terça-feira, fevereiro 06, 2007

HITCHCOCK ANALISADO NO MEU DIVÃ


O ácido Tio Charlie de “Mentira” (1943) declara numa cena do filme: «O mundo é uma pocilga e se esgravatarmos diante da fachada das casas só encontraremos porcaria e podridão…»

Às vezes questiono-me se Hitchcock não partilharia um pouco dessa visão amarga e negativista da Humanidade. Cerca de trinta anos depois, podemos vê-lo argumentar a propósito do seu “Frenzy – Perigo na Noite» (1972) que a vida humana existe no contexto cíclico da apropriação de alimentos consumíveis e da sua digestão e transformação em esterco que será canalizado para os oceanos.

Ele referia-se à estrutura daquele seu filme mas dessa visão crua, realista, obscura e pouco romântica, parece advir uma perspectiva céptica acerca das capacidades do ser humano. Como se os homens só servissem para produzir fezes e para contaminar um mundo que viveria muito bem sem ele.

Como sabemos, Hitchcock vestia uma capa de ironismo e de humor negro sempre que falava em público e para os jornalistas e críticos, muito em particular. Gracejava, gostava de chocar e de surpreender com as suas palavras e nem sempre brincava do modo mais simpático. Portanto nem tudo o que dizia poderia ser literalmente tomado a sério.

Mas estou convencido de que ele era mesmo um homem bastante descrente acerca da bondade humana. Um pouco como o Tio Charlie.

Na medida em que o seu trabalho de realizador e de escultor de histórias o levava vezes sem fim a abordar as temáticas do crime e da maldade humana, parece-me natural que ele se tivesse deixado influenciar pela visão pessimista de alguns escritores e argumentistas.

Ele não era de facto nenhum monstro. Antes um homem habituado a pensar rotineiramente em cenários de crime. Mas não foi o seu percurso profissional que determinou necessariamente a sua visão mais obscura da Humanidade. Hitchcock seria um homem reservado, moderadamente triste, vitimado por uma educação severa e por um contacto prematuro e doloroso com a sensação do medo e da angústia.

A sua própria imagem física não lhe transmitiria a autoconfiança desejável na sua posição. Era gordo e deselegante. Talvez o cinismo para com as outras pessoas fosse a resposta imediata de alguém que atacava antes de poder ser ofendido.

Hitchcock seria mais frágil e sensível do que se poderia imaginar. Era um homem pacato, de gostos simples, que encontrava serenidade na confraternização com a família. Lendo um livro junto da esposa e da filha e com o seu cão aninhado aos pés.

Eu diria que Hitchcock era, como qualquer ser humano, uma pessoa que sentia conforto na aceitação junto dos outros e, para além disso, na aclamação e no sucesso. Homem devoto à família e que encontrava protecção emocional perto da mulher. Bem sabemos como a opinião de Alma Reville pesava nas suas considerações. E como gostava de ser prestigiado diante dela. (E parece bem evidente que nos anos do declínio da sua carreira e do fim da sua vida, ele gostaria de se mostrar a Alma tão vigoroso e empreendedor como havia sido até então.) O fracasso assustava-o. E alguns insucessos de bilheteira deixaram-no tremendamente traumatizado e receoso.

O desejo de Hitchcock de acentuar o lado mais negro da existência humana estaria manifesto nos finais trágicos que projectou para alguns filmes seus. Os «happy-ends» sempre lhe foram sucessivamente impostos pelos estúdios. (Como em “Suspeita” (1941) ou em “Os Pássaros” (1963))

Esse desejo também se materializava no seu apreço pelo anormal e pelo perverso. No seu fascínio pelas fugas à normalidade. De resto, Hitchcock criara uma imagem de marca e as pessoas não esperavam dele senão histórias de suspense e de terror psicológico. Como ele alegou, se realizasse um filme sobre a Cinderela, as pessoas esperariam que do armário do quarto dela saísse um esqueleto. Ninguém ansiava por ver Hitchcock conceber uma obra sobre a bondade humana.

Seja como for, uma visão desencantada do Mundo e da Humanidade não é de modo algum consentânea com o ideal da perspectiva do Catolicismo com que foi educado. A doutrina católica acentua o papel da Culpa e atribui elevado peso à dimensão do Pecado com que todos os seres humanos terão nascido. Mas alicerça as suas argumentações na ideia da Salvação dos homens mediante a sua tomada de decisões. Refere-se à Vida Eterna e à modelação do Homem à imagem de Deus.

Hitchcock não me parecia um homem optimista. Seria um realizador marcado por uma educação católica. E não exactamente um realizador católico. Do Catolicismo ele terá assimilado uma noção bem interiorizada de Culpa e de Pecado – Bem expressa na sua obra cinematográfica. De resto, quantos católicos convictos conseguem nutrir persistentemente um optimismo sólido e inabalável?

Se o Homem é feito à imagem de Deus, não pode ser intrinsecamente mau. É de esperar que se acredite na sua bondade. Mas num mundo cravejado de violências e de injustiças, podemos acreditar que o Homem é naturalmente bom?

Sim, podemos pôr as nossas mãos no Fogo a respeito da Bondade Humana? É natural que vacilemos e tenhamos dúvidas. Talvez o Homem só aprenda a ser pacífico e cordato mediante um processo de aculturação. Sem esse processo, ele pode não passar de um animal egoísta que mata para viver.

Consigo compreender o cepticismo de Hitchcock. E o de tantos cineastas depois dele.

O homem que realizou “Frenzy – Perigo na Noite”, em 1972, podia ser hoje o criador de obras perversas como “O Silêncio dos Inocentes” (1991) de Jonathan Demme, “Veludo Azul” (1986) de David Lynch ou “Sete Pecados Mortais” (1995) de David Fincher. Neste contexto, não me parece que haja tanta distância assim entre Hitchcock e Lynch ou Cronenberg.

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