quarta-feira, maio 30, 2007

ESSA FABULOSA INSTITUIÇÃO CHAMADA CASAMENTO







«Se pudesses hoje voltar atrás, casarias comigo novamente?» – Pergunta Carole Lombard a Robert Montgomery numa cena inicial do filme “O Sr. e a Sra. Smith” de Hitchcock. A questão era pertinente para aquele homem e para aquela mulher mas, na verdade, muitos casais se devem confrontar permanentemente com dilemas destes. Se o Casamento une irrepreensivelmente as pessoas, se lhes impõe limites e sujeições, é também susceptível de ser associado a um fenómeno que transforma o amor numa obrigação.

Perante a inevitabilidade do Casamento, e como há solução para quase tudo (menos para a Morte), foi criado outro prodígio social: o Divórcio. É uma belíssima solução em certas circunstâncias mas nem sempre é fácil de conquistar. É frequentemente dispendioso e problemático. E quase sempre marcado por disputas judiciais e procedimentos burocráticos.

O Casamento é uma bela instituição mas, perante a sua hipótese, é aconselhável prudência. O ser humano é um animal racional mas nada há de mais irracional do que o amor ou a paixão. Sinto-me tentado a escrever: Cuidado, homens e mulheres do mundo inteiro! Porque para lá da assinatura deste contrato, abre-se um universo desconhecido – um possível abismo cujos contornos ninguém pode prever com precisão.

Em 1941, imbuído de um espírito semelhante ao que me levou a escrever assim, Alfred Hitchcock realizou dois filmes sobre a temática do Casamento: “O Sr. e a Sra. Smith” e “Suspeita”. O primeiro filme é um divertimento ligeiro, uma comédia (curiosamente sem mortes, nem crimes nem suspense declarado). É uma película simpática protagonizada por dois actores carismáticos e equilibrada pelo tom irónico do argumento. Em termos globais, é um filme sólido, sem desequilíbrios. Embora eu admire mais o contexto que opõe marido e mulher e não tanto a insinuação posterior do terceiro personagem na história, o sócio do Sr. Smith.

O enredo do filme é assim: O Sr. e a Sra. Smith estão casados há três anos. O casamento deles funciona segundo moldes muito definidos. Há regras para tudo, princípios a respeitar e procedimentos a ter em mente na confrontação com as dificuldades quotidianas. O Sr. e a Sra. Smith têm por princípio nunca se afastarem um do outro quando se zangam. Nessas ocasiões, costumam estar juntos – vários dias seguidos, se necessário. Empenham-se num enclausuramento devoto para verem ultrapassadas todas as incompatibilidades. A ideia é confrontarem-se sempre com os problemas em vez de fugir deles.

Quando o filme tem início, o casal está em retiro forçado. Não vêem ninguém nem ninguém os vê. Estão no quarto há vários dias. Ela está deitada, tapada com a roupa até à cabeça e espreitando o marido de soslaio. Ele joga às cartas sozinho mas também a espreita sorrateiramente. Esta sequência mostra-nos num esquema visual, sem diálogos, todo o contorno irónico da situação. Bem sabemos como Hitchcock gostava de trabalhar as imagens e fazer a câmara deslizar pelos cenários com intuitos elucidativos. Pela imagem, aprendemos muita acerca dos personagens. Mais pela imagem do que pelas palavras que são proferidas. (Assim sucede nos primeiros minutos de “Janela Indiscreta” (1954) que são fenomenais porque nos revelam tudo através do movimento da câmara e da revelação de pequenos pormenores importantes.)

Aquela crise do casal Smith é uma como tantas outras que já viveram. E só ficará resolvida a partir do momento em que cada um admitir as suas culpas, assumir as suas responsabilidades e repuser a harmonia. Há qualquer coisa de jocoso neste conceito de casamento. Como se, para amar alguém, fosse necessário respeitar um formulário de princípios minuciosamente estabelecidos. O casamento do Sr. e da Sra. Smith é artificial. Mas o amor deles não o é.

A ironia do argumento é esta: o casal é confrontado com a revelação bombástica de que o contrato matrimonial que assinaram não é válido; isto é, não respeita as normas legislativas e administrativas em vigor. Que farão eles? Voltarão a assinar formalmente os papéis para dar realidade a um casamento que, em termos legais, nunca existiu?

Quantas pessoas casadas têm direito a uma nova possibilidade de confirmar a sua decisão? E quantas não aproveitariam essa oportunidade para desistir do compromisso? O filme desenvolve um sorriso permanente nos lábios do espectador. Há inúmeros gracejos em torno do Casamento e daquilo que representa. E acaba questionando o espectador: afinal, qual deve ser o sentimento dominante numa relação que é muito mais do que um contrato entre duas partes?

Hitchcock brinca com o Casamento. E reflecte sobre ele. A sua postura em “Suspeita” é diferente. Claro que também é um divertimento. Mas é um filme de suspense, concebido num tom pontualmente mais soturno. Na medida em que não leva o suspense, o medo e a emoção (do espectador) a graus extremos, o filme parece-me mais desequilibrado. Certo é que o final concebido por Hitchcock era completamente diferente e mudava toda a perspectiva da história. A imposição de um final feliz transforma “Suspeita” numa moderada desilusão cuja cena final parece oca e inconclusiva. (Um pouco como aconteceu 22 anos depois em “Os Pássaros”)

“Suspeita” transformou-se num filme bastante aclamado mas não é uma obra brilhante. Embora contenha sequências interessantes (a cena do copo de leite, por exemplo) e apesar de criar expectativa e interesse. Aqui, Joan Fontaine (forçada a casar-se por imposições familiares) embarca numa verdadeira aventura no desconhecido. Não conhece o homem com quem casa (Cary Grant) e suspeita de forma gradualmente mais consistente que ele a quer matar para ficar com o seu dinheiro. É a história de um casamento atípico onde há misteriosas omissões e segredos.

São dois filmes distintos que nos oferecem uma imagem céptica e talvez desapaixonada do Casamento. Curiosamente, a vida pessoal de Hitchcock contrastava distintamente com as histórias dos seus filmes. O seu conceito próprio de Casamento evidenciava a procura de estabilidade emocional. A vida matrimonial do cineasta era harmoniosa mas não aventureira.

Advogando a sua condição preferencial de celibatário, Hitchcock parecia querer dizer aos seus interlocutores que o sexo não lhe interessava muito ou mesmo nada. A sua filha Patrícia nasceu pouco tempo depois de ele casar. Algures da sua formação católica podia advir subconscientemente a ideia de que o sexo só tem (basicamente) fins procriativos.

Dizia ele que um homem com uma figura como a sua só poderia fazer amor na escuridão, para que nenhum raio de luz o mostrasse. E que parecia haver sempre luzes por apagar… O embaraço mediante a sua imagem era óbvio mas Hitchcock tratava-o com humor e ironia, aligeirando qualquer sensação dramática que pudesse transparecer das suas palavras.

Só me pergunto: como se sentiria Alma quando ele se declarava celibatário? Presumo que sentiria algum desconforto… Ainda assim, o casamento dos Hitchcock era estável, seguro, assentava em conceitos de amizade e respeito mútuos, numa ideia de partilha de vida. E foi um casamento para uma vida inteira.

Contrariamente, o casamento no cinema de Hitchcock era pontualmente considerado como uma aventura, talvez uma loucura, uma imprudência. A palavra “casamento” não é muito referida pelos personagens dos seus filmes. O «happy-end» do par amoroso (que é frequente na filmografia do Mestre do Suspense) não quererá traduzir-nos que a paixão dos protagonistas se vá consolidar num casamento. – Embora os preceitos da decência o sugerissem.

Há muitos casamentos infelizes no cinema de Hitchcock: “Sob o Signo do Capricórnio” (1949), “Chamada para a Morte” (1954), “Vertigo” (1958), “Difamação” (1946), “Confesso” (1952), “Desconhecido do Norte-Expresso” (1951).

Também há alguns casamentos felizes: “Mentira” (1943) é o exemplo perfeito da família americana tradicional. A história de “O Homem Que Sabia Demasiado” (1934) e da sua remake (1956) traduz o mesmo ideal de família.

Em “Psico” (1960), Janet Leigh e John Gavin parecem ansiosos por casar mas é preciso assinalar que foi esse motivo que a levou a roubar 40.000 dólares. O casamento é temido por James Stewart em “Janela Indiscreta” (1954). É adiado por Paul Newman em “Cortina Rasgada” (1966) ainda que Julie Andrews, na cama com ele, profira: «És um cientista. Devias respeitar a ordem natural das coisas: o casamento vem primeiro e só depois a lua-de-mel.»

Hitchcock não parecia interessado em mostrar cenas idílicas das cerimónias de casamento. Não vemos nenhuma das suas heroínas em traje nupcial nem a caminho do altar. Às vezes, o casamento ocorrera antes da acção do filme. Outras vezes, acontecia durante o desenrolar da narrativa mas a recriação da cerimónia era omitida. Vejam-se “Rebecca” (1940) e “Marnie” (1964).

Casamento como porta de abertura para o desconhecido? A ideia faz sentido quando não se conhece o cônjuge, nem os seus princípios, nem o seu percurso de vida. E faz sentido quando (como Hitchcock e Alma) se entra no matrimónio num estado de virgindade.

Casamento como aventura e confronto de personalidades? Vêmo-lo nos dois filmes de 1941. Num deles, de modo mais jocoso; no outro de forma mais sombria, mas aí o final idealizado por Hitchcock seria definitivamente mais expressivo: Cary Grant matava Joan Fontaine – Ela deixava-se matar por amor mas denunciava o crime numa carta escrita previamente e endereçada à Polícia.

Se o Casamento é uma forma de partilha de vida a dois, é também o contexto no qual inúmeras alterações se vão processando. Repare-se como o vestido com que a Sra. Smith casou já não lhe serve – e só passaram 3 anos. Observe-se igualmente o restaurante de grandes memórias românticas ao qual eles regressam: tudo nele está diferente, modificado e modificado para pior.

Hitchcock parece lembrar-nos que num casamento a aceitação dessas alterações – internas e externas – é não só importante mas crucial. Assim como a capacidade de perdoar, de confiar e de compreender o outro. Afinal o Sr. e a Sra. Smith têm o nome mais comum que existe. Porque são tão comuns como a maioria das pessoas.

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