terça-feira, setembro 25, 2007

UMA EXPERIÊNCIA CHAMADA «UNDER HITCHCOCK» - CONCLUSÃO


As curtas-metragens do «UNDER HITCHCOCK» propõem aproximações de diversos estilos ao cinema do cineasta. Enquanto apreciador de uma arte cinematográfica que conta histórias, penso fui particularmente sensível ao filme alemão de Birgit Lehman que foi também aquele que mais me divertiu. Embora até possa ser considerado o que é artisticamente menos arrojado e tecnicamente menos inventivo.

O filme intitula-se “Quando Hitchcock se encontrou com Else Eiermann em Auerstedt”. É uma curta-metragem concebida como um registo documental e que reconstrói uma verdade histórica ignorada. Claro que todo o filme é uma invenção inspirada e graciosa. Com muito do típico humor hitchcockiano.

Segundo a voz-off que interliga os acontecimentos num tom jornalístico apurado, Alfred Hitchcock terá visitado a pequena comunidade de Auerstedt, na Alemanha de Leste, em 1956. Aí terá conhecido uma mulher sinistra que o terá inspirado a conceber as ideias para o seu grande sucesso de 1960, “Psico”.

São exibidos no documentário testemunhos de muitos habitantes da terra que explanam como a mulher era estranha, que se referem ao modo insólito como se vestia, que explanam como tinha costumes bizarros; e que comentam o facto de ela dizer que tinha um grande amigo inglês – sem que ninguém acreditasse nela.
A descoberta de uma fotografia antiga foi fulcral para a revelação de um mistério mantido oculto. Nela vemos um cenário inóspito da terra com várias pessoas na perspectiva da câmara. E nela encontramos alho de extraordinário: Else Eiermann a conversar amenamente com Alfred Hitchcock. (Claro que se trata de uma divertida montagem.)

Else Eiermann seria uma mulher idêntica a Hitchcock sob muitos aspectos. Era uma solitária e gostaria de ter tido marido. (O testemunho de uma senhora é lacónico: «Claro que ela procurava um marido e Alfred Hitchcock servia-lhe mas quem poderia gostar de casar com alguém tão feio como ele?»)

A personalidade de Hitchcock (aqui não inventada à toa) é equiparada à da mulher na medida em que ambos tinham propensão para o isolamento e fascínio pelo universo do Sinistro e do Macabro. E ambos tinham sido educados de modo severo e inibitivo.

A mãe de Else terá morrido de modo estranho. A filha colocou o seu cadáver sobre uma cadeira, à janela da casa e preparou a postura do corpo para que parecesse que ela estava a tricotar. Durante dois dias, os habitantes locais terão visto o corpo da mulher à janela, presumindo que ela estava viva. No terceiro dia, visitas terão entrado na casa e detectado com horror que o cadáver estava em decomposição e cheirava muito mal.

O apego à mãe que era fulcral para uma mulher solitária e marginalizada como Else, tê-la-ia levado a fazer-se acreditar que não estava sozinha e que a mãe continuava viva. E tê-la-ia conduzido a cuidar preciosamente do cadáver enquanto o manteve em casa.

Else conversaria espontaneamente com o seu amigo inglês que ficou fascinado com a figura da mulher e com a obsessão dela pelo corpo morto da mãe. A imagem da mãe de Norman Bates, para o filme “Psico”, terá nascido como resultado deste encontro mantido secreto durante décadas.

A voz-off vai mais além nas suas revelações. Não só Else inspirou Hitchcock mas toda a terra onde ela viveu, Auerstedt. Os campos agrícolas de cultivo de “Intriga Internacional” (1959) e de “Cortina Rasgada” (1966) são em tudo semelhantes aos que ele viu em Auerstedt. O estilo arquitectónico de uma igreja local com os seus claustros foi uma inspiração para a concepção visual de certas imagens de “Vertigo” (1958).

O fascínio de Auerstedt que é uma comunidade ignorada pelo mundo só foi assim descoberto por Hitchcock. E terá servido para perpetuar o seu sucesso e cimentar ideias para as suas obras mais emblemáticas.

Depois de ter passado por Auerstedt em 1956, o espírito de Hitchcock foi iluminado por ideias e por imagens inspiradoras. O testemunho de um habitante local é expressivo: «Não me admiro que Hitchcock gostasse de Else Eiermann. Vi uma vez um trailer de um filme dele e achei-o tão estranho como aquela mulher.»

O tom irónico mas circunspecto do filme de 15 minutos torna-se cómico e divertido. E é servido por boas fotografias de Hitchcock, por imagens dos seus filmes e por uma música original muito adequada. Quem ouse defender que é uma curta-metragem artisticamente pouco criativa, não poderá argumentar que é pouco apelativa ou aborrecida. Este não é um trabalho de artes plásticas. Mas uma aplicação contemporânea do tema ao domínio do audiovisual. Feita com humor e profissionalismo.

A jóia da coroa das curtas-metragens da exposição «UNDER HITCHCOCK» seria “Phoenix Tapes” – trabalho encomendado no ano do centenário do nascimento do Hitchcock (1999) pelo Museu de Arte Moderna de Oxford. A tarefa foi confiada a dois grandes conhecedores da filmografia do Mestre do Suspense: Matthias Muller e Christoph Girardet.

O filme revelou-se-me menos imaginativo e genial do que esperava. Os autores trabalharam cenas da filmografia de Hitchcock e montaram-nas segundo temáticas: seis capítulos autónomos. Aqui, o trabalho de montagem é importante. E aquela associação de ideias entre cenas distintas de distintos filmes só poderia vir de quem conhece bem o universo fílmico de Hitchcock.

Chaves, provas de culpabilidade mostradas em grande plano, posturas físicas, beijos carregados de paixão, facas, pistolas, pessoas em suspensão nas alturas… As grandes temáticas de Hitchcock são concisamente mostradas num filme de 45 minutos com imagens de 40 filmes.

O capítulo de entrada mostra cenas em que o poder do som é relevante. Passos, estalidos, ruídos no silêncio. É bastante notável o arranjo sequencial das imagens. Mas é forçada a repetição de imagens. (Como a de Paul Newman percorrendo o Museu em “Cortina Rasgada”)

Noutro capítulo, usa-se um encadeamento de imagens para encenar uma espécie de sonho no domínio das linhas do caminho-de-ferro. O poder hipnótico da viagem embala o espectador numa viagem alucinante. São usadas cenas que decorrem em comboios. (Proliferam comboios na filmografia de Hitchcock.) O som é trabalhado para que se sinta o movimento das carruagens sobre os carris – de modo repetido e continuado. Vive-se numa atmosfera sonhada ou num sonho com contornos de realidade. Às tantas, questionamo-nos: o comboio em que viajamos segue os carris ou já saiu deles? Daí o nome do capítulo ser «Descarrilado».

Penso que o melhor capítulo é aquele que se intitula «Why don’t you love me?». Aqui debatem-se os problemas de personalidade decorrentes da relação de uma pessoa com a sua mãe. Há imensas mães dominadoras ou poderosamente influentes no cinema de Hitchcock. (A mãe do cineasta era, a seu modo, particularmente decisiva no pensamento dele.)

Parece-me engenhoso ir capturar a cantilena das crianças em “Marnie” (1964). Aquela em que se canta repetidas vezes «Mother, mother, I am sick…» Neste contexto, vemos imagens de Difamação (1946) – algumas em repetição – “Suspeita” (1941), “Desconhecido do Norte-Expresso” (1951), “Intriga Internacional” (1959), “Marnie”, “Os Pássaros” (1963) e obviamente “Psico”.

Há um momento desconcertante. Aquele em que vemos Norman Bates na cela, olhando morbidamente para o vazio, enquanto ouvimos cantar o tema clássico de “O Homem Que Sabia Demais” (1956), “Que Será, Será”. As palavras cantadas numa melodia radiosa encaixam de modo macabro sobre o drama do filho da Sra. Bates: «Quando eu era pequeno, perguntava à minha mãe o que viria a ser.» Irónico e sarcástico.

O capítulo final do filme mostra-nos uma imagem decomposta de Ingrid Bergman em “Sob o Signo do Capricórnio” (1949). É uma imagem com um movimento muito lento que traduz uma certa necrofilia. Bergman está de olhos entreabertos, abre-os e fecha-os como se estivesse a meio caminho da Morte e, mesmo assim, revelasse uma estranha e desperta beleza. No rosto dela, estão uns olhos vidrados que contemplam o nada; ou uns olhos carregados de melancolia e cujo aparente brilho só vem das lágrimas. O mistério está em tentar decifrar aquela tristeza quase apatia ou aquela apatia quase morte.

O resultado parece-me rebuscado e inconsequente. Num trabalho como “Phoenix Tapes”, toda a deturpação e repetição de imagens me parece abusiva. A condução do filme não é brilhante nem carregada de emoção como seria de esperar numa obra de condensação de imagens e sons do universo hitchcockiano.

“Phoenix Tapes” tem um ritmo incerto e um final pouco arrebatador. Os seus autores conduzem inutilmente o espectador a um final que é frio e apático como a Morte. Com o fim da projecção, sem música nem qualquer tipo de som, a pequena plateia da Cinemateca foi transportada a um desconcertante beco sem saída. A Morte é um tema central no cinema de Hitchcock. Mas mais importante do que a morte, são os sentimentos bem vivos da paixão e do desejo. “Phoenix Tapes” deveria terminar em apoteose. Não em apatia.

«UNDER HITCHCOCK» é uma proposta louvável que permite cruzar a obra de um cineasta clássico e emblemático com o universo das artes modernas.
Estes oito filmes que são apresentados diariamente em Vila do Conde (nos monitores da exposição) são reflexos de uma arte aberta a novos conceitos.
O que interessa verdadeiramente nestas iniciativas é a estimulação dos nossos sentidos; e a reavaliação constante da Vida e dos nossos valores fundamentais. Toda a experiência artística causa um efeito. Hitchcock costumava dizer que os seus filmes funcionam como choques benéficos para as audiências, como estímulos emocionais e sensoriais.

Lamento que a exposição «UNDER HITCHCOCK» não seja trazida até Lisboa. Pois envolve muito mais material do que este conjunto de oito curtas-metragens. Saudações para a Solar – Galeria de Arte Cinemática de Vila do Conde. As congratulações de um hitchcockiano sincero.

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