
O mínimo que posso afirmar acerca da edição portuguesa de “It’s Only a Movie” de Charlotte Chandler é que me proporcionou alguns dias de leitura muito agradável. Gosto de beber pausadamente o meu café numa esplanada; e de ler ou escrever enquanto mergulho nos universos que crio ou que outras pessoas conceberam.
O livro de Chandler é apresentado como uma incursão na vida e na obra de Hitchcock. Inclui testemunhos de muitas pessoas que conheceram e trabalharam com o Mestre do Suspense.
A autora é uma amiga de longa data da família Hitchcock e membro da direcção do Film Society of Lincoln Center. Já publicou um best-seller sobre a vida de Grouxo Marx e outro sobre Frederico Fellini que foi muitíssimo aclamado e traduzido. É uma senhora que se movimenta com facilidade entre grandes personalidades do Cinema e que tem colhido experiências relevantes.
“É Só Um Filme” permite prazer puro a qualquer hitchcockiano. No entanto, não sei até que ponto a minuciosidade de certos apontamentos é relevante para quem procure uma leitura ligeira. Nem sei se um cinéfilo não hitchcockiano poderá encontrar deleite nas páginas deste livro. Também não acredito que possa ser apreciado por uma pessoa indiferente à cinefilia.
De facto, as primeiras quarenta ou cinquenta páginas são deliciosas. Mas depois, a autora condensa notas e apontamentos e dispõe-nos numa ordem cronológica demasiado rígida.
Contava encontrar um livro que me revelasse muitas histórias inéditas. E também muitos episódios interessantes. E eles estão lá. Mas o tom é demasiado jornalístico e muito pouco literário.
As páginas finais relatam o drama de Hitchcock perante a sua debilidade física e defronte da doença da esposa. Chandler é contida. Não fala de si mesma nem procura avivar, de forma barata, as emoções do leitor. É muito precisa acerca da organização e da apresentação das informações.
“É Só Um Filme” é um livro biográfico escrito por alguém que conseguiu recolher testemunhos valiosos. Louvo a Editorial Bizâncio pela sua aposta neste livro.
Encontrei algumas histórias curiosas no decurso da leitura desta obra e uma oportunidade soberana para consolidar conhecimentos e impressões. O livro é um presente perfeito para qualquer hitchcockiano. Tanto mais que havendo dezenas e dezenas de obras sobre Hitchcock, poucas têm sido editadas em língua portuguesa e menos ainda em português de Portugal.
Aconselho o livro a quem procura conhecer melhor a personalidade de Hitchcock, o desenvolvimento do seu trabalho e o impacto das suas criações sobre o público; e sobre os actores, técnicos e músicos que se cruzaram com ele. É uma biografia sobre a influência da vida deste homem na vida dos outros.
Homem amado e detestado. Temido e venerado. Controverso e carismático. Surpreendentemente marcante. Ícone do Cinema do século XX. Este livro fala-nos do homem e da sua obra. Sem proezas literárias nem processos narrativos elaborados.
No percurso das páginas deste livro, é muito belo o sentimento de amor e dedicação que une Hitchcock à sua esposa Alma. Alfred Joseph e Alma foram companheiros durante mais de cinquenta anos. Trabalharam juntos, trocaram ideias, apoiaram-se mutuamente e dividiram entre si muito alento e esperança. A ideia de que Alma pudesse morrer antes de si preocupava intensamente Hitchcock nos seus derradeiros dias.
O consentimento de Alma, os seus conselhos e as suas opiniões eram indispensáveis para o cineasta do suspense. Alfred e Alma partilharam a paixão pelo Cinema e um grande e saudável espírito de romantismo. Não admira que a filha do casal, Patrícia Hitchcock, tenha proferido algures que este pode ser o livro mais interessante que leu sobre o seu pai.
Deixo aqui uma citação retirada da página 309. São palavras de Hitchcock: “Sou um homem cheio de sorte. Comecei muito cedo a fazer aquilo que queria fazer. E pude continuar a fazê-lo. Encontrei a companheira perfeita para a minha vida. Tivemos uma filha perfeita, Pat. Não mudaria nada na minha vida, senão o facto de ela ter de acabar.”
Na iminência do seu fim enquanto cineasta e enquanto ser humano, Hitchcock deixou evidenciar uma fragilidade crescente. Mas também um regozijo por ter sido presenteado com tantas dádivas.
Uma nota final: Já escrevi, não sei bem em que artigo, que Hitchcock foi sepultado, sendo secreta a localização da sua campa. Aprendi com Chandler que não é verdade. O corpo de Hitchcock foi cremado e as suas cinzas deitadas ao Oceano Pacífico. O mesmo destino encontrou Alma Reville Hitchcock. Acredito que algures se terão encontrado. Ou que ainda se vão reencontrar.
Hitchcock terá dito também: “Os filmes são a minha vida mas, mesmo que não possa fazer mais nenhum, gostava de continuar vivo… enquanto a Madame estiver viva. Nunca poderei estar bem se ela estiver doente. A nossa vida a dois é agora tão próxima como ontem, tão afastada como amanhã.” (página 310)
Acredito que, amanhã, Alfred Joseph e Alma estarão bem próximos. Amanhã como ontem. Quero acreditar que sim. Nos filmes de Hitchcock, nem sempre os factos faziam sentido e eram justos. Mas a lógica de Deus talvez seja diferente… Tem de ser diferente.
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