quarta-feira, abril 26, 2006

ACREDITAR É PRECISO - PARTE I





Num mundo repleto de tragédias e de ansiedades, é preciso acreditar em qualquer coisa. Como alguém disse: “De que serve ter liberdade se não houver vontade?” Realmente só o ímpeto para alcançar um objectivo, a motivação para construir um castelo de areia ou uma Torre Eiffel é que fazem a Vida ter sentido.


Se não sentir desejo de nada, se nada buscar, se em nada acreditar, o ser humano não vive verdadeiramente mas simplesmente vegeta. Como uma planta, uma árvore ou uma flor. Os dias passam corriqueiros, o amanhecer e o anoitecer são rotinas desapaixonantes. Não há paixão de viver. Não há entusiasmo.

É preciso acreditar em qualquer coisa. Num ideal, num valor, num projecto, numa centelha de vida a que nos agarremos com quantas forças temos.

Compreenderão que não sou nada adverso à religião. Porque pode ajudar os seres humanos. Porque pode conferir sentido ao encadeamento dos acontecimentos. Porque pode ser um abrigo debaixo do qual um homem se refugia quando caem raios e coriscos; e onde não chega (tão facilmente) o medo e a desorientação.

Parto para esta reflexão, tomando o exemplo específico de dois filmes de Hitchcock mas não menosprezando a perspectiva da obra global do Mestre e o seu pensamento e educação. As obras são "Confesso" (1952) e "O Falso Culpado" (1957).

Acredito que é preciso ter fé em princípios sãos e construtivos. Perguntar-me-ão: onde estão esses princípios e quais são? Podemos falar de religião.

Sem dúvida que há muitas religiões no mundo. É perfeitamente subjectivo advogar que uma delas é mais verdadeira do que as outras. Na realidade, não me interessa defender uma religião específica.

Se sou católico, não posso ter uma fé plenamente budista. Se sou judeu, as práticas dos feiticeiros de uma tribo africana não me sensibilizam nem eu acredito nelas.

Não. Falo-vos da importância de acreditar. E a religião assenta no princípio da crença, constrói os seus alicerces não num raciocínio lógico e dedutivo ou indutivo mas num tipo de crenças: a fé.

Diz-se que a fé move montanhas. Acreditem que estudei Antropologia e confrontei o peso subjectivo de cada religião face às outras. Talvez por isso me interesse mais procurar pontos de encontro entre as culturas e as religiões do que em definir pontos de divergência.

Afinal, hoje é admissível defender que todas as religiões podem ser construtivas e podem cimentar a paz, a harmonia e a concórdia entre as nações. Mas foi preciso deixar passar muitos séculos para que se pudesse estabelecer uma relação harmoniosa (e até complementar) entre ciência e fé.

Na Europa Ocidental e nomeadamente no âmbito da Igreja Católica, as cruzadas e as guerras santas não fazem sentido à luz de um pensamento moderno que pondere o papel da Razão e o peso da Fé. Matar em nome de Deus? É absurdo!
(Os americanos matam em nome de valores e de interesses quiçá políticos e económicos. Os mesmos americanos aplicam a pena de morte, remediando um crime com outro crime. Mas os americanos não matam em nome de uma religião!)

Os fanatismos do tempo da Inquisição cederam lugar, no mundo ocidental, a uma reflexão mais serena sobre o mundo e sobre a vida.


Sou religioso, aceito o meu amigo católico, o meu amigo budista, o meu amigo muçulmano e o meu amigo ateu. O que hoje a religião pode cimentar é o espírito de concórdia. Gosto de pensar na união dos povos no seio das suas diferenças.

Na minha opinião, os terroristas do Médio Oriente não podem ser homens religiosos. Quando oferecem a sua vida e a de milhares de vítimas inocentes a Alá, fazem-no a partir de uma versão degenerada do espírito religioso do Islão. Não confundamos crença com fanatismo lunático. Nem com o desejo de impôr a vontade própria à dos outros, sacrificando vidas humanas se for preciso.

Na verdade, é preciso acreditar. Quase sempre a crença religiosa é construtiva se impuser harmonia entre os povos e conferir sentido à nossa vida.

Uma religião traduz um código de valores. Bem vemos no espírito de Hitchcock os sinais de um realizador marcado por uma educação católica severa, punitiva, instigadora de sentimentos de culpa. Acreditem que não fico nada feliz quando penso em homens de Deus que revelam ao mundo maus exemplos de vida. Mas não tomemos o todo pelas partes.

O que é notícia nos jornais é o homem que morde o cão e não o cão que morde o homem. Por muitos maus exemplos que possamos encontrar na vida de homens religiosos, haverá tantos outros bons exemplos de que ninguém nunca fala. A erva nos campos verdes está sempre a crescer mas nós não vemos o seu crescimento a olho nu. Ela cresce mas não é evidente à nossa vista que, de um minuto para o outro, ela tenha evoluído e se tenha desenvolvido.

Observe-se o Padre Logan de “Confesso” (1952) ou o Manny Balestrero de “O Falso Culpado” (1957). Eles podem bem ser exemplos de homens que acreditam nos seus valores. É coerente uma equiparação entre estes dois filmes. São histórias sobre homens acusados de crimes que não cometeram. E homens que entregam os seus destinos nas mãos do deus em que acreditam.

Hitchcock tinha um medo especial dos polícias (e da ideia da prisão). Mas no íntimo da sua consciência, ele tinha temor dos padres também. Porque foram eles que ajudaram a cimentar o seu medo, o seu receio do castigo e da punição e o seu conceito de culpa.

Sabemos aliás que o Catolicismo atribui um espaço perigosamente relevante à ideia de culpa. Culpa pelos pecados que cometemos, pelas ideias que ousamos construir ainda que involuntariamente, pelas palavras e acções que poderíamos ter proferido em proveito dos outros e que não proferimos… Culpa afinal pelo pecado de Adão e de Eva com que todos nascemos e que só será aniquilado pela acção do sacramento do baptismo.

Esta ideia de culpa preocupa-me. Eu próprio me culpabilizo em imensas ocasiões por motivos menores. Prefiro pensar no lado mais sadio da Humanidade, nos gestos generosos que é capaz de erguer. Há muita bondade no mundo embora exista um instinto muito espontâneo nos seres humanos para a violência e para o egoísmo.

Receio que essa ideia de culpa esteja imanente em muitos dos personagens de Hitchcock e em nós próprios enquanto espectadores dos filmes e enquanto nos identificarmos com os heróis dessas histórias. Poucos heróis hitchcockianos estão completamente isentos de culpa.

Por isso se escreve que Hitchcock era um realizador católico. Não porque fosse à missa e comungasse. Mas antes porque havia assimilado a teologia católica e a havia transposto (consciente ou inconscientemente) para as suas obras. E nessa teologia, o peso da culpa humana é muito relevante.

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