema europeu, para um miserabilismo como o de “A Estrada” (1954) de Fellini; ou para uma arte de criar comoções como a do “Ladrões de Bicicletas” (1948) de De Sica?

Afinal os jovens de hoje conhecem Spielberg, Scorsese, George Lucas, um sem número de artifícios visuais e técnicos que os encantam e a que já estão habituados. A magia da imagem de Terry Gillian ou de Tim Burton… O tratamento digital das imagens… Há recursos hoje com que os autores clássicos do Cinema nem sonhavam.

O filme “Os Dez Mandamentos” (1956) de Cecil B. De Mille ou o “Mary Poppins” (1964) de Robert Stevenson encantaram as audiências na época das suas estreias. As pessoas perguntavam-se: “Como é possível fazer isto em Cinema ?” Mas hoje: “A Guerra dos Mundos” (2004) de Spielberg ou o “Homem-Aranha” (2002) de Sam Raimi não seduzirão mais os jovens? E serão filmes superiores? Talvez não…

É paradoxal que um filme possa receber uma maior aclamação na sua época consoante apresente recursos técnicos mais evoluídos, impressionantes e convincentes. O público não estará a confundir arte com tecnologia?

Só posso concluir que o Cinema é uma arte que em Hollywood (e não só) se produz e promove como uma indústria; e que recorre necessariamente ao patamar da evolução tecnológica. Não pensemos agora no âmbito comercial do Cinema e centremo-nos na temática da tecnologia.

Tomemos como exemplo o genérico do “Vertigo” (1958) de Hitchcock. Está sublimemente concebido por Saul Bass (um dos poucos mestres clássicos da arte de criar genéricos). É a abertura ideal para um filme que se centra num ambiente de obsessões, de vertigens e de distorções. Espirais girando sobre si mesmas, surgindo umas das outras ou em sobreposições enigmáticas; espirais com colorações diferentes que nascem de um olho de mulher e a ele retornam. É fantástico. Hoje, as novas gerações serão sensíveis à genialidade deste genérico densamente enriquecido pela música de Bernard Herrmann (o mais célebre e importante dos compositores de Hitchcock)?

O progresso tecnológico ajuda os cineastas a exporem as suas narrativas e a conceberem cenários e ambientes diversos. Tem-no feito de forma gradualmente mais impressiva e eficiente. Mas também é certo que alguns realizadores se escondem atrás dos artifícios técnicos. Consciente ou inconscientemente.

Por outro lado, o problema da tecnologia é que mediante ela, os filmes ficam de algum modo catalogados e datados. Vemos os filmes de ficção científica dos anos 50 e ficamos desencantados com as limitações técnicas dos seus efeitos especiais. O mesmo se pode afirmar dos filmes de terror. (Uma possível remake de “Os Pássaros” (1963) feita hoje não poderia ser mais aterrorizadora?)

Conversei com um jovem de 19 anos há pouco tempo. Confessou-me que gostava muito de Cinema e que considerava Hitchcock como um mestre de referência para muitos cineastas. De uma forma ou de outra. Gostei de o ouvir. Falei-lhe do genérico de “Vertigo”. Ele respondeu-me: “É muito bom. Claro que eu hoje talvez fizesse qualquer coisa de semelhante no meu computador.”
Sorri mas não devo ter conseguido disfarçar algum desencanto. Poderia o célebre genérico de Saul Bass ser reinventado por um computador nas mãos de um jovem estudante do 12º Ano?


Afinal, meus leitores, em que termos poderemos definir a arte cinematográfica? Como arte que é, não é uma ciência exacta nem afecta as pessoas de forma igual. Um mesmo filme sensibiliza uns espectadores e outros não. Do mesmo modo que um quadro, ou uma música ou uma escultura. Mas também é verdade que o Cinema evolui, progride, transforma-se. Porque é um fenómeno social. E um fenómeno tecnológico. Como o bom senso dita para todas as acções humanas, nenhum ingrediente deve ser tomado em demasia. Deve ser atribuída à tecnologia o valor devido mas nem o cineasta nem o espectador devem fazer dela um parâmetro central. Defendo a ideia de um cinema que usa a tecnologia como um recurso e não como um fim em si mesmo.

Seja como for, não existe um modelo perfeito de arte cinematográfica. O que para mim é perfeito, pode não o ser para o meu vizinho. E claro que os filmes da série Matrix são visualmente fenomenais. E claro que uma animação como a de Shrek é soberba. Mas não concordam que quando a adaptação da “Guerra dos Mundos” de H. G. Wells assenta exageradamente nos efeitos especiais, o mínimo que se pode dizer é que Spielberg não está no seu melhor?

Lembro-me de uma reportagem gravada imediatamente a seguir à estreia de “Non ou a Vã Glória de Mandar” (1990) de Manoel de Oliveira. Perguntaram aos espectadores que saiam da sala o que haviam achado do filme. Alguém disse: “Bem, o guarda-roupa era muito bom…” A opinião podia estar certa ou não. Mas o guarda-roupa não é tudo. E a tecnologia também não…

1 comentário:

Anónimo disse...

Aprendi muito