terça-feira, janeiro 16, 2007

A ESPIONAGEM SEGUNDO HITCHCOCK













Encontramos histórias de espionagem na filmografia de Hitchcock desde os seus primeiros anos até aos últimos. Os jogos de espionagem fascinavam o cineasta do suspense e povoam o imaginário do seu universo artístico. Permitiam-lhe construir enredos rocambolescos e divertidos que ele podia apimentar com emoção e humor.

O tema da espionagem foi muito trabalhado por Hitchcock. E ele movimentava-se nele com desenvoltura e destreza. Possivelmente o primeiro grande sucesso comercial de Hitchcock foi “O Homem Que Sabia Demasiado” de 1934. Certo que “O Inquilino Sinistro” (1926) e “Chantagem” (1929) desempenharam papéis fulcrais no processo de expansão da fama do realizador inglês. Mas na década de 30, Alfred Hitchcock era o cineasta inglês mais célebre graças nomeadamente aos seus filmes de espionagem.

Em “O Homem Que Sabia Demasiado” é narrada a história de uma família comum envolvida nas teias de um esquema de espionagem internacional. Aqui Hitchcock terá cimentado princípios e estratégias que usaria e desenvolveria ao longo dos anos.

“Os 39 Degraus” (1935) é genericamente considerado o grande filme de Hitchcock realizado em solo inglês. Baseado no livro de John Buchan, vai além da história do romance e desenvolve uma trama amorosa que tem tanto de sentimental como de humorística. Madeleine Carroll e Robert Donat são os protagonistas ligados fatidicamente um ao outro por um par de algemas. Hitchcock compreende algures por aqui que a conjugação planeada do dramático com o cómico pode ser a receita ideal para o sucesso junto do público. Ou mais precisamente o jogo entre o suspense e o humor.

Não admira que Hitchcock tenha repetido as suas incursões no universo dos espiões ainda durante a década de 30. E depois. Em “Desaparecida” (1938) de forma brilhante. Em “Correspondente de Guerra” (1940) e “Sabotagem” (1942) de modo já experiente e sábio. Em “Um Barco e Nove Destinos” (1944) de forma subliminar. Em “Difamação” (1946) construindo uma fantástica história de amor entre espiões.

Muitos cinéfilos não hesitam em colocar “Intriga Internacional” (1959) no ponto cimeiro da sua obra, considerando que é o expoente máximo da genialidade do Mestre. Quem não é tão radical na sua defesa intransigente não pode ficar indiferente ao carisma dos actores, à beleza da fotografia e à maestria do argumento tão espinhoso e pleno de nuances. Com os seus 136 minutos é o filme mais longo de Hitchcock. Mas nunca cansa e conta uma história que vai de um ponto da América a outro. Com imaginação e movimento.

Os jogos de espionagem permitem criar ilusões, armadilhas no enredo e surpresas. Facultam aos personagens actos de inteligente maniqueísmo. E oferecem razões para o crime que é muito provavelmente o ingrediente central do suspense de Hitchcock.

No caso extremo de “Cortina Rasgada” (1966), o herói que é um professor de Física, rouba a fórmula científica ao homem que a concebeu. Torna-se vítima de um esquema que ele próprio concebeu. E para sobreviver ele terá de matar. Invade território alheio, rouba e mata. Muito possivelmente para benefício pessoal. Isto implica uma subversão dos princípios.

Por devoção à sua ideologia ou aos seus interesses particulares, os espiões agem de forma falaciosa, enganam os outros personagens e iludem os espectadores. Corrompem o seu modo de vida e o dos outros. Mas também lutam pelos valores certos.

A desmontagem dos interesses que se escondem por detrás do comportamento dos espiões é um processo central nas narrativas de Hitchcock. Não há por aqui a defesa de ideologias políticas mas simplesmente o esquema que opõe heróis a vilões. As explicações são simples. Os vilões hitchcockianos dos anos 30 e 40 eram frequentemente nazis enquanto que na década de 60 o perigo residia nos comunistas. Mas frequentemente se evitava citar nomes. Não havia necessidade de o fazer. Os fundamentos dos espiões e os dos que ameaçavam a Paz eram pretextos para a criação do perigo. E nada mais. Os filmes de Hitchcock não são filmes políticos. (Talvez “Topázio” (1969) possa ser uma excepção) Pelo menos, não são intrinsecamente políticos mas apenas no seu aspecto formal e estilístico.

Recordo-me da trama de “O Homem Que Sabia Demais” (remake de 1956) em que toda a intriga gira em torno de um pequeno país cujo nome nunca é proferido. Uma nação que bem podia situar-se algures na Europa de Leste. Mas que não interessa identificar porque isso é irrelevante.

De que modo a espionagem de Hitchcock pode ter influenciado conceitos cinematográficos? Os seus filmes de espiões são intensamente povoados de peripécias emocionantes. Quase sempre apresentam um tom narrativo ligeiro. Não chocam nem aterrorizam. Divertem. São entretenimentos simpáticos. Como os de James Bond que se fazem há mais de 40 anos. Não têm muito realismo nem desenvolvem introspecções sisudas no interior do universo dos espiões. Como as histórias escritas pelo célebre John Le Carré (ele próprio espião e conhecedor de alguma da realidade factual das histórias de espionagem). Ou como as novelas de Graham Green tão carregadamente dramáticas.

Filmes como “O Espião Que Veio do Frio” (1966) de Martin Ritt ou “O Candidato da Manchúria” (1962) de John Frankenheimer nada têm a ver com a linha de Hitchcock. A continuidade do trabalho de Hitchcock estará em “Charada” (1963) ou “Arabesco” (1966) ambos de Stanley Donen. Ou em “Os Três Dias do Condor” (1975) e “A Intérprete” (2005) ambos de Sydney Pollack. Ou em “Frenético” (1988) de Roman Polanski. Em “O Dossier Pelicano” (1993) de Alan J. Pakula. Em “Teoria da Conspiração (1997) de Richard Donner. Em “FX -Efeitos Mortais” (1985) de Robert Mandel. Ou em “A Verdade da Mentira” (1994) com um Arnold Schwarzenegger que já protagonizou muitas histórias de aventura e suspense repletas de efeitos especiais com que Alfred Hitchcock nem ousava sonhar no seu tempo.

(Bem podemos compreender que a queda de um avião como a que ele filmou em “Correspondente de Guerra” ou a explosão de uma bomba em “Sabotagem” ou ainda a colisão do aeroplano com o camião em “Intriga Internacional” tenham constituído prodígios técnicos outrora impressionantes mas que hoje são triviais.)

Talvez quem conheça medianamente o meu hitchcockianismo confesso já se tenha apercebido de um pormenor: cativa-me mais o Hitchcock denso, negro e obsessivo do que o Hitchcock das histórias ligeiras. Mas a espionagem de Hitchcock também apresenta momentos dramáticos de uma inegável intensidade emocional. São demasiado poucos mas são notáveis.

Recordo-me da jovem mãe Doris Day chorar ante o consternado James Stewart na cena em que este lhe declara que o filho de ambos fôra raptado em "O Homem Que Sabia Demais" de 56. Ou melhor ainda: “À 1 e 45” (1936), o filme em que vemos um jovem rapazito transportando inocentemente uma bomba no interior de um autocarro. O terror dos atentados terroristas então como agora…
Hitchcock sempre se culparia por ter decidido que a criança morreria na explosão do autocarro. Porque segundo argumentava, o público que ia ver as suas histórias de espionagem queria divertimento e não drama.

O suspense de Hitchcock brinca com os nossos medos. Nas histórias de espionagem de forma tendencialmente mais superficial e ligeira. Mas pontualmente com elevada crueldade e dramatismo. Como na sequência do brutal assassinato de Gromek em “Cortina Rasgada”. Uma forma de vermos como é penoso morrer mas também matar.

Sem comentários: