quinta-feira, outubro 06, 2005

PARA ALÉM DO PIANO, A NOSTALGIA



Estive ontem num centro comercial da cidade de Lisboa e senti um ambiente ligeiramente nostálgico no ar. Não vinha das pessoas que comiam e conversavam em redor das mesas. Nem vinha do movimento frenético daqueles que faziam compras e se mostravam afadigados. Vinha do som do piano no centro das galerias. Um homem relativamente novo estava ali a tocar músicas antigas impregnadas de romantismo.

Senti aquela velha tristeza, tão antiga em mim, de não saber tocar sabiamente piano. Estudei Música vários anos mas nunca atingi um grau mínimo de capacidade interpretativa que me motivasse a tocar para os outros. E então, lá estava eu… Sozinho e entregue à realidade inegável de que cada um é o que é e não o que podia ter sido.

Olhei em redor e vi amigos em conversas amenas, colegas de trabalho que viriam dos seus empregos e muitos casais de namorados. E eu ali sozinho, entregue à minha condição de homem só. Sabem que alguns dos melhores cinéfilos são pessoas solitárias? Devia ser solidão o que sentia ao ver-me rodeado por imensas pessoas sem que ninguém olhasse para mim. E era uma solidão um pouco amarga porque vivia-a ao som daquela música tão linda mas melancólica.

O Cinema é uma máquina de construção de sonhos. Para os que o fazem, sim. E para os que o vêem. Para mim, tem-me permitido camuflar uma tristeza que ao som da música daquele piano, se tornava mais perceptível.

O Cinema ajuda-nos, sim. Quase que, por entre o barulho das pessoas a falarem, ouvia o piano do filme “Janela Indiscreta” de Hitchcock. Aquelas notas musicais que sensibilizaram Miss Coração Solitário e a retiveram no preciso momento em que ia tomar os comprimidos certos para um suicídio quase inevitável. Sim. A Música também opera maravilhas. Move montanhas. Destrói iras e ansiedades. (Não é também nostálgico o “As Time Goes By” do “Casablanca” (1943)? E o “Moon River” de “Breakfast at Tiffany’s” (1960)? E os temas de “Love Story” (1970), “Aconteceu no Oeste” (1969) e “África Minha” (1985)? O Cinema e a Música podem unir-se de forma soberba!

Como muito do que é belo, aquele piano cujo som chegava até mim, revelava um lado quente e melodioso mas também me convocava para alguma tristeza. Como uma rosa bela nunca está completa sem os seus espinhos… Ou como o Amor definido por Luís de Camões: essa “ferida que dói e não se sente”, esse “contentamento descontente”.

O som do piano, no centro das galerias comerciais, parecia sobrepor dois mundos: o das realidades e o dos sonhos desfeitos. Como o que alimentei, em tempos, de ser um grande pianista ou de viver profissionalmente de qualquer coisa que também enriquecesse a faceta mais emocional da minha pessoa.

A Música opera milagres… No cinema de Alfred Hitchcock, a Música é de importância crucial. Grandes compositores trabalharam para o cinema de Hitchcock: Franz Waxman, Miklos Rozsa, Dimitri Tiomkin, Maurice Jarre ou John Williams (o músico predilecto de Spielberg). E acima de todos, Bernard Herrmann que é muito directamente associado ao realizador inglês. (A associação Herrmann/Hitchcock prolongou-se durante mais de uma década, por sinal a fase mais prodigiosa de Hitchcock.)

Há filmes da obra de Hitchcock em que uma melodia precisa pode ser determinante: como em “Desaparecida” (1938), “O Homem Que Sabia Demais” (1956) ou “Mentira” (1943).
Às vezes (e isso já acontecia nas épocas áureas da carreira de Hitchcock), uma boa melodia pode funcionar como um eficiente veículo publicitário de promoção do filme.

No universo de Hitchcock, a música alerta-nos para realidades, convoca-nos para estados de espírito, incorpora-nos no seio dos ambientes mais diversos…
Às vezes, a música pode ser tão bela que magoa. Outras vezes, pode ser um convite para que não pensemos nos espinhos da rosa e só nos concentremos na sua beleza e harmonia visual.

Vi-me ali naquele centro comercial, diante da Música, como o homem que admira a poesia da Vida. E é obrigado a admitir que, sem mágoas, as alegrias também não seriam tão significativas e marcantes. E tão agradáveis de viver.
Oxalá os meus leitores me perdoem a ousadia de fazer uma referência precisa ao impacto que certa música tem sobre mim. Como um cinéfilo que se leva a sério, as bandas sonoras do Cinema interessam-me particularmente. Compro-as em CD, ouço-as, estudo-as, examino-as como partes integrantes dos filmes e como obras de arte autónomas

Talvez se possam rir da minha cinefilia fanática: a cinefilia de quem escuta música pensando em filmes; vê filmes e está absorvido pelas bandas sonoras; e bebe um café, discernindo os sons de “Janela Indiscreta” no corrupio de um centro comercial.

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