sexta-feira, fevereiro 16, 2007

ACERCA DO REALISMO E DO PUDOR NOS FILMES


Um dos pormenores que distingue o cinema dos anos 30, 40 e 50 daquele tipo de filmes que estamos habituados a consumir nos nossos dias é o grau de realismo com que as cenas são recriadas e filmadas. O modo como se mostra tudo o que for susceptível de identificar um personagem ou uma realidade. Parece-me que, neste domínio, a Europa se terá adiantado a Hollywood. Porque as cinematografias europeias são, desde longa data, mais realistas e cruas.


Em meados do século XX, imperava um pudor desmesurado que restringia os realizadores e os impedia de serem plenamente verdadeiros. Quanto a questões de moral e ética. Quanto à exploração das temáticas do amor e do sexo. E até no que dizia respeito a aspectos tão naturais como controversos.
Um exemplo elucidativo: os pormenores escatológicos que envolvem as casas de banho, os excrementos, o vomitado ou a urina não eram mostrados nem sequer nomeados. Daí que Joseph Steffano, argumentista de “Psico”, recentemente falecido, tenha revelado em entrevista um dado curioso: até 1960 nenhum filme tinha mostrado directa e assumidamente uma sanita.

Portanto o plano em que vemos Janet Leigh deitar papéis rasgados na sanita e depois puxar o autoclismo para que eles sejam empurrados para a canalização, traz algo de novo e de revolucionário. Até porque a imagem é captada de cima e com nitidez.

Este aparentemente ínfimo pormenor mostra-nos em que medida o cinema clássico está contido dentro de moldes rigidamente estabelecidos. Alguém imagina Ava Gardner ou Audrey Hepburn sentadas numa sanita? Pois hoje não é invulgar nem chocante ver Elisabeth Shue nesse enquadramento. (O filme é “Morrer em Las Vegas” (1995) de Mike Figgis.) A verdade é que estamos familiarizados com um conceito diferente de recriar o real e de o mostrar.

Claro que posso argumentar: não é de bom gosto mostrar o herói na retrete ou identificá-lo a satisfazer necessidades fisiológicas de determinadas ordens. É evidente. Mas em última análise quem é que decide o que é de bom gosto?

Acredito que mostrar uma realidade pode provocar um acto de consciencialização do espectador face a fenómenos verdadeiros e que não deverão ser ignorados. Mas filmar uma cena patética deve responder a um objectivo específico e coerente.

Como podemos conceber a cena de um dos filmes de Wim Wenders em que um homem defeca mediante a perspectiva da câmara? Ou a irreverência e a obscenidade de “La Grande Bouffe” (1973) de Marco Ferreri? Filme de culto franco-italiano, aclamado por muitos como obra-prima e em que se narra a história de várias pessoas predispostas a comerem até ao limite das suas capacidades.

O sucesso de “La Grande Bouffe”, ou de outras películas concebidas como que à margem do sentido de pudor, é compreensível porque muitas situações burlescas causam literalmente o espanto e o riso. Naqueles dias especialmente. Mas ainda hoje.

Por outro lado, pela sátira conseguem-se denunciar algumas realidades ou defender determinadas argumentações. Fellini satirizou muitas situações com um despudor desmesurado para a época. E depois Peter Greenaway…

Recriar uma violação pode desempenhar um papel educativo, pedagógico e altamente sensibilizador. Mas não deixa de resultar numa sequência de imagens que bem pode manifestar-se incómoda e inconveniente para muitas pessoas. Realismo, sim. Mas até que limites? Como conceber uma cena de “Felicidade” (1998) de Todd Solondz em que um homem se masturba enquanto observa fotografias de crianças? Matérias demasiado delicadas exigem tratamento igualmente delicado, meticuloso e prudente.

Em termos cinematográficos, foi radical a evolução das mentalidades nos últimos 50 anos. Muitos filmes de meados do século passado eram feitos para mostrar a Realidade mas acabavam por revelar apenas uma certa realidade. Uma realidade esculpida, esbatida, amputada – censurada directa ou indirectamente.

Há palavras que em tempos idos não se proferiam num filme. Como se as pessoas não as dissessem. Ou como se não se reportassem a realidades. Palavras como «aborto», «prostituição» ou «homossexualidade». E os “palavrões” associados a linguagens eticamente inapropriadas. Nenhum actor clássico proferia obscenidades.

Alfred Hitchcock nunca se importou muito com o realismo dos seus filmes. As suas histórias eram como que fugas à Realidade. Retratavam cenários oníricos, aventuras incríveis, conceitos inconcebíveis. A Hitchcock só interessava que o espectador se identificasse com os heróis. Que os personagens fossem credíveis, parecessem pessoas de carne e osso. Todo o resto era invenção e irrealidade.

O cinema de Hitchcock é uma entidade que desenvolve ilusões. Como o Cinema em geral, ele próprio. Neste domínio, “Vertigo” que poderá ser o melhor filme do Mestre, é também paradigmático. É a história da construção de uma ilusão. Um filme com um tom hipnótico que tem pouco a ver com a Realidade.

Hitchcock disse um dia: uma dona-de-casa que lava a loiça todos os dias a seguir ao jantar, não quer ir ao cinema ver uma mulher a lavar a loiça. Mais facilmente quererá fugas à sua realidade. Poderemos ou não concordar com Hitchcock mas é nítido que a sua obra cinematográfica reside num espaço consentâneo com esta argumentação.

A recriação de um beijo: para filmar um beijo de forma a impressionar positivamente as audiências, Hitchcock precisava recriar a paixão e a sensualidade. Mas era obrigado a fazê-lo com regras. O beijo precisava de ser genuíno mas eram impostas sérias limitações.

O herói e a heroína não se podiam beijar mais do que 20 segundos nem fazê-lo de boca aberta. Hitchcock contornou esta limitação de uma forma habilidosa. Observem-se Cary Grant e Ingrid Bergman em “Difamação” (1946). Eles beijam-se repetidas e sucessivas vezes durante mais de um minuto. Essa cena de amor (tórrida para os cânones da época) devia justificar a interdição de menores na sala de cinema. Mas Hitchcock podia sempre argumentar que cada beijo ardente não se arrastava por mais de 4 ou 5 segundos.

Se um beijo era suposto parecer real, deveria traduzir paixão verdadeira. E Hitchcock faria o possível para torná-lo não só convincente como também arrebatador. Não propriamente em defesa do realismo da cena mas para despertar a emoção do espectador. O cinema de Hitchcock tem tudo a ver com a emoção. E pouco a ver com a realidade.

Presentemente só podemos alimentar ideias acerca do que Hitchcock poderia ter feito para tornar mais realistas as cenas dos seus filmes. Em “Frenzy” (1972), considerou natural que a personagem de Anna Massey saísse nua da sua cama de hotel. E assim a filmou. (Embora na realidade tenha filmado o corpo nu de uma dupla.)

Certamente uma maior liberdade para filmar constituiria um desafio para Hitchcock. Ele que quase sempre trabalhou mediante constrangimentos mais ou menos directos. Essa liberdade (de que hoje muitos cineastas gozam) seria um instrumento útil para tornar mais realistas os seus cenários de crime. Uma porta aberta para novas possibilidades.

Hitchcock morreu em 1980. Só Deus sabe o que teria feito depois e como teria lutado mediante os conceitos cinematográficos dos anos 80. Em nome do realismo dos seus filmes. Mas acima de tudo para tornar mais intensas as emoções do seu público. É importante acrescentar que ele sempre se procurou documentar sobre uma realidade antes de filmar sobre ela. Mas nunca a necessidade de realismo foi a sua principal demanda. Nem o mérito mais luminoso da sua obra.

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