domingo, janeiro 28, 2007

O FILME PREFERIDO POR HITCHCOCK







É uma obra singular na filmografia do Mestre. Especialmente prezada pelo seu criador. E identificada como sendo a obra preferida por Hitchcock entre todas aquelas que ele realizou. O facto de poder ser apreciada para além de outras obras muito mais célebres causa estranheza em certas pessoas. Mas os motivos que tornam este filme relevante são até fáceis de identificar.

A seu modo, “Mentira” (1943), no original “Shadow of a Doubt”, é um filme com um suspense tipicamente hitchcockiano mas é diferente daqueles que Hitchcock realizou na época.


Foi concebido no período em que Hitchcock cumpria o seu contrato com o produtor David O. Selznick (que persistiu entre 1939 e 1947). Mas Hitchcock trabalhou neste projecto em condições que ele próprio definiu criteriosamente; e por isso este filme representa uma pausa na intervenção poderosa mas às vezes inconveniente de Selznick. Esse pormenor foi benéfico.


É preciso não esquecer que Selznick (produtor do colossal sucesso de 1939, “E Tudo o Vento Levou”) foi um dos principais responsáveis pela ida de Hitchcock para os Estados Unidos. Inicialmente para a produção de um filme sobre o Titanic. Ideia que foi depois substituída pelo propósito de adaptação do romance “Rebecca” para o Cinema.


Os filmes de Selznick eram grandiosos mas frequentemente artificiais. Com actrizes e actores “glamorosos” filmados em cenários pouco realistas. É tudo isso que não encontramos em “Mentira”.


Os intérpretes foram prudente e sabiamente escolhidos. Como em poucos filmes do Mestre do Suspense. E das imagens do filme emana um ambiente realista e verdadeiro. As filmagens foram realizadas na própria cidade de Santa Rosa, nas suas ruas e praças. E muito em particular numa casa meticulosamente escolhida por ser considerada tipicamente americana – simbolicamente representativa da casa da família americana de classe média.


Tudo pode parecer tão genuíno por esse mesmo motivo. Os actores não trabalham em estúdio mas nos próprios locais onde decorre a acção. Quando fecham uma porta no filme, fazem-no no contexto da casa. Esse aspecto pode muito bem oferecer uma autenticidade às cenas que não encontramos em algumas produções “hollywoodescas” da época.


“Mentira” apresenta retratos da vida real. Poderá mesmo ser o filme mais realista de Hitchcock só sendo superável a esse nível pelo “Falso Culpado” (1957) com o seu registo documental. (Esse “The Wrong Man” associa o dramatismo e a intensidade das emoções a um registo factual e quase jornalístico dos factos.)


Em “Mentira”, os actores não parecem espartilhados dentro de modelos de representação instituídos. Não parecem estrelas de Hollywood mas pessoas do mundo real.


O filme introduz-nos no quotidiano de uma família tipicamente americana. Um casal, ele bancário, ela dona-de-casa muito fiel às suas responsabilidades domésticas. E três filhos. O ambiente rotineiro e pacato desta família é perturbado pela vinda de um tio misterioso que trará com ele a inquietação e a instabilidade emocional.


Joseph Cotten foi o brilhante actor escolhido para o papel de tio vilão, possível psicopata e homem de ideias podres sobre o Mundo e sobre a Humanidade. Algumas das frases que ele profere no filme são ainda hoje chocantes e Cotten declama-as com convicção, fazendo revelar um espírito maldoso por detrás de toda a suspeita em torno de si.


É aquele homem uma pessoa demente ou um ser humano meramente desencantado com o nosso mundo? Numa dada cena, ele pronuncia: «O mundo é uma pocilga e se esgravatarmos diante da fachada das casas só encontraremos porcaria e podridão…»


A psicologia do tio Charlie é complexa e nunca inteiramente compreendida. É feita referência a um acidente que o terá vitimado em criança e que terá transformado o seu comportamento e a sua postura. Mas Hitchcock não se perde aqui em divagações psicanalíticas como em “Casa Encantada” (1945) ou em “Marnie” (1964). E isso faz com que o filme pareça actual ainda hoje.


Por oposição ao tio Charlie vemos no filme a sua sobrinha Charlotte a quem chamam também curiosamente Charlie. A relação entre tio e sobrinha é central no desenvolvimento da acção. À partida, vemo-los como duplos um do outro, gémeos como refere a garota.


Charlotte não terá mais do que dezoito, vinte anos. É uma jovem em busca de acção e de uma vida intensa. A pacatez da terra onde vivem aborrece-a. O seu tio Charlie representa para ela a entrada no seu pequeno mundo de uma pessoa maravilhosa e vivida.


Num primeiro momento, parece haver uma empatia perfeita entre tio e sobrinha. Estado de espírito directamente manifestado na cena na estação dos Correios. A sobrinha escreve ao tio para que venha vê-los e então chega um telegrama do tio a comunicar que virá.
«Acredita em telepatia?» – Pergunta ela com declarado fascínio à funcionária dos Correios. Ao que a senhora responde: «Prefiro as formas convencionais de comunicação. Como os telegramas.»


Muitos dos personagens dos filmes de Hitchcock são tão emocionalmente complexos que a densidade das suas emoções parece remeter para a ordem do que não pode ser explicado. Ou para a ordem do que não é natural. Para a ordem do sobrenatural, portanto.


É por isso que Rebecca parece viver para além da sua morte (em “Rebecca” (1940)). Marnie rouba para obedecer a um imperativo invisível e desconhecido (em “Marnie” (1964)). Robert Walker parece saber mais do que as outras pessoas, como se possuísse um dom diabólico (em “Desconhecido do Norte Expresso” (1951)). Madeleine parece viver uma segunda vez (em “Vertigo” (1958)). A mãe de Norman Bates mata embora esteja enterrada no cemitério local (em “Psico” (1960)). E Tippi Hedren parece trazer consigo a maldição dos pássaros como uma habitante da terra se atreve a sugerir: «Quem és tu? És o Demónio? És o Mal?» (em “Os Pássaros” (1963)).


Psicologia e Parapsicologia parecem não raras vezes abraçar-se no universo hitchcockiano. Ainda que quase sempre no domínio do sobrenatural não exista nada mais para além do domínio das ilusões e das estranhas percepções.
Charlie e Charlotte, ou se quisermos, Charlie e Charlie, parecem movimentar-se na mesma esfera da realidade enquanto todos ou outros estão fora dela. Charlotte alimenta um fascínio pelo tio. E sente que ele guarda segredos dela mas não pressente que sejam de má índole, roubos ou assassínios.


À medida que a suspeição da sobrinha se desenvolve, o filme vai adquirindo uma intensidade dramática crescente. Porque a sobrinha descobre os segredos do tio e se torna responsável pelo seu destino. Deverá entregá-lo à Polícia ou guardar para si tudo o que sabe. E poderá pôr em perigo a sua própria vida ou a dos outros consoante as escolhas que tomar.


Em “Mentira” sobressai a ideia da duplicidade, da dupla identidade, da oposição de duas entidades aparentemente iguais mas intrinsecamente diferentes. O número 2 descodifica a estrutura narrativa de muitos filmes de Hitchcock. Em “Rebecca” está na oposição entre a primeira esposa e a segunda. Em “Mentira”, naquela que se estabelece entre tio e sobrinha. Em “Desconhecido do Norte Expresso” no encontro que une um homem que mata a outro que inconscientemente deseja matar. Em “Falso Culpado” no cenário em que um homem honrado é erradamente tomado por um sósia criminoso. Em “Vertigo” no contexto que opõe distintamente duas imagens da mesma mulher. Em “Psico”, na dupla personalidade de Norman Bates.


“Mentira” é um filme peculiarmente hitchcockiano. Até na oposição que estabelece na sua narrativa entre o nível do quotidiano rotineiro e o patamar do Extraordinário. Quase sempre se caminha nos filmes de Hitchcock dos cenários comuns para as situações de extrema tensão e anomalia. E se filmam pessoas comuns em situações pouco comuns.


A narrativa de “Mentira” acontece no ponto de encontro entre o realismo e a irregularidade. Porque a anormalidade e a disfunção social também são reais tanto quanto são reais as rotinas e os padrões estandartizados de comportamento. A entrada do tio Charlie originou uma ruptura na rotina e provavelmente a sua saída restituiria essa rotina.


Os filmes de Hitchcock conseguem fascinar e emocionar tanto quanto os seus personagens parecerem pessoas reais. Homens e mulheres com os quais o público se identifique. Em “Mentira” isso sucede de forma exemplar. E talvez seja esse mérito que torna o filme especial. Tão distintamente especial.

3 comentários:

Isabel disse...

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