sábado, março 17, 2007

EU, HIPOCONDRÍACO, ME CONFESSO

















«A melhor forma de me ver livre dos meus medos é fazendo filmes sobre eles
Alfred Hitchcock

É compreensível que quem melhor saiba recriar o Medo seja quem o sente. Aquele que o entende distintamente por experiência própria. E o reconhece nas múltiplas formas em que se manifesta. O Medo é uma reacção face ao perigo. Como tal, traduz-se em sintomas, em padrões comportamentais e no desenvolvimento de lógicas nem sempre coerentes e racionais.

Enquanto concebesse histórias de terror psicológico, Hitchcock estava a jogar num domínio muito seu. E provavelmente enquanto esculpia cada uma dessas obras, ele encontrava uma forma de dispersão ou de desvanecimento dos seus medos pessoais.

Cada produtor de arte reconhece instintivamente a sua natural área de acção. Hitchcock cedo começou, nos primeiros anos da sua carreira no cinema mudo, a construir a sua imagem de Mestre do Suspense. Imagem essa que consolidou ao longo das décadas que se seguiram. Chamaram-lhe o Arquitecto da Ansiedade.

Certo que Hitchcock sabia claramente que projectos deveria aceitar para obter boas receitas de bilheteira. As pessoas esperavam algo dele e era isso que ele lhes deveria oferecer. Mas aquelas histórias de crime e de suspense (apimentadas com ingredientes macabros e com um humor subtil) eram também aquilo em que ele mais gostava de trabalhar.

Dizem que é valente, aquele que não tem medos. Eu costumo defender que mais valente é aquele que, tendo medos, sabe viver serenamente com eles.

Sendo um cinéfilo convicto, encontro distracção no consumo de filmes variados. Os filmes de terror e de exploração de emoções extremas ajudam-me a exorcizar as minhas preocupações. Às vezes, filmes de assumida fraca qualidade, como “Pesadelo em Elm Street” (1984) de Wes Craven ou “Vampiros” (2000) de John Carpenter, podem divertir e dissipar mais a inquietação do espectador do que filmes com declarado valor artístico e humano.

Da minha forma modesta e discreta, compreendo o pensamento de Hitchcock. Porque as histórias de ficção que escrevo reflectem o pensamento de alguém que tem medo mas que gosta de explorar a natureza psicológica da sensação de perigo.

Dado que este blog é um somatório de confissões mais ou menos directas, não me ficará (muito) mal declarar aqui a minha hipocondria. Um medo pontualmente mais forte ou mais fraco da Dor e da Doença.
O personagem principal do único romance que escrevi é um homem hipocondríaco. Tê-lo-ei concebido desta forma por mera identificação com esse estado de espírito? É possível. Há certas realidades que tememos em relação às quais só queremos afastamento. Mas é sobre essas realidades que frequentemente conseguimos dissertar melhor.

Há escritores e cineastas cuja obra artística não reflecte nada deles nem da sua vida. Eu dificilmente seria uma dessas pessoas. Por sinal, Alfred Hitchcock também não o foi. Porque por detrás da sua vida pacata, familiarmente estável e segura, estaria um homem bastante receoso e sensível face à ideia do Medo e do Castigo. Havia muito da sua personalidade no seu trabalho. Não da sua vida pessoal e do seu quotidiano. Mas das suas emoções.

O meu pai ofereceu-me um dia um conselho importante. Disse-me que quando escrevesse histórias de ficção, procurasse descrever emoções e experiências com as quais me associasse. Na procura da coerência e da verosimilhança, não há nada como ser genuíno e intuitivamente lógico: tentar recriar emoções verdadeiras. Emoções que, se existem em mim, logicamente poderão residir no espírito dos personagens das minhas histórias.

Compreendem agora que um episódio do “Dr. House” possa ser para mim um pouco mais traumatizante do que o “The Shining” (1980) do Stanley Kubrick. Porque os fantasmas verdadeiros assustam mais do que os outros. E que fantasma maior pode existir para além do da manifestação de uma doença com repercussões fatais. Uma doença que limita, faz sofrer e conduz penosamente a uma morte prevista…

“Dr. House” é uma série que, às vezes, chega a explorar esses medos de uma forma macabra e barata. Como quando um doente vomita jactos de sangue ou recebe uma injecção directamente num olho.

De quando em quando, penso no Woody Allen de “Hannah e as Suas Irmãs” (1986). Nesse filme, Allen sofre de uma hipocondria de contornos obsessivos. É um homem que julga sofrer de uma doença mortal e que prepara com pânico o cenário da sua morte próxima. O médico apresenta-lhe o seu diagnóstico e assegura-o de que ele está de perfeita saúde. Allen sai do consultório a correr e vai a saltar de alegria pelas ruas. Até que conclui numa dada esquina: não irá morrer desta doença mas irá morrer certamente. Mais cedo ou mais tarde. Talvez o fim da sua vida, quando ocorrer, até seja bem mais trágico do que este para o qual se estava a preparar. E logo se afunda de novo na angústia.

Estamos a falar de Woody Allen, cineasta que também usa temáticas recorrentes e que frequentemente constrói personagens neuróticos e idiossincrásicos. O homem que disse com muita ironia: «Não tenho medo da minha morte. Só não quero lá estar quando acontecer

Resumindo todas estas ideias, aprender a viver significa existir serenamente neste nosso belo planeta azul mesmo perante os nossos piores fantasmas. Adoptar mecanismos de defesa. Interagir estrategicamente com os nossos medos. De uma forma ou de outra, Hitchcock tê-lo-à conseguido. E à custa das suas experiências, terá enriquecido, imposto mundialmente o seu nome e construído uma carreira cinematográfica singular. Simplesmente explorando os seus eternos medos: o medo da condenação, do peso da culpa, da justiça terrena e da justiça divina.

Ele costumava afirmar com ironia: «Não tenho desprezo pelos polícias. Só tenho medo deles.» Compreendo o que dizia. Quase sinto o mesmo. Mas não fujo dos polícias. Fujo dos médicos.

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