quinta-feira, agosto 07, 2008

HITCHCOCK E O NAZISMO





Cerca de uma década antes de surgir a sua primeira série televisiva (com episódios autónomos de menos de trinta minutos), Alfred Hitchcock viveu uma experiência particular. Em 1944, concordou realizar dois pequenos filmes de carácter propagandístico e em apoio aos heróis e às vítimas da 2ª Guerra Mundial. Pequenos filmes com cerca de meia hora, cada um. Constituiram uma importante incursão de Hitchcock na narrativa cinematográfica de histórias de curta duração.

Na época, Hitchcock já se tinha mudado para os Estados Unidos onde trabalhava para o produtor David O Selznick. Encontrava-se a cimentar o desenvolvimento da ideia de “A Casa Encantada” quando aceitou vir propositadamente à Europa para realizar «Boa Viagem» e «Aventura Malgaxe». Em Janeiro e Fevereiro de 1944, Hitchcock encontrou-se de volta ao seu país natal.

Aqueles dois filmes produzidos em Inglaterra, com a participação e o contributo directo de actores e técnicos de língua francesa, serviriam potencialmente de promoção de um certo espírito anti-belicista e anti-nazi ou quem sabe para enaltecimento dos heróis de guerra dos países aliados.

De facto, Hitchcock admitiu. Era demasiado gordo e velho para se alistar nos exércitos das frentes de batalha. Mas poderia combater na guerra, usando as suas próprias armas: os instrumentos que faziam dele um hábil e famoso cineasta.

O resultado final não é tão propagandístico quanto isso. As duas curtas-metragens que foram já editadas em DVD (e que passaram num programa de Catarina Portas no canal 2 da RTP há poucos anos) parecem mais histórias de aventuras, espionagem e traição. Não encontro nelas, claras mensagens políticas.

«Boa Viagem» é um filme mais interessante. A sua história é narrada mediante flashbacks que reconstituem os acontecimentos tal e qual como peças de um puzzle. A ideia da personagem sósia (que não é quem julgávamos que fosse) foi muito trabalhada no cinema de Hitchcock. No final, a sucessão dos acontecimentos é revista e verificamos que tudo o que sucedeu só obteve concretização a partir de um plano meticulosamente preparado. Tal como noutros enredos tipicamente hitchcockianos.

A morte chocante da jovem vítima da resistência é possivelmente o momento mais intenso da história. Quase que parece anteceder o frio assassinato de Juanita num outro filme muito político que Hitchcock viria a realizar no contexto cubano, «Topázio» (1969).

A verdade é que se Hitchcock procurava veicular uma mensagem sociológica ou anti-nazi nos dois pequenos filmes de 1944, o seu intuito surge dissimulado ou esbatido. Parece antes que o realizador trabalhou aqui histórias de espionagem num registo de entretenimento próximo do de qualquer filme seu do género. Explorando o dramatismo das situações e deliciando-se a narrar os acontecimentos mediante jogos de aparências.

Neste universo, os espiões e os contra-espiões representam os seus papéis (tal e qual como actores) no desejo de adoptar uma identidade falsa que os fará ludibriar a acção dos inimigos. No caso de «Aventura Malgaxe», há uma confrontação entre o mundo dos espiões num palco de guerra mundial e o camarim dos actores de uma companhia teatral. Afinal, um espião é um actor. Engana, dissimula, representa um papel que não corresponde ao da sua identidade própria.

Enquanto contasse histórias de espiões, Hitchcock estava no seu campo de batalha próprio. Era senhor desse campo de batalha. De modo espontâneo e porque o tempo o firmou como mestre desse tipo de histórias.

Resta apenas apurar se o esforço de produção e realização destas obras terá sido meritório e proveitoso, na medida em que, durante décadas, poucos espectadores as viram e hoje, mais de sessenta anos depois, nada de muito engenhoso ou emocionante sobressai delas. Foram esquecidas no tempo e não brilham nos nossos dias pela sua excelência nem pela sua genialidade ímpar. São antes documentos históricos, feitos numa época precisa por um homem influente.

As duas curtas-metragens de 1944 não parecem funcionar como filmes de propaganda onde tudo é simples e directo. Pelo contrário, nestes filmes há uma visão ambígua dos personagens que não ajuda a veiculação de uma mensagem evidente e sem meios-termos.

O mesmo não se poderá dizer do documentário com imagens reais retiradas de campos de concentração nazis e que Hitchcock editou. Chamam-lhe o filme de Hitchcock sobre o Holocausto. O produtor Sidney Bernstein (amigo pessoal de Hitchcock e que produziria mais tarde para ele «A Corda» (1948) e «Sob o Signo do Capricórnio» (1949)) trabalhava então para o governo britânico. O Ministério da Informação foi incumbido de produzir um documento que apresentasse filmagens nos campos, imediatamente após a Libertação, em 1945.

O resultado traduziu-se em centenas de milhares de metros de filme; imagens captadas directamente de cerca de 5000 campos. O propósito era criar um relato objectivo, cru e sem artificialismos, que fosse suficientemente poderoso para alertar as pessoas para os métodos de terror usados pela política nazi.

Aquelas imagens eram de uma violência extrema. Alertavam para a estupidez da ideologia nazi e para a perversão da maldade humana. Seria inconveniente mostrá-las. Mas o governo britânico e os técnicos do filme não procuravam meias verdades. Enquanto denunciassem a extensão da tragédia, poderiam também mostrar àqueles que lutaram contra a Alemanha que a sua luta fôra importante. E que cenários daqueles nunca mais se deveriam repetir.

Havia todo o interesse em levar aquelas filmagens à população alemã para que tomasse consciência plena das atrocidades levadas a cabo pelo governo de Hitler e pela sua ideologia macabra.

Sidney Bernstein chamou Hitchcock para que este montasse as imagens. Procurava alguém que fosse capaz de provar a autenticidade daqueles cenários tenebrosos, que mais pareciam o resultado delirante de uma mente enlouquecida.

Hitchcock procurou mostrar planos amplos que mostrassem que não havia artificialismos nem truques baratos naquelas imagens. Os corpos dos mortos misturavam-se com o da gente viva. Mortos e vivos nus, privados de toda a dignidade humana. Homens, mulheres e crianças tratados como lixo.

O documento, tal como foi editado, permaneceu oculto durante quarenta anos. Parecia particularmente difícil mostrá-lo às audiências. Viviam-se os meses do pós-guerra e ninguém queria arriscar sensações perigosas ou sentimentos de revolta. Os cinemas convidavam as plateias para entretenimentos que causassem alegria, esperança ou riso. As memórias dos campos de concentração filmadas pelos técnicos do governo britânico acabaram armazenadas num armário. Mais precisamente, nos arquivos do Imperial War Museum, em Londres.

Em 1985, o filme montado passou na televisão britânica com o nome «A Painful Reminder». Anos depois apareceu em DVD com o título «Memórias dos Campos» (no original «Memory of The Camps»). Agora pode ser visto na Internet.
Trata-se de um filme que envolve o trabalho de vários operadores de câmara, técnicos e profissionais do cinema. Uma obra que apresenta uma orientação definida e comentada por um discurso em «voz-off». O actor Trevor Howard lê o guião que fora concebido por Sidney Bernstein e seus colaboradores.

Agora as «memórias dos campos» podem ser visitadas por toda a gente. Este é um documento brutal e que exige alguma preparação por parte do espectador. Tal como os seus mentores pretenderam fazer dele, é um registo que nos mostra sem delicadezas os horrores do Holocausto levados a um extremo inconcebível. Nunca em nada que Hitchcock tivesse feito, a maldade, a insensatez e a perversão humana haviam sido tão claramente mostrados.
Pela primeira vez, Hitchcock editava imagens reais. A verdade acerca dos campos de concentração deixou-o deprimido e impressionado. O seu contributo para o filme foi importante. Mas raramente ele falava deste projecto. O assunto era demasiado delicado. E monstruoso.

(1945, 53 minutos; Hitchcock é creditado como técnico editor)

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