quarta-feira, setembro 20, 2006

NAS PASSADAS DE HITCHCOCK II - A Suspeição e o Crime






O patamar emocional dos personagens é sobejamente importante nas histórias de crime de Hitchcock. A tal ponto que aqui e ali Hitchcock gostava de invadir o território da Psicanálise (como acontece em “Casa Encantada” (1945) e em “Marnie” (1964)).

No domínio das emoções é essencial definir o pensamento dos heróis com os quais o público se identifica. Que suspeitas alimentam, que desconfianças, que atracções ou repulsas…

A suspeição e a desconfiança estão quase sempre presentes no cinema de Hitchcock. Ou estão alojadas nos personagens ou são semeadas no olhar e no pensamento do espectador.

O caso de “Suspeita” (1941) é o paradigma de uma história de mistério e crime sem crimes. Tudo naquele filme se passa ao nível da perspectiva da protagonista (Joan Fontaine). Se tememos por ela é porque ela receia e tem medo e não porque haja perigo… E se sofremos com ela é porque lemos o seu pensamento como se ela falasse directamente para nós.

A suspeição e a desconfiança criam uma incrível inquietação. Neste sentido, Hitchcock foi um dos percursores da construção de um cinema centrado no patamar de pensamentos ambíguos, de obsessões e de desconfianças.

Em “Suspeita” Hitchcock foi liminarmente obrigado pelos produtores a construir um happy-end. No caso da intriga do filme em particular, isto significava que Cary Grant não podia de modo nenhum desempenhar o papel de um assassino. As pessoas não esperavam isso de Cary Grant nem era credível pensar que a ideia ia resultar bem junto do público.

Hoje percebemos como o filme teria sido enriquecido se a proposta de Hitchcock tivesse sido aceite. O impacto emocional do filme seria mil vezes superior se Cary Grant fosse um terrível criminoso e se Joan Fontaine morresse nas suas mãos.

A desconfiança e o medo levam à construção de fantasmas. Mas às vezes esses fantasmas só existem no pensamento das pessoas. A ambiguidade decorrente da desconfiança tem sido explorada em muitos e variados filmes.

Numa linha hitchcockiana próxima de “Suspeita”, Glenn Close e Jeff Bridges protagonizaram “O Fio do Suspeito” (1985) de Richard Marquand. Aqui uma advogada defende cegamente um homem em tribunal e consegue que seja declarado inocente da morte da sua esposa. No final, aquele homem por quem se apaixonara tão perdidamente revela-se o temido assassino e ela terá de lutar pela sua vida.

Numa época em que já não se associavam tão ingenuamente os actores a um padrão definido de papéis, Jeff Bridges que parecia um herói (e nós víamo-lo com os olhos de Close) converte-se num golpe rápido do argumento em predador insensível.

“Presumível Inocente” (1990) de Alan J. Pakula funciona no mesmo patamar. Aqui Harrison Ford poderá (ou não) ser autor de um crime passional. Só nos últimos minutos do filme é desvendado o enigma de uma história que não sendo muito emocionante está bem filmada e alimenta quase até ao fim uma angustiante ambiguidade.


Em 1983, Robert Benton (cineasta mais brilhante na composição de melodramas como “Kramer contra Kramer” (1979) e “Um Lugar no Coração” (1984)) realizou “Na Calada da Noite” como um palco de acção hitchcockiana. Meryl Streep surge-nos como uma loira enigmática que tanto se poderá revelar perigosa como volátil ou frágil. Benton filma algumas sequências oníricas e privilegia o papel da Psicanálise na explicação de certos desejos inconscientes. Hitchcock estava morto em 1983 mas parece passear por ali…

Jonathan Demme filmou “O Último Abraço” (1979) com o fito de explorar a atenção e o interesse dos hitchcockianos. É um filme com uma mulher perigosa (para variar não é loira o que já revela alguma imaginação…) e uma intriga misteriosa repleta de pistas que não se sabe onde vão conduzir. Tem um final trepidante no alto das cataratas do Niagara. (A propósito, sempre me pareceu que Hitchcock poderia ter dirigido “Niagara” (1953) de Henry Hattaway!)

A película de Demme explora a desconfiança do espectador que se transmite pela suspeição do próprio protagonista (Roy Scheider). Demme que realizaria anos depois um brilhante “Silêncio dos Inocentes” conduz aqui um filme bastante modesto. Mas há variados pormenores a evocarem o cinema de Hitchcock. O filme estreou pouco tempo antes da morte do Mestre clássico do Suspense. Já este estaria muito velho e doente. Talvez nem tenha reparado na homenagem.

Há inúmeros exemplos de histórias transpostas para o Cinema que se alicerçam na ênfase dada aos sentimentos da Desconfiança e da Dúvida. Em algumas delas o perigo nasce dentro de casa (“Dormindo Com o Inimigo” (1991) de Joseph Ruben com Júlia Roberts; ou “A Verdade Escondida” (2000) de Robert Zemeckis). Outras vezes o perigo pode vir de fora e instalar-se no mundo pessoal das suas vítimas (como em “O Inquilino Misterioso” (1990) de John Schlesinger).

Hitchcock realizou um morno “Lifeboat” (1944) contando a história de um grupo de pessoas deixadas pelo destino a bordo de um barco exíguo. Aqui as suspeições e desconfianças de uns em relação aos outros tornam-se difíceis de suportar. Uma embarcação no alto mar pode suscitar uma dupla sensação de angústia: é um espaço fechado dentro de um espaço aberto imenso.

Roman Polanski concebeu mais tarde um ambiente particularmente tenso em “A Faca na Água” (1962) desenvolvendo a história de dois homens e de uma mulher num barco exíguo. Um possível trio amoroso… Um casal cujo quotidiano é invadido pela presença de um estranho.

As audiências viram Nicole Kidman, Sam Neill e Billy Zane em “Calma de Morte” (1989) dentro do espaço claustrofóbico de um barco. Um filme de Philip Noyce que leva a tensão emocional do espectador à circunstância de cada personagem ter de lutar pela sua vida.

Talvez tenha sido sintomático nomear Roman Polanski. Porque ele é mestre na arte de conceber ambientes inquietantes. E é capaz de criar terror sem efeitos especiais. No domínio da suspeição e da desconfiança isto revela-se fulcral. Veja-se o clássico “A Semente do Diabo” (1968).

Suspeição, Desconfiança e Dúvida? São território de Hitchcock em “Mentira”, “Rebecca”, “Janela Indiscreta” ou “Desconhecido do Norte-Expresso” mas são afinal também temáticas importantíssimas em todas as histórias policiais (como as de Agatha Christie ou de Patrícia Highsmith). Só que Hitchcock tinha o seu jeito próprio de as explorar. E terá sido imensamente imitado ao longo dos anos…

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