terça-feira, julho 31, 2007

O PRIMEIRO (GRANDE) FILME DE HITCHCOCK - CONCLUSÃO




O Cinema Mudo conta histórias quase sem recurso a palavras. Nos primeiros minutos d’ “O Inquilino Sinistro”, as palavras escritas numa máquina de escrever ou nas páginas dos jornais também servem de instrumentos narrativos.

O título de um espectáculo a passar num teatro cumpre a função de um entretítulo. De modo enigmático e indirecto, «TONIGHT, GOLDEN CURLS» («ESTA NOITE, CARACÓIS DOURADOS») remete para a realidade temida: é terça-feira, noite predestinada para a morte de uma rapariga loira nas mãos do psicopata. Hitchcock fixa o letreiro com letras de néon, tornando a sua mensagem um pouco obsessiva. (TO-NIGHT-GOLDEN-CURLS; TO-NIGHT-GOLDEN-CURLS).

De modo equivalente, Hitchcock deseja apresentar a sua protagonista, enfatizando que ela vai ser relevante, apresentando e voltando a apresentar o seu nome: Daisy. Daisy é o centro afectivo dos que a rodeiam. A menina querida da sua família. Os entretítulos pronunciam a identidade de Daisy.

Para contornar a dificuldade de expressar sonoridades e de pôr em evidência as palavras importantes – proferidas em diálogo ou subliminares ao contexto da acção – Hitchcock usa aqui diversos truques e malabarismos técnicos.
Talvez a cena mais recordada por muitos cinéfilos quando pensam neste brilhante “The Lodger” seja aquela em que os personagens olham para o tecto, estranhando os passos do inquilino sinistro no andar de cima. Vemos esse tecto, com um candeeiro oscilante, e distinguimos a figura do homem caminhando num sentido e depois no outro. Como se, do andar de baixo, conseguíssemos ver através do tecto o primeiro andar. Hitchcock utilizou um vidro grosso sobre o qual o actor se passeou e debaixo do qual posicionou a câmara e o filmou. O resultado é visualmente brilhante. É como se «víssemos» o barulho dos passos dele.

“The Lodger” é um filme fantasmagórico, sem fantasmas. Os fantasmas são o Medo, a Suspeita e a Inquietação expressos no impacto sombrio das imagens.

Uma família feliz (como a de “Mentira” (1943)) aceita um estranho inquilino em sua casa, arrendando-lhe um quarto. A acção decorre nos dias perturbadores em que um psicopata enigmático, cuja identidade ninguém conhece e que se auto-intitula Vingador, mata sadicamente uma rapariga loira todas as semanas. Invariavelmente às terças-feiras.

O filme conjuga habilmente o tema da suspeita inquietante com o do homem injustamente acusado.

A primeira aparição do inquilino é visualmente impressiva. Ele surge à entrada da casa, coberto por uma capa escura e do rosto quase só se lhe vêem os olhos. É uma figura medonha. A mãe de Daisy abre-lhe a porta a assusta-se. O estranho inquilino em tudo se identifica com o perfil publicamente traçado do Vingador. O espectador sente-o em cada pormenor. No quarto onde vai ficar alojado, inúmeros quadros com imagens de meninas loiras de cabelos encaracolados parecem afrontá-lo e fazer-lhe mal.

Como em “Rebecca” (1940), as aparências não correspondem exactamente às realidades. O sofrimento do inquilino é diferente do que o espectador (e a família de Daisy) julga. Nem a estranha mala que ele transporta e esconde nem o mapa com o traçado geográfico dos assassinatos o vêm a revelar como o perigoso assassino que todos temem.

Hitchcock pontua a história com momentos de humor discretos e com traços descritivos de uma população londrina amedrontada pelo espírito de suspeição permanente. Com alguma ironia, o vendedor de jornais declara: “Terça-feira é o meu dia de sorte.

A casa da família de Daisy é enigmática e, de algum modo, assustadora. Quase parece trazer uma associação à casa de Norman Bates tal como Hitchcock a viria a conceber 35 anos depois. As escadas que giram em espiral sobre si mesmas, as portas antigas, as mobílias de aspecto decrépito. É uma casa de cidade e tem o número 13 afixado na porta.

Nos primeiros minutos do filme, vemos o desenrolar dos acontecimentos numa sequência de planos: o grito de uma jovem loira num encontro com a morte; a expansão da notícia através dos jornais e de boca em boca. O aparecimento do corpo parece-me uma antevisão do início de “Frenzy” (1972). Uma pequena multidão junta-se em redor do cadáver.

Depois de apresentar Daisy e a sua família, Hitchcock introduz o estranho inquilino na casa. O actor Ivor Novello dá corpo à figura sinistra e confere uma enorme duplicidade ao seu papel. Não só aquele homem parece perigoso mas frágil também.

Depois há insinuações dúbias junto de Daisy: como quando pega enigmaticamente no ferro da lareira ou quando contempla uma faca. Ou na cena em que observa os cabelos loiros dela parecendo que aqueles caracóis o mantêm cativo de uma realidade terrível.

Enquanto jogam ao xadrez, o inquilino e Daisy contemplam-se mutuamente mas fogem de olhar um para o outro em simultâneo. O espectador verifica, com apreensão, que ela está a desenvolver confiança nele mas, mais do que isso, uma afeição de contornos imprevisíveis.

O homem profere umas palavras. O entretítulo dá-as a conhecer: «Cuidado! Olhe que ainda a apanho!» Claro que ele se refere ao desenrolar do jogo mas não há certezas quanto a isso…

O inquilino age de forma dúbia. Tomara Cary Grant tivesse sido alimentado com tamanha ambiguidade em “Suspeita” (1941) …

A mãe de Daisy está atenta aos movimentos dentro de casa no serão da terça-feira seguinte. O homem sai, procurando que ninguém dê pela sua ausência. A sequência em que ele abandona o quarto sob a escuta da velha senhora evidencia um bom trabalho de montagem das imagens. Hitchcock filma planos gerais e pormenores. E a casa, com as suas silhuetas, parece também sombria.

A ousadia de Hitchcock leva-o a filmar Daisy, tomando banho e mergulhando bem os pés na água quente. Vemos o vapor de água. E a evidente descontracção dela dentro de água quase nos faz pensar também no repouso de Janet Leigh na banheira do seu quarto no Motel Bates. Daisy está tranquila mas, à porta, o inquilino escuta os seus movimentos.

“The Lodger” parece um embrião do cinema que Hitchcock viria a conceber durante 50 anos. A duplicidade e a suspeita remetem para múltiplos filmes seus. O cenário de uma Londres perturbada por um serial-killer viria a ser refeito em “Frenzy”. A ideia do homem falsamente acusado também é um fantasma recorrente no pensamento e na obra do Mestre do Suspense.

O polícia é um personagem inconveniente. Seduz Daisy e impõe-se como seu noivo. Vê perigo na presença do inquilino por quem Daisy desenvolve uma estranha proximidade emocional. E logo se apressa (cegamente ou não) a conduzir um processo de investigação sobre o homem que ameaça tomar o seu lugar.

Os polícias nunca ajudam preponderantemente os heróis de Hitchcock. Hitchcock temia de modo (mais ou menos) subconsciente a ideia da força judicial – da polícia, das leis, dos tribunais e das cadeias.

Aqui o polícia não é um amigo (como acontece em “Mentira” embora o polícia de “Mentira” também não ajude muito) mas um pretendente de Daisy que acaba por conduzir uma acusação formal sobre o inquilino. A população em fúria persegue o homem inocente e ameaça linchá-lo.

Ivor Novello compõe um herói débil, frágil. Ele não tem destreza nem força física. Parece terrivelmente traumatizado (como Gregory Peck em “Casa Encantada” (1945), James Stewart em “Vertigo” (1958) ou até Lawrence Olivier em “Rebecca”. Parece sucumbir ao seu sofrimento atroz ou perder-se na imensidão da sua angústia e dos seus fantasmas pessoais.

“The Lodger” é uma brilhante antevisão, realizada em 1926, de todo o universo tipicamente hitchcockiano. Filme enigmático mas expressivo. Como é enigmático mas expressivo o baloiçar do candeeiro do rés-do-chão sempre que o inquilino se movimenta no primeiro andar.

Como em “Rebecca”, o nome do personagem principal nunca é revelado. Como se, por detrás da aura nebulosa que esconde a identidade do inquilino, estivesse alguém que não interessa saber quem é. Por oposição a Daisy que é bem real, cujo nome é bem familiar, o inquilino é uma figura abstracta e difusa. O primeiro brilhante Hitchcock fascinou audiências e chegou ser considerado o melhor filme mudo britânico. Hoje, nos nossos dias, permanece impressionante e envolvente.

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