quarta-feira, maio 10, 2006

ACREDITAR É PRECISO - CONCLUSÃO


Há uma história paradigmática na vida de Hitchcock: num dia, indo ele a deslocar-se de automóvel, viu um jovem rapazito a ser acompanhado por um padre de batina comprida. Aquela imagem trouxe-lhe apreensão. Ficou consternado e terá gritado da janela aberta do automóvel: “Run for your life!” (podemos traduzir por “Corre pela tua vida!”)

Os padres recordavam-lhe o colégio de jesuítas e o severo ambiente que lá se vivia. Mas na realidade, Hitchcock não era adverso ao espírito do Catolicismo. “Confesso” (1952) e “O Falso Culpado” (1957) são dois belos filmes que debatem as temáticas da culpa, da justiça (divina e terrena) e do amor. E que confrontam o espectador com as temáticas da crença e da fé.

Não são perfeitos exemplos de obras de suspense. O nome de Hitchcock está mais associado a um estilo muito específico de histórias de crime e de terror psicológico. No entanto, são dois dos mais maduros filmes do Mestre quando verificamos que os seus personagens são perfeitos exemplos da Humanidade, seres humanos com tudo o que a Humanidade tem de bom e de mau. E são também, à sua maneira, histórias de crime e de terror psicológico.

O Padre Logan em “Confesso” é acusado de um assassinato e sabe quem é o criminoso. Não pode revelar o que sabe porque as preciosas informações de que dispõe lhe foram reveladas no sacramento da Confissão. Os padres não podem (perante Deus em Quem acreditam e perante a Igreja à qual prometeram obediência) revelar os segredos expressos no confessionário.

Este filme de Hitchcock é a história de uma vítima. Vítima de uma injustiça divina (como pode Deus trair a lealdade do Padre Logan?); de uma injustiça institucional e social.
E depois há a relação amorosa com uma mulher que em tempos amou… (e não ama ainda?) O que nos convoca para a polémica questão da obrigatoriedade do celibato dos padres católicos.


“Confesso” é a história de lealdade de um homem aos seus valores. Debate o tema da culpa. E culmina com uma absolvição. O criminoso pede ao padre que o perdoe. Pede perdão perante o homem que traiu. E pede a Deus que elimine os seus pecados ou o peso da sua culpa.

Montgomery Clift deambula, a meio do filme, pelas ruas da sua terra no Quebeque dos anos 50. Vê-se a Cruz que Cristo carrega e também ele parece arrastar a sua própria cruz. Eis outro conceito muito importante no Cristianismo em geral e no Catolicismo muito em particular: O conceito de Cruz que todo o ser humano precisa forçosamente suportar e do qual não pode fugir.
No Tribunal, vemos um crucifixo de grandes dimensões para além da figura do Padre Logan que está a depor na cadeira do réu.


A ideia de Cristo crucificado, admite Hitchcock ter-lhe passado pela ideia quando, em “O Inquilino Sinistro” (1925), filmou o pobre homem inocente pendurado sob as algemas que o mantêm cativo a uma grade. Esse é o primeiro grande filme de Hitchcock, tipicamente hitchcockiano. E lá está o debate sobre o tema do homem inocente, falsamente acusado.

“O Falso Culpado” é também um belíssimo filme. Realizado cinco anos depois, em 1957, é um filme denso e dramático. Aqui um homem bom, Manny Balestrero, é acusado de crimes que não cometeu e sentenciado injustamente a um humilhante processo de investigação onde é tratado com desprezo. Mais uma vez se questiona a justiça divina e a justiça do mundo.

O homem não perde a sua fé. Inclina-se sobre o seu sofrimento e sobre o da esposa que vai caminhando para a loucura. Com um terço do rosário nas mãos e um desejo fervoroso de lutar pela defesa da sua liberdade e do seu bom-nome.

Henry Fonda dá corpo, voz e expressão a este personagem. E Hitchcock brinda-nos com um filme em que (como em poucos outros da sua obra) os actores são soberbos e intensamente convincentes.

Há quem detecte uma perspectiva documental nesta obra. Tratando-se de uma história baseada num caso verídico, Hitchcock poderá ter querido realizar uma obra realista, fiel à realidade e terá filmado como se passeasse as câmaras dentro da própria vida de Manny Balestrero. Captando os seus sinais e os seus gestos. Filmando o aprisionamento de um homem inocente dentro de uma realidade implacável. E não menosprezando o contexto do ambiente urbano da cidade de Nova-York.

Que pode fazer um homem perante as injustiças? Em que medida pode lutar por si e por aquilo que defende? Balestrero reza diante de uma imagem de Jesus Cristo. E o verdadeiro criminoso é identificado. Quase como se da imagem de Cristo nascesse um milagre.

Que pode um homem fazer perante o que não é justo? Balestrero recuperou a liberdade e limpou o seu nome mas nada apagará o sofrimento que viveu e que quase o definhou. Nada ou quase nada poderá trazer de volta a sanidade mental da sua mulher Rose (intensamente interpretada por Vera Miles).

Como “Vertigo” que Hitchcock realizaria um ano depois, “Falso Culpado” é um filme sobre a angústia. E como em “Vertigo”, é filmado o corredor de um hospício de forma trágica e comovente. Em “Vertigo”, é Barbara Bel Geddes quem caminha ali com enorme desalento, passo a passo, carregando o enorme desgosto de quem perdeu tudo na vida. Em “O Falso Culpado”, a cena final apresenta-nos Henry Fonda, indefeso e impotente mediante a trágica condição da sua mulher. Rose estará louca ou quase. E ele terá pago uma sentença pesada por crimes de que sempre esteve inocente.

Justiça divina? Existe justiça divina? Eu acredito que há uma ordem no Cosmos e que o Big Bang não pode ter surgido à toa. Acomodo-me às minhas crenças e acredito na segurança que elas me oferecem.

É preciso acreditar. Para além das tragédias e da completa injustiça de certas realidades, devemos continuar a acreditar em qualquer coisa. É difícil compreender a condição humana num universo de proporções gigantescas onde Deus não nos profere verbalmente uma palavra. Mas enquanto acreditarmos nos valores mais belos da nossa existência, poderemos ver o mundo com um olhar mais sereno.

Não é preciso acreditar em Deus para se ser exemplar. O exemplo de santidade que um ser humano pode oferecer provém das suas acções. Na verdade, o homem religioso não pode provar que Deus existe e o homem ateu não pode provar que Deus não existe. Mediante a nossa condição, só no resta optar por levar vida e alegria onde elas não existirem…

Hitchcock terá assimilado o conceito mais severo de culpa. E por isso, as histórias dos falsos culpados se desdobram na sua obra. Afinal quase todos nós pagamos por crimes que não cometemos.

Há crianças a morrerem de fome, de minuto para minuto. Há seres humanos maravilhosos vitimados por doenças horríveis ou ceifados por acidentes que os deixam suspensos numa vida sem dignidade nem alento de qualquer tipo.

Podemos acreditar no valor da Justiça (divina e terrena)? Ainda assim, e apesar de tudo, acredito que sim. Acredito que podemos oferecer espaço à esperança. E Acreditar é mesmo preciso!

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