quarta-feira, novembro 30, 2005

UM CINEASTA E O SEU PÚBLICO


Muitos intelectuais e artistas criticam a postura cinematográfica comercial, defendendo que o que é importante é ser fiel às emoções próprias e não tanto o desejo de agradar aos outros. Argumentam que não se deve pensar acentuadamente no sucesso de bilheteira quando se constrói um filme. Nem que esse sucesso deva ser o objectivo principal da acção dos produtores, realizadores e argumentistas.

A arte não é quantificável. Bem o sabemos. Quando os produtos cinematográficos e televisivos apostam sistematicamente no acréscimo das audiências, nem sempre os resultados são brilhantes. Ou melhor, raramente o são.

Há que seduzir o público mas não oferecer-lhe tudo o que ele quer a qualquer preço. Senão ainda voltaremos a ver matanças de inocentes às bocas dos leões. E desta vez, com transmissão em directo para o mundo inteiro, com som estereofónico e imagem digital de elevada nitidez.

Talvez a solução seja trabalhar para o público mas fazê-lo honradamente. Vejam o exemplo de Hitchcock. A sua postura sempre foi comercial. Ele sempre o disse e confirmou. Trabalhava para as audiências. Pensar no público é compreensível e desejável. Quase ninguém realiza um filme intensamente trabalhado para depois o guardar na gaveta de um armário. Os cineastas comuns trabalham para que as suas obras sejam vistas. Um escritor ou um jornalista ou um cientista social gostam de ser lidos. Gostam que leiam o que escrevem.

Não escrevo estas linhas só para mim. Tenho esperança que alguém as venha a ler. E fico feliz quando isso acontece. No caso do Cinema, há uma interacção entre o cineasta e o seu público. Quando um realizador cativa uma área de admiradores, ele terá conquistado o “seu” público próprio.

Hitchcock pensava na diversão dos espectadores em cada etapa do seu trabalho. Mas vivia pressionado pela vontade e pelos caprichos dos produtores que apostavam dinheiro nele. (Apesar de ser, nos seus tempos áureos, um dos poucos realizadores familiares para o grande público. Talvez só fosse comparável a Charlie Chaplin. Mas esse também representava, tal como Orson Welles.)

Os cânones da época impunham muitas restrições. Algumas delas parecem hoje completamente absurdas. Se o público associava a um actor a imagem de um homem íntegro, nunca era esperado que representasse o papel de um criminoso sem moral.

Em 1941, deu-se um fenómeno elucidativo. Hitchcock realizava “Suspeita” com Joan Fontaine a interpretar o papel de uma mulher indefesa, presa na angústia e na dúvida. Seria o seu marido, um perigoso assassino? A desconfiança subsiste até ao fim. Hitchcock gostaria de ter realizado um final sarcástico. O homem era mesmo um terrível criminoso!

Tudo teria corrido bem se o actor escolhido para o papel não fosse Cary Grant. Quem era Cary Grant? Um homem muito respeitado. Os produtores pensaram que o público nunca iria gostar de ver aquilo. A imagem de Cary Grant era a de um cavalheiro e talvez não fosse bem aceite esta variação no seu estilo pessoal.

Hoje uma história destas parece-nos estranha. Um actor dos nossos dias preza-se de ser versátil. Hitchcock terá tido que conviver com as imposições dos grandes estúdios. Pelo menos, até adquirir um certo poder de decisão.

O final de alguns filmes do Mestre do suspense foi imposto. O final feliz era-lhe frequentemente imposto. Ele gostava de happy-ends mas às vezes, desejaria ser mais negro e sarcástico. O fim de “Vertigo” é trágico. Mas é preciso verificar que Kim Novak era cúmplice de um crime. Assim como Janet Leigh em “Psico” era uma ladra em fuga. Era aceitável que o destino das duas fosse trágico.

Mais interessante é o caso de “À 1 e 45” (1936) onde Hitchcock cria uma terrível situação de suspense. Uma criança pequena e inocente transportando uma bomba dentro de um autocarro. O desenlace da cena é invulgar: a criança morre mesmo depois de uma enorme explosão. Hitchcock não terá gostado deste pormenor do argumento e tê-lo-à confessado mais tarde.
(Steven Spielberg gosta particularmente daquela película talvez porque envolva uma criança num papel de significado central. E sabemos como o universo da infância lhe é particularmente querido.)

Parece-me que quando o Cinema funciona como uma indústria, precisa de zelar pelos lucros e ninguém gosta de perder dinheiro investido. Por isso, a questão do happy-end, o doseamento dos ingredientes emocionais e a escolha dos actores são pormenores que acabam por ser frequentemente determinantes. No tempo de Hitchcock. E no nosso.

Dizem que Clint Eastwood perde tempo a representar em filmes de baixa qualidade para depois adquirir capital para realizar os seus próprios filmes do modo que ele os quer. O mesmo acontecia com Orson Welles.

Vejo o Cinema como uma arte. Em Arte não há valores quantificáveis. Não há modelos científicos a seguir. Os filmes são retratos da Vida. Importa é saber que partes da Vida se querem mostrar. Uma perspectiva mais negra, triste e desencantada? Ou uma imagem feliz do Mundo e da Humanidade? Talvez a solução ideal reúna ingredientes desses dois prismas de visão. Porque a Vida reúne tristezas e alegrias. Como uma moeda tem dois lados e nenhum desses lados existe sem o outro.

Um cineasta que tem o seu público próprio tende a querer zelar pela fidelidade desse público. Mas precisa de ser genuíno. E tem de ter liberdade para tomar decisões. A definição do cinema de qualidade passa pela capacidade de sensibilizar as pessoas, de afectá-las positivamente. Passa centralmente pelo poder de agradar aos espectadores. Não é desonra produzir arte a pensar no público. Hitchcock bem o terá demonstrado… O pior é quando o produtor manda mais do que o cineasta ou quando não se filma o final desejado.

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