sexta-feira, dezembro 23, 2005

A IMAGEM, O SOM E A PALAVRA...


Hitchcock era um defensor consciente ou inconsciente do primado da Imagem sobre a Palavra. Alguns dos melhores momentos do seu cinema são essencialmente visuais. O diálogo não é determinante nestas cenas mas meramente complementar. Isto não significa dizer que o som é dispensável ou que não houvesse rigor na criação sonora dos seus filmes. Os sons no cinema de Hitchcock são importantes: a Música e os ruídos decorrentes da acção. Mas é a Imagem que mostra a maior dimensão da realidade.

Talvez Hitchcock fosse mais genial a criar a Imagem do que a escolher os diálogos dos personagens. Por isso, me parecem tão relevantes inúmeras cenas da sua obra em que não há diálogos.

“Psico” (1960) apresenta sequências inteiras de imagens sem diálogos. A acção decorre da expressividade das imagens e da genialidade da música. Mas também os silêncios são relevantes.
Na cena mais famosa do filme, há uma inteligente gestão do som. Quando Janet Leigh entra na banheira, há uma suspensão temporária da música. Quase só se ouve o som da água que corre do chuveiro. Por isso, o ataque é mais imprevisto e o facto de ser tão imprevisível ainda o torna mais brutal. Logo então, os acordes cortantes da banda sonora criam um efeito arrepiante.

Bem sabemos também que Hitchcock fez questão de adicionar um efeito sonoro suplementar: o som das facadas em simultâneo com os gritos da rapariga. Atenção: foi gravado o som de facadas em melões. Nenhum ser humano foi propositadamente esfaqueado. Nem nenhum cão ou gato.

“Psico” pode ser o melhor exemplo para apontar o que referi. Mas o cinema de Hitchcock está densamente iluminado por cenas deste tipo. Encontramo-las em “Vertigo” (1958), “O Desconhecido do Norte Expresso” (1951), “Janela Indiscreta” (1954), “Chamada para a Morte” (1954), “O Homem Que Sabia Demais” (1956), “Intriga Internacional” (1959), “Cortina Rasgada” (1966), “Marnie” (1964); em “Rebecca” (1940) e “Casa Encantada” (1945) …

São cenas em que o elemento visual é preponderante embora o som também tenha requerido tratamento. O exemplo mais demonstrativo de um filme sem banda sonora mas com um trabalho apurado na produção e definição do som é “Os Pássaros” (1963).

Foi um enorme desafio para Hitchcock conceber um filme de terror sem música porque a música é muitíssimo eficaz na recriação de ambientes sinistros. Aqui, os sons registados com pássaros são sobrepostos, distorcidos, acentuados ou diminuídos consoante os imperativos decorrentes da acção.

A recriação do ataque dos pássaros à casa de Rod Taylor assenta na eficácia do som estridente, perturbante, alucinante. Não há palavras soltas nem diálogos. Só ouvimos os pássaros. Só ouvimos os seus gritos de ataque.

Por isso, concluo sem marca de hesitação que o som no cinema de Hitchcock é concebido de forma inteligente e marca a atenção do espectador. Mas a palavra e o diálogo talvez não tanto…

Um filme demasiado palavroso como “A Corda” (1948) ou a segunda metade de “Chamada para a Morte” (1954) podem traduzir de que forma a Palavra em Hitchcock nem sempre revela tanto brilhantismo como a Imagem.

“Chamada para a Morte” (1954) é o perfeito exemplo do filme de Hitchcock que funciona enquanto há uma acção pautada por gestos, expressões corporais e sombras e que não funciona quando o argumento perde tempo em redor dos pormenores e dos raciocínios. Na primeira metade, há todo um processo de concepção e preparação do acto do crime. Aos primeiros 40 minutos corresponde um belo pedaço de cinema de Hitchcock.

Já a segunda metade não é mais do que um exemplo de cinema policial entediante em que o público acompanha as investigações do detective sem grandes emoções ou apegos emocionais. Aqui escrevo em meu nome porque entendo que falta suspense onde ele era esperado.

Afinal, quase todo o cinema actual é composto por Imagem e Som. Soa lógico que Hitchcock tenha começado a sua carreira de realizador ainda na época do mudo. E que depois tenha vindo a aproveitar o progresso técnico possibilitado pela adição de som às imagens.

Hitchcock começa a realizar em 1925. O ano de 1929 marca um momento de viragem. “Chantagem” (1929) tem duas versões. É um filme concebido e filmado como mudo. Mas depois, é-lhe adicionado som.

Em 1934, Hitchcock já estava bem ciente de que a Música podia rimar de forma fantástica com as imagens e que dessa rima podia advir muita expressividade para as suas cenas de suspense. Por isso, em “O Homem Que Sabia Demasiado” (1934), ele construiu uma cena de importância culminante que decorre durante um concerto no Royal Albert Hall, em Londres. O bater dos címbalos ditará a morte de uma pessoa na assistência. (Na remake de 1956, esta cena é reconstituída e aperfeiçoada)

Em “Sabotagem” (1942), Hitchcock decidiu que o clímax do suspense no topo da Estátua da Liberdade seria quase mudo, sem música e com pouco ruído. Procurava tornar o silêncio mais intenso e angustiante do que qualquer música ou som.

Hitchcock sempre soube tirar proveito dos recursos sonoros à sua disposição. E da possibilidade da escolha entre o ruído e o silêncio.


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