quinta-feira, setembro 06, 2007

HITCHCOCK NO BIOGRAPHY CHANNEL




O Canal Biography exibe e repete por estes dias um documentário interessante sobre Hitchcock. Digamos que não se trata de um programa exemplar ou imprescindível. Mas é um trabalho que condensa em cerca de 90 minutos (2 partes de tempo semelhante) os principais aspectos da vida e da personalidade do cineasta e transmite sucintamente uma imagem da sua carreira.

O principal trunfo do documentário integrado na série “True Hollywood Stories” é o contributo de muitas pessoas que trabalharam com Hitchcock e o conheceram e que oferecem depoimentos muito relevantes: desde a sua filha Patrícia (que participa em muitas destas iniciativas) às suas netas; desde actores (como Farley Granger, Janet Leigh, Tippi Hedren, Hume Cronyn ou Bruce Dern) até argumentistas (como Joseph Stefano de “Psico” ou Evan Hunter de “Os Pássaros”); desde estudiosos da obra de Hitchcock como Camille Paglia, Dan Auiler (autor de um livro sobre “Vertigo”) e Stephen Rebello (ensaísta de um trabalho sobre “Psico”) até ao biógrafo de Hitchcock, John Russel Taylor.

Este parece ser mais um trabalho sobre a personalidade de Hitchcock e sobre o desenvolvimento factual dos acontecimentos ao longo da sua vida do que acerca da arte do cineasta. O documentário quase não apresenta imagens dos filmes nem quaisquer excertos das suas bandas sonoras.

Os instrumentos narrativos que completam os testemunhos das pessoas entrevistadas são usados estrategicamente mas de modo simples: uma imensidão de fotografias, algumas delas raras e muito interessantes; partes significativas de alguns trailers; e filmes amadores rodados por Hitchcock (ou por personalidades próximas dele) no quotidiano da sua família ou em ambiente de filmagens. Algumas imagens de época são integradas nos momentos certos para enquadrar a carreira de Hitchcock no seu contexto histórico.

Este documentário mostra Hitchcock mais do que qualquer outra pessoa. As imagens que o mostram nos anos 20 e 30 revelam-nos um homem muito mais brincalhão e menos soturno do que é habitual. Brincando com os amigos, pedalando de bicicleta e levantando a saia a uma actriz. Um excerto de uma conversa com Anny Ondra (protagonista de “Pobre Pete” (“The Manxman”) e “Chantagem” (“Blackmail”), filmes de 1929) é particularmente exemplificativo de como ele gostava de gracejar e de como o fazia com aparente naturalidade.

Por outro lado, as imagens de Hitch com a sua esposa Alma e com a filha Patrícia são sintomáticas do seu carinho e devoção à família.

Nos primeiros minutos do programa é declarada a intenção do trabalho: divulgar uma investigação minuciosa em torno da vida e da obra de Hitchcock. Verifica-se que o percurso biográfico do Mestre do Suspense é razoavelmente explanado. Assim como as particularidades da sua complexa personalidade. Mas fica-se com a ideia de que aqui não se debate de modo aceso o conceito de Cinema segundo Hitchcock, os seus métodos, as suas opções técnicas e os seus ideais cinematográficos.

Neste aspecto, quase só se mencionam e comentam procedimentos técnicos no domínio de “A Corda” (1948) e de “Psico” (1960) que foram dois dos projectos metodologicamente mais arrojados da filmografia de Hitch.

O trabalho documental, na sua globalidade, compõe um retrato sucinto da personalidade de Hitchcock com as suas contradições. Camille Paglia define Hitch como uma pessoa puritana que quase poderia ter vindo a abraçar a vida monástica ou clerical mas que também era um cineasta que tinha apreço por aquilo que era violento, chocante ou escandaloso. Facetas que parecem inconciliáveis.

Do mesmo modo, era ambígua a relação dele com o universo feminino. Por um lado, segundo Paglia, ele parecia desconfiar das mulheres. Por outro, parecia reverencià-las, idolatrà-las muito possivelmente na medida em que elas lhe pareciam distantes de si. A sua obesidade, a sua imagem rotunda e pesada, retirava-lhe a ideia de que uma mulher pudesse gostar naturalmente de si. Logo, privava-o de uma vivência sexual descomplexada e desinibida.

Hitch foi o homem que reverenciou Ingrid Bergman e depois Grace Kelly, a ponto de ficar ressentido com os compromissos matrimoniais delas. E foi aquele que terá tentado manipular a vida profissional (e pessoal) de Vera Miles e de Tippi Hedren. Quase da forma estranha e obsessiva com que James Stewart o fez com Kim Novak em “Vertigo”. Ou Sean Connery o fez com Tippi Hedren em “Marnie”. Neste contexto, o documentário apresenta pertinentemente uma cena de “Marnie”: aquela em que Connery profere que apanhou um belo animal selvagem na sua armadilha e que não o deixará fugir.

O documentário do Biography mostra Hitchcock como um homem tímido mas que apreciava o reconhecimento e o calor do público. Numa prateleira especial, ele guardava todos os prémios de uma vida de sucesso. Mas lá não constava um Óscar, embora ele tenha sido nomeado cinco vezes para o prémio. Um amigo dele confessa perante a câmara que ele olhava para aquela exposição de galardões e declarava com tristeza: «Sempre dama-de-honor, nunca noiva.»

Hitchcock era um homem obcecado com os seus medos pessoais. Curiosamente era alguém que conseguia exorcizar muita da sua angústia trabalhando sobre ela e sobre as temáticas que dela derivavam. Segundo Stephen Rebello, ele acreditava mesmo que o mundo era um sítio assustador em que o caos espreitava a cada esquina.

Parece que o cineasta mostrava mais e mais de si à medida que envelhecia. Mas é preciso não ignorar que os modelos da Censura evoluíram e que nos anos 70 havia mais liberdade para filmar a violência – e para fazê-lo de modo personalizado e não em associação a um estúdio. Vejam-se “Laranja Mecânica” (1971) de Stanley Kubrick, “Cães de Palha” (1971) de Sam Peckinpah e “Deliverance” (1972) de John Boorman.

Depois de “Cortina Rasgada” (1966), Hitchcock quis filmar “Kaleidoscope Frenzy”. Era um projecto impressionante sobre um psicopata homossexual que detestava mulheres e as matava sadicamente. Um filme que mostraria muito sexo, morte e nudez. Era algo que os produtores da Universal rejeitaram laconicamente, que era impensável, desconcertante e abominável em termos do que se fazia na época e que, segundo alguns diziam, nem fazia jus à imagem instituída de Hitchcock.

Afinal quem era verdadeiramente Hitchcock? Em 1966, parecia alguém que começava a sentir-se vencido por novos conceitos cinematográficos e por uma geração de novos realizadores. Penso em “The Graduate” (1967) de Mike Nichols, “Cowboy da Meia-Noite” (1969) de John Schlesinger, “Easy Rider” (1969) de Dennis Hopper e “Klute” (1971) de Alan J. Pakula. Que sentiria necessidade de mostrar o universo do terror e do macabro em termos mais modernos, realistas ou radicais. Mesmo que escandalizassem a opinião pública.

Desencantado com Hollywood, Hitchcock procurava inspiração nos filmes realistas de cineastas italianos e franceses. Estava disposto a filmar com uma câmara na mão – o que era diferente de tudo o que fizera até então e demonstrava arrojo, espírito aventureiro e desejo de inovação. Rejeitado o projecto “Kaleidoscope Frenzy”, Hitchcock foi conduzido a realizar “Topázio”. Um filme desinteressante, feito sem alento nem vivacidade. A sua criatividade natural foi desviada. E isso levanta-nos uma questão pertinente de resposta especulativa: como seria o cinema de Hitchcock se ele trabalhasse nos nossos dias?

O documentário do Biography Channel põe-nos em confronto directo com a imagem de Hitchcock. Derivada daquilo que ele foi e daquilo que poderia ter sido. Mas de todas as visões do cineasta, prevalece a do homem irónico e sarcástico que apresenta histórias de crime e mistério para uma série de televisão da CBS.

Era desnecessária a repetição da sequência introdutória de cerca de três minutos que inicia cada uma das partes. E não é exibido qualquer genérico final ou listagem das pessoas que fizeram o documentário, o que me parece uma lacuna grave. A obra está catalogada como sendo de 2004. Mas não sabemos quem a concebeu e dirigiu.

Na locução, há gralhas. O filme “The Lodger” (1926) foi divulgado em Portugal como “O Inquilino Sinistro” e não como “O Pensionista”. O filme “Sabotage” (1936) tem o título português de “À 1 e 45” e não de “Sabotagem” (que corresponde a um filme de Hitchcock datado de 1942).

Sem criticismos severos, a iniciativa do Biography Channel é mais do que louvável. Para um melhor conhecimento daquele que Camille Paglia define como um dos grandes artistas do século XX. E sendo como que uma janela aberta às várias facetas da sua personalidade. Incluindo uma que lhe desconhecíamos e que ele desvenda mediante a câmara do “Alfred Hitchcock Apresenta”: «Resolvi apresentar este programa depois de me ter cansado de ser um “sex-symbol”. E de ter sido fotografado sem roupa para as páginas centrais da tal revista que vocês sabem. Hoje, como vêem, estou vestido. Neste programa não gostamos de torturas nem de violências excepto quando tem mesmo de ser

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