segunda-feira, setembro 17, 2007

UMA EXPERIÊNCIA CHAMADA «UNDER HITCHCOCK» - PARTE I


Toda a arte é susceptível de inspirar outra arte. Dito de outra forma, qualquer forma artística é potencialmente condicionadora de outras criações. De modo directo e transparente. Ou por meio de mecanismos subliminares e pouco evidentes.

O cinema de Hitchcock, por exemplo, tem alimentado a imaginação de muitos realizadores e produtores da indústria dos filmes e também a forma estética e emocional de muitas obras cinematográficas. Mas o Cinema também condiciona e inspira outras artes.

A Solar – Galeria de Arte Cinemática (em Vila do Conde) propõe aos seus visitantes uma interligação entre a arte contemporânea e o Cinema. Tem estado patente no espaço, desde dia 7 de Julho, uma exposição de arte inspirada em Hitchcock. Muito em particular, pela mostra contextualizada (em cenários adequados) de trabalhos fotográficos, vídeos e criações no domínio das artes plásticas. Trata-se de uma revisitação do universo hitchcockiano feita por artistas que recorrem às tecnologias do século XXI e que reflectem sobre a imagem simbólica de Hitchcock e sobre a sua obra cinematográfica.

O nome da exposição é «UNDER HITCHCOCK». E trata-se de uma iniciativa sem precedentes em Portugal. Até porque foi feita em associação com o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde.

Na programação do Festival deste ano, foram delineadas duas sessões distintas com dez curtas-metragens americanas e europeias inspiradas em Hitchcock. Oito desses pequenos filmes foram trazidos a Lisboa para serem exibidos no dia 11 de Setembro, na Cinemateca Portuguesa, sala mais pequena.

Claro que uma sessão com filmes que extravasam o domínio pleno do Cinema não é necessariamente apelativa para qualquer cinéfilo. A Sala Luís de Pina com cerca de 50 lugares estava cheia mas, pelo menos, quatro pessoas saíram antes da conclusão das projecções.

Várias das obras mostradas numa sessão com cerca de 98 minutos se caracterizam por mostrar um arranjo (ou desarranjo) das imagens dos filmes de Hitchcock. Os filmes de Les Leveque são sintomáticos desse propósito. O autor pegou em “Casa Encantada” (1945) e em “Vertigo” (1958) e decompôs as imagens dos filmes desde a primeira à última cena. Em apresentações com um ritmo frenético e alucinante.

Em “2 Spellbound” (que podemos ler “Para Casa Encantada”) é utilizado como instrumento de trabalho um filme a preto e branco, com imagens expressivas e carregadas de símbolos psicológicos – ou não fosse a Psicanálise uma temática central no filme.

“4 Vertigo” (que também podemos ler “Para Vertigo”) parte de uma obra cinematográfica com imagens de grande beleza e imbuídas de onirismo e melancolia.

Estes são trabalhos de um artista plástico que trabalha a imagem no seu sentido estético. O som dos filmes é uma distorção repetitiva das suas bandas sonoras. Não há neles propósitos narrativos, uma história com princípio, meio e fim. A menos que conheçamos bem os filmes de Hitchcock. Mas as histórias não são essenciais e o conteúdo narrativo das imagens aqui é irrelevante. Os trabalhos de Leveque funcionam como caleidoscópios em que vemos as imagens reflectidas – num filme a dobrar, noutro a quadruplicar.

O propósito de experiências destas é interessante. Quase todas as criações artísticas têm o seu valor próprio que lhes está inerente. Mas um amante do Cinema não está necessariamente preparado para ver películas clássicas com uma estrutura tradicional tratadas de um modo irreverente. Daí que eu ouse concluir que o esforço decorrente de um tipo de arte como este é meritório mas um pouco ineficaz.

Ver passar o “Vertigo” inteiro em 9 minutos e com a imagem decomposta e multiplicada por quatro é curioso. O problema é que se torna cansativo o ritmo mecânico e pouco emocional do trabalho. O mesmo se aplica ao filme que desenrola a fita inteira de “Casa Encantada” em 7 minutos. Embora o número 2 seja muito significativo no cinema de Hitchcock com toda a carga da duplicidade que lhe está inerente. E em “2 Spellbound” o que vemos são imagens de Hitchcock duplicadas e reflectidas sobre si mesmas.

Afinal, no filme original, Gregory Peck está em busca da sua identidade. Ele tanto pode ser um homem inocente como um criminoso. Assim como o amor de Ingrid Bergman por ele tanto pode ser entendido como sendo uma loucura inconsequente e ilógica; ou uma dádiva preciosa que lhe é oferecida pela sua intuição especial. Daí que ver “Casa Encantada” em duplicado possa ser uma forma diferente de viver e de apreender o espírito do filme.

“Spherical Coordinates” de Gregg Biermann é um trabalho do mesmo estilo. Decompõe a cena da fuga de Janet Leigh perseguida pelo carro da Polícia em “Psico” (1960). É uma obra visualmente engenhosa, que causa algum assombro porque distorce a imagem original segundo coordenadas esféricas, circulares. É alucinante o ousado. E aplica o modelo visual à própria narrativa, na medida em que desenrola coerentemente a cena até dado momento e depois começa a passá-la no sentido inverso. (Com os carros a andarem para trás.)

Diria que Saul Bass fez qualquer coisa de idêntico para o genérico do filme “Seconds” (1966) de John Frankenheimer. E atrever-me-ia a acrescentar que David Lynch poderia gostar de um artista como Gregg Biermann para trabalhar algumas imagens dos seus filmes alucinados. Penso em cenas do seu “Eraserhead” (1977) e nos primeiros minutos do “Homem-Elefante” (1980).

O sueco Tobias Anderson concebeu um écran com 9 rectângulos e colocou em cada um deles uma imagem em movimento de “A Corda” (1948). O trabalho parece-me relativamente oco. Com um som de pessoas em burburinho, num diálogo contido e distorcido. Este “Nine Piece Rope” trabalha sobre uma película em que o cenário de pessoas em diálogo é o objecto central – ou não fosse uma espécie de peça de Teatro laboriosamente arquitectada em termos cinematográficos.

Em cada rectângulo, as imagens vão mudando. No resultado final, as nove peças nunca se encontram. As diferentes peças do puzzle nunca encaixam no espaço e no tempo. O filme tem 2 minutos, tempo escasso para ser detectado com facilidade algum tipo de alinhamento intencional nas imagens. O olhar do espectador perde-se em 9 écrans dentro da mesma imagem, dispersa-se, procura orientações. Não creio que esta criação tenha mais do que um valor estético (e mecânico) como nos filmes americanos de Les Leveque.

O mesmo autor mostra-se mais engenhoso no domínio da animação. Em “879 Colour”, ele propõe uma revisitação a “Intriga Internacional” (1959) feita num minuto. A base da animação é um conjunto de 879 desenhos (concebidos originalmente a preto e branco e que depois foram coloridos).

Os desenhos são decalques apurados de imagens do filme e são apresentados numa sucessão rápida. Trata-se de um exercício engraçado, com uma música jocosa e pontualmente típica de cartoons animados.

“Bodega Bay School” também de Anderson é outra animação rigorosamente preparada a partir da sequência do ataque aterrorizante à escola em “Os Pássaros” (1963). Aqui, como no grande cinema de Hitchcock, o essencial não é visto mas subentendido, subliminar. E o terror não nasce do que se mostra mas da antecipação do que está para vir.

Nesta animação que deve ter um tempo absolutamente concordante com o da cena original (5 minutos), é imprescindível conhecer a narrativa tal como foi concebida e mostrada por Hitchcock. Porque os desenhos decalcam as imagens do filme até ínfimos pormenores e plano a plano mas excluem do cenário todas as pessoas e todos os pássaros.

A música perturbadora do filme não é um tema orquestral sombrio mas a lenga-lenga que as crianças cantam na escola. De modo obsessivo e enervante. Tal como no original de Hitchcock. Poder-se-ia pensar que o som da animação é o som inalterado do filme. Mas não existe o menor diálogo. Nem mesmo quando a Professora declara: «Meninos, vamos fazer uma saída ordeira da escola.» As palavras também foram extraídas. O filme acaba quando o terror atinge o clímax. A imagem afasta-se da escola e ouvimos o som ensurdecedor e estridente dos pássaros em fúria.
(continua)

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