quinta-feira, março 02, 2006

UM PEQUENO CONTO DE HITCHCOCK


Hoje vou deixar neste espaço, para os meus leitores, um pequeno conto escrito por Alfred Hitchcock nos anos que precederam o início da sua carreira cinematográfica.

O primeiro filme realizado inteiramente por Hitchcock data de 1925: é o “The Pleasure Garden”. Mas a primeira obra genuinamente associada ao espírito hitchcockiano (do suspense, do mistério e do crime) terá sido “The Lodger” (em Portugal, “O Inquilino Sinistro”). Neste segundo filme, já lá estão as grandes temáticas do Mestre do Suspense: o psicopata perigoso, a menina em perigo, o falso culpado acusado injustamente, a densidade do mistério expressa visualmente pelo nevoeiro e pelas sombras.

“O Inquilino Sinistro” é um filme mudo e data de 1926. Mas a sua expressividade visual é notável. Foi aqui que Hitchcock começou a cimentar o seu estilo pessoal. Estilo que se alimentava de histórias emocionantes e da recriação de estados de tensão. Aqui, como mais tarde em “Psico” e “Frenzy”, o psicopata é um animal à solta.

Sete anos antes, em Junho de 1919, foi publicado numa revista o impressivo conto que aqui vos deixo. É pequeno, literariamente simples mas muito elucidativo. Parece ser uma porta de entrada para o mundo de Hitchcock. Esse universo onde o perigo e a tensão são centrais e a realidade parece subvertida. Onde o sonho e a realidade se misturam (como mais tarde em “Vertigo” (1958), “Casa Encantada” (1945), “Marnie” (1964), Rebecca (1940)” ou “Intriga em Família” (1976)). Onde a conduta das pessoas é feita a partir de escolhas nem sempre acertadas; onde quando se envereda por um mau caminho, se está sujeito à perdição. (Veja-se o percurso errante de Janet Leigh em “Psico”.)

Leiam este conto curto. Tem apenas 3 parágrafos. E vejam como o jovem Hitchcock, com apenas 20 anos e muito influenciado pelo espírito dos livros de Edgar Allan Poe, mostrava aqui a verdadeira dimensão do terror. A oposição entre o sonho e a realidade. E uma dose de ironia sarcástica.


SUFOCO
(no original “Gás”)

Ela nunca estivera antes nesta parte de Paris – conhecia-a apenas pelos romances de Duvain, ou pelas peças do Grand Guignol. Então Montmartre era aquilo? Aquele horror onde o perigo se ocultava sob a coberta da noite; onde almas inocentes pereciam sem aviso – onde a perdição confrontava os incautos – onde o Apache reinava.
Movia-se cautelosamente pela sombra do alto muro, procurando furtivamente atrás de si a ameaça oculta que poderia estar a seguir os seus passos. De repente precipitou-se por uma alameda, pouco se importando aonde ia dar… tacteando o seu caminho, através da escuridão de breu, com uma única ideia fixa na mente: enganar o seu perseguidor… E lá foi ela… Oh! Quando é que aquilo ia acabar? Então uma soleira de porta de onde fluía uma luz mostrou-se à sua vista… Aqui… em qualquer lugar, pensou ela.
A porta ficava no topo de um lance de escadas… Seus degraus crepitavam de velhos enquanto ela procurava descer… Foi quando escutou o som de um riso bêbado e estremeceu – certamente era… Não, isso não. Tudo, menos isso! Chegou ao pé da escada e viu um bar cheirando a vinho ruim, com restos do que um dia foram homens e mulheres, numa orgia de bêbados… Então eles viram-na, uma visão de pureza assustada. Alguns homens correram ao seu encontro entre os gritos de encorajamento dos outros. Foi agarrada. Gritou de terror… Melhor seria ter sido apanhada pelo seu perseguidor, foi o seu pensamento fugaz enquanto a arrastavam rudemente através da sala. Os demónios não perderam tempo a decidir o seu destino. Partilhariam os seus pertences… e ela… Ora! Aquilo não era o coração de Montmartre? Ela tinha de ir – os ratos teriam um banquete. Então amarraram-na e carregaram-na pela passagem escura, subindo um lance de escadas em direcção ao rio. Os ratos da água teriam um banquete, disseram. E então… balanceando o seu corpo amarrado para a frente e para trás, atiraram-na para as águas escuras. Foi-se afundando, afundando, afundando. Consciente apenas da sensação de sufocação. Aquilo era a morte… Então… “Saiu, madame” – disse o dentista – “meia coroa, por favor.”

Alfred Hitchcock, em 1919

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